De Federico
Fellini à Naomi Kawase, passando por João César Monteiro e François Truffaut,
não é que a travessia dos cineastas para o domínio do íntimo e do autoral seja
rara, mas cruzar tal linha e atingir a ficcionalização de si próprio de forma
tão alegórica parece ter sido um feito primeiramente realizado por Carmelo Bene
com o seu Nossa Senhora Senhora dos Turcos. Não se trata da criação de um alter
ego, como provavelmente se passou com João de Deus ou Antoine Doinel, ou mesmo
da sutil - porém não menos bela - utilização do found footage familiar
para criar emocionantes retratos, como no caso de Kawase; aquilo que Carmelo
Bene provoca é uma teatralização burlesca de sua própria vida, interpretando a
si mesmo através do filtro de temas tão caros à sociedade italiana, como a
religião, a história nacional e a família.
Baseado no romance homônimo do próprio Bene, o filme é cuidadosamente dividido em atos, cada um simbolicamente desenhando um momento crucial da vida do autor. O relacionamento com seu pai grosseiro e autoritário e o tempestuoso duelo homoerótico, não travado com armas, mas dançado com um editor de livros fazem parte de um jogo histérico e assumido de representações artísticas. Não à toa, a câmera gira, aproxima-se bruscamente e desliza de forma esquizofrênica entre os quadros, estes sempre com um vermelho e um verde saturados (principais cores do barroco, que também está incrustado no filme). Mas a estética apurada não é a única aparição constante no mundo encenado de/por Bene: a santa de cabelos ruivos, sempre presente, mesmo quando fora de quadro, talvez seja o elemento mais delicado do filme, e consequentemente da vida do diretor. Em sua cena mais poderosa, a figura sagrada que tenta estuprá-lo e perdoá-lo ao mesmo tempo é perfeita para pensar a repulsa e o desejo que permearam os elementos religiosos do imaginário de Bene.
Um ano depois de seu lançamento, no leste europeu, Jaromil Jires lançaria Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos (Valerie a Týden Divů, 1970), obra significativamente semelhante a Nossa Senhora dos Turcos. Ambos expressivos em seus adensamentos psicanalíticos sobre a família e as pulsões do corpo, o que diferencia o filme de Bene é da ordem da encenação. Se na bizarra obra de Jires um mesmo personagem se camufla, de propósito, em 3 papéis, o polêmico e grandioso atrevimento do italiano é dirigir a si mesmo enquanto pai e filho, numa extensa cena de perturbadora discussão filial, em que é permitido ao artista cambiar de papéis quando quiser - e Bene o faz, de um segundo para o outro, em frente àquele que o assiste.
Testamento, experimentalismo performático e poetização do grotesco, Nossa Senhora dos Turcos é também um expurgo pessoal. É certo que todos os artistas - por que não dizer humanos? - são uma espécie de amálgama de vivências expressas através das lentes, pincéis e gestos. Sendo assim, o filme de Bene é corajoso não só em termos de exposição intimista, mas por ter encontrado meios tão diversos de explorar seus demônios, fantasias e limites corporais e psicológicos. O cinema pode não ser a arte mais perfeita, porém continuará sendo o caminho mais completo, abrangente e poderoso de expressão artística.
Baseado no romance homônimo do próprio Bene, o filme é cuidadosamente dividido em atos, cada um simbolicamente desenhando um momento crucial da vida do autor. O relacionamento com seu pai grosseiro e autoritário e o tempestuoso duelo homoerótico, não travado com armas, mas dançado com um editor de livros fazem parte de um jogo histérico e assumido de representações artísticas. Não à toa, a câmera gira, aproxima-se bruscamente e desliza de forma esquizofrênica entre os quadros, estes sempre com um vermelho e um verde saturados (principais cores do barroco, que também está incrustado no filme). Mas a estética apurada não é a única aparição constante no mundo encenado de/por Bene: a santa de cabelos ruivos, sempre presente, mesmo quando fora de quadro, talvez seja o elemento mais delicado do filme, e consequentemente da vida do diretor. Em sua cena mais poderosa, a figura sagrada que tenta estuprá-lo e perdoá-lo ao mesmo tempo é perfeita para pensar a repulsa e o desejo que permearam os elementos religiosos do imaginário de Bene.
Um ano depois de seu lançamento, no leste europeu, Jaromil Jires lançaria Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos (Valerie a Týden Divů, 1970), obra significativamente semelhante a Nossa Senhora dos Turcos. Ambos expressivos em seus adensamentos psicanalíticos sobre a família e as pulsões do corpo, o que diferencia o filme de Bene é da ordem da encenação. Se na bizarra obra de Jires um mesmo personagem se camufla, de propósito, em 3 papéis, o polêmico e grandioso atrevimento do italiano é dirigir a si mesmo enquanto pai e filho, numa extensa cena de perturbadora discussão filial, em que é permitido ao artista cambiar de papéis quando quiser - e Bene o faz, de um segundo para o outro, em frente àquele que o assiste.
Testamento, experimentalismo performático e poetização do grotesco, Nossa Senhora dos Turcos é também um expurgo pessoal. É certo que todos os artistas - por que não dizer humanos? - são uma espécie de amálgama de vivências expressas através das lentes, pincéis e gestos. Sendo assim, o filme de Bene é corajoso não só em termos de exposição intimista, mas por ter encontrado meios tão diversos de explorar seus demônios, fantasias e limites corporais e psicológicos. O cinema pode não ser a arte mais perfeita, porém continuará sendo o caminho mais completo, abrangente e poderoso de expressão artística.