quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"Escrita automática com câmera" por André Antonio




O início de Montenegro (Dusan Makavejev, 1981) mostra uma mulher loira (Susan Anspach) se aproximando de um lago, com o olhar perdido. Ao fundo, uma casa enorme, bonita, rica, provavelmente onde ela mora. Uma música pop-romântica dos anos 80 embala a cena. A letra fala de liberdade, fala que uma moça percebeu que nunca tinha passeado de carro em Paris com o vento nos cabelos. Esse tipo de inserção nesse tipo de universo diegético (mas também o próprio contexto de eu ter visto o filme numa disciplina da universidade chamada “Cinema periférico”) já me dizia tudo: eu estava prestes a assistir a um daqueles filmes de crítica social que mostram alguém cercado de valores burgueses querendo descobrir possibilidades e liberdades novas. Ótimo, adoro esse tipo de filme. Mas o desenrolar das seqüencias de Montenegro quebrou totalmente minhas expectativas. Porque nada no filme, simplesmente, parecia fazer sentido.
As ações dos personagens sistematicamente quebravam qualquer coerência ou identidade que o pobre espectador aqui tentava dar a eles. Os sentimentos deles não eram regulados por nenhuma lógica. Pai, mãe, filhos, avô, médico, todos agiam de forma irrevogavelmente louca num universo incansavelmente louco. Universo esse que propunha situações cada vez mais nonsense que as outras. Quando o esquisito grupo de iugoslavos – incluindo aquele com a faca enfiada na cabeça! – pára pra tirar uma foto como se fosse a coisa mais normal do mundo (nossa protagonista branca aceitando sorridente) achei que tinha chegado ao cúmulo. Mas não. Ainda viria o pai e o médico dançando uma música do ABBA (I love you, I do, I do, I do, I do, I do...) com seus robes brancos. Com o que eu me deparava, um filme totalmente sem objetivos, uma tiração de onda completa?
Finda a sessão, avaliei o filme apenas como algo que me fez ter um conjunto de sentimentos – predominando a surpresa, a perplexidade, o desnorteamento e o erotismo (e também o riso em cenas como a que o pai fala ao casal de filhos, cuja mãe está seqüestrada: “é tão mais tranqüilo quando sua mãe não está aqui!”). Só. Não sabia como classificá-lo (parece que temos necessidade disso, sob pena de adquirirmos uma chata inquietação). A única vaga e distante referência que me veio à mente foi David Lynch (uma ou outra cena me lembraram rapidamente das esquisitices específicas dele). Mas os dias se passaram, e o filme, vez ou outra, voltava à minha cabeça. É, acontece. Principalmente com bons filmes, que suscitam experiências legais. Foi a partir daí que quis escrever sobre Montenegro. Tarefa arriscada, por causa dessa minha relação com o filme. E porque nunca vi nenhum outro filme de Makavejev e, como se sabe, desde o início da idéia de auteur nos anos 50, as outras realizações de um mesmo diretor são cruciais para a interpretação de determinado texto dele. Por outro lado, sempre vemos por aí análises fílmicas comparando o filme X de um diretor com os outros dele. Pelo menos aqui daremos uma escapadela rápida desse “dogma”.
Esta resenha é apenas um breve comentário para tentar sugerir uma genealogia para Montenegro (afinal, segundo os pós-estruturalistas, todos os textos já foram escritos, todos os textos são intertextos...), partindo do contexto – em grande parte subjetivo – descrito acima. Essa genealogia é o Surrealismo (a pista de Lynch estava, por fim, correta). Não é novidade que essa vanguarda história surgida nas primeiras décadas do século XX se desenvolveu proficuamente no cinema (Buñuel, Bergman, Resnais, Lynch, para citar apenas esses quatro mais conhecidos...). Mas esse desenvolvimento acabou privilegiando uma dimensão específica do Surrealismo: a imagem onírica. Os cenários de Bergman, seus enquadramentos e fotografia, as narrativas circulares de Resnais e Lynch (o trabalho primoroso de som deste último), tudo isso faz com que os filmes deles nos tragam imagens que parecem ter sido capturadas em nossos sonhos mais inquietos, em nossas lembranças mais profundas, no fundo mais obscuro do nosso inconsciente. Surrealismo.
Mas isso faz com que se esqueça outra dimensão desse movimento artístico (fartamente explorada na pintura e literatura surreais do início do século passado e nos primeiros filmes de Buñuel): a escrita automática e a junção de elementos contraditórios para se atingir um nível maior de expansão da consciência. E o que Montenegro é senão a potencialização cinematográfica dessas duas coisas? Para assegurar essa minha hipótese, há as fortes seqüências com forte clima erótico no filme (Montenegro tomando banho pelado, o dildo no tanquezinho de guerra, a dança antes do sexo...) e as mortes (Montenegro morto, com sangue farto escorrendo, o envenenamento final da família inteira...). Onde há mais sexo e morte que em nosso inconsciente – onde o Surrealismo precisamente almeja chegar?
Esse viés específico do Surrealismo parece que não conseguiu encontrar muitos adeptos cinematográficos (talvez venha daí meu estranhamento para com o filme)... no entanto não deixa de ser interessante a forma com que ele tenta trazer à tona nosso id e quebrar assim as formas perceptivas do senso-comum. Nesse sentido, Montenegro está longe de parecer um filme apenas de “porra-louquice”. E quem sabe eu não estivesse certo ao achar que, desde o princípio, o filme (com uma branca adentrando os espaços escuros dos estrangeiros exóticos de seu país) é sobre querer encontrar espaços de liberdade e novas possibilidades?

"A Discussão de Preconceitos em Um Gosto de Mel (A Taste of Honey)" por Bernardo S. Mendes


Ambientado num bairro simples da Inglaterra dos anos 60, Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, 1962), dirigido por Tony Richardson, traz consigo questionamentos como o racismo, a gravidez na adolescência (com a conseqüente perda das perspectivas de futuro) e o preconceito com homossexuais, temas que, na época, não eram tão debatidos no cinema, mas que a sociedade já começava a perceber uma discussão através do enfrentamento. O filme discute também, de maneira mais subjetiva, o real papel da escola na formação de jovens, que envoltos num ideal de liberdade, fruto de uma má relação com os pais, se vêem presos a uma instituição que não as educa.


Jo, vivida por Rita Tushingham, é o foco principal dos acontecimentos do filme. Uma estudante que tem sérios questionamentos acerca de sua mãe, Helen (Dora Bryan), que está mais preocupada com os “namorados” que arranja do que com a própria filha. Vale-se colocar em discussão a relação de necessidade que Helen encontra nesses seus casamentos, uma troca que a ela parece ser justa, mas que a faz ser submissa a seu novo namorado Peter (Robert Stephens), um rapaz mais jovem que ela. Entre a filha e Peter, Helen opta por Peter, mais pelo seu comportamento de ser dependente do homem, coisa que Jo não aparenta ser, do que por uma falta de afeto que sinta pela filha.


Em suas constantes mudanças de residência, Jo acaba por encontrar Jimmie (Paul Danquah), um marinheiro negro, cozinheiro do navio, e acaba vendo nele um refúgio dos problemas com a mãe, envolta de preconceitos, e a escola, lugar que não a agrada muito. Interessante notar como através de sutilezas o filme se sustenta em seus questionamentos, desde o fato do próprio Jimmie ser a escória dentro do navio, trabalhando como cozinheiro (numa das cenas ele descasca batatas) até a necessidade de Jo, já sabendo das convicções da mãe (representando convicções da própria sociedade) contar posteriormente à ela que o seu filho poderia nascer negro. A relação de entrega que ela tem com Jimmie mostra, no entanto, a naturalidade com a qual reage diante de um primeiro amor, mesmo ele sendo o oposto de um padrão ideal que subjetivamente lhe era imposto.


Há uma clara oposição de liberdade e submissão colocadas respectivamente no filme através das personagens de Jo e de Helen, esta última vivendo mais numa falsa liberdade que não condiz com a sua dependência constante de homens que hora ou outra a sustentam em uniões não muito sólidas. A cena que marca uma relativa crueldade de Helen, que é mais uma falta de posição advinda de sua submissão do que um desamor que sente por Jo, é quando ela, em uma viagem feita com amigos, Peter e a filha, que exerce um papel secundário no passeio, decide continuar sua diversão e mandá-la de volta para casa, demonstrando um “respeito” maior com Peter. Este último entende o tipo de relação que tem com Helen e sabe que a domina e pode tê-la como não tê-la a qualquer hora, assim como faz ao mandá-la embora.


Com a mãe morando fora e “casada” Jo concretiza um desejo de se sustentar e, com seu próprio emprego ela vai morar só em um lugar ainda mais simples. Através de imagens de meninos brincando constantemente nas ruas e uma sujeira que é inerente a eles, pontuada também nas frases dos próprios personagens, é que Tony Richardson critica o desenvolvimento dessa Inglaterra, envolta por lixo, pobreza, ratos e um rio sujo e fedorento. O próprio ambiente faz com que os personagens tenham já em si uma falta de perspectivas, apenas uma sobrevivência de planos breves e imediatos.


É no seu novo trabalho que Jo encontra Geoffrey, personagem vivido por Murray Melvin que completa o tripé dos conflitos vividos em “A Taste of Honey”. Rejeitado pela sociedade e reprimido em seus desejos, Geoff encontra em Jo alguém que o compreende e que precisa ser cuidada. Apesar de sua postura melancólica e introspectiva, é Geoffrey que traz a Jo, agora sem Jimmie e rejeitada pela mãe, mais esperança, assim como traz essa esperança também ao espectador. Sem questionar a homossexualidade de Geoffrey e levada pela amizade e afeto que sentia por ele, Jo o acolhe em sua casa e a relação entre eles acaba virando para ambos uma questão de necessidade, tanto na vida diária como no psicológico dos dois. Juntos, eles se aceitam melhor do jeito que são e terminam por se valorizarem, como diz Jo em determinado momento: “Eu e você somos extraordinários. Não existe outro eu e outro você no mundo!”. A sustentabilidade dessa amizade ajuda a Jo no momento em que ela descobre estar grávida e faz com que Geoffrey, que toma frente em sua defesa, se aproxime ainda mais dela, beirando o paternalismo. Jo em certa hora diz com um tom irônico: “Geoff, em certas horas você é como uma irmã mais velha para mim”.


Jo vem expressar essa nova visão de mundo, desapegada dos preconceitos, mas ainda com resquícios de uma percepção já ultrapassada, que se deixa escapar através de suas falas: “Vamos Geoff, me diga, sempre quis saber mais de gente como você”. Isso pode nos fazer sublinhar os diversos conflitos existentes dentro da cabeça de Jo: a aceitação por parte da mãe de um filho negro, a sua própria gravidez, fruto de um primeiro amor e de uma primeira vez, na qual, mesmo buscando um futuro diferente para si, ela própria acaba caindo no mesmo erro da mãe. A volta de Helen, rejeitada e colocada para fora da casa de Peter, ao convívio de Jo, faz com que explodam os preconceitos existentes na própria Helen, que, visivelmente massacra Geoffrey e, novamente, abala o ambiente harmonioso que se havia criado. É com sutilezas na linguagem, nas imagens e nas falas, que Um Gosto de Mel, mostra tais problemas e não tem vergonha de, junto a discussões que se iniciavam, propor um debate sobre o futuro dos jovens, o preconceito com os negros e homossexuais e a questão da família.

sábado, 25 de outubro de 2008

"Estranhos no paraíso (Jim Jamursch, 1984)" por Hermano Callou


Uma mulher imóvel, em um aeroporto, olha um avião que corta o céu. A mulher apanha suas malas, demostrando certa apatia, e sai pelas bordas do enquadramento. Ficamos ainda por alguns segundos com a "sobra" do imagem: o espaço vasto e vazio onde presenciamos a partida de um outro avião. O que se insinua nesse primeiro plano de Estranhos no Paraíso é o mundo em trânsito e, ao mesmo tempo, monótono que o filme vai investigar. Saberemos logo em seguida que a mulher se chama Eva (Eszter Balint), uma imigrante húngara que acaba chegar aos Estados Unidos. O novo mundo não se mostra para ela um lugar muito agradável: edíficios abandonados, ruas vazias, um espaço pobre e sujo que parece pouco receptivo para os que vem de fora. Eva, no entanto, põe o seu toca-fitas para funcionar e inunda o ambiente com I Put a Spell on You, interpretada por Jay Hawkins. O ato de Eva anuncia que, de algum modo, ela não vai se dobrar para aquele espaço.


Estranhos no Paraíso nos apresenta, em seguida, Willie (John Lurie), primo de Eva, um húngaro há anos morando nos Estados Unidos, sem interesse algum pela sua cultura de origem. Sua vida é transformada pela intromissão da prima. Willie, irritado pela lembrança do seu país materializada na sua frente, e Eva, pouco disposta a aceitar as verdades e os hábitos americanos, dão início a uma relação de mal-entendidos. O não-entendimento pode se esconder em um vestido, um almoço, uma canção, um jogo “estúpido”: o cotidiano se torna um pequeno campo de batalha, em que os personagens assumem suas diferenças. O entendimento entre eles, no entanto, vai ser construído, a partir de uma afetividade que, aos poucos e aos tropeços, vai sendo formada. Eva e Willie, jutamente com um Eddie (Richard Edson), um simpático amigo americano, iniciam uma amizade que possibilita a viagem que os três fazem a Florida.


Segundo longa-metragem de Jim Jarmusch, Estranhos no Paraíso, já apresenta o interesse do diretor em pôr mundos completamente distintos para dialogar. Se em Down by Law temos um mal-humorado cafetão, um DJ e um bizarríssimo imigrante italiano que, divindo a mesma cela em uma prisão, são forçado a passar os dias juntos, a conversar e a se entenderem, em Estranhos no Paraíso temos Willie, Eddie e Eva como um curioso trio que logo nos conquista simpatia. Jarmusch, no entanto, apresenta seu olhar no filme em questão em uma versão mais melancólica, em que o paraíso americano é construído como um lugar estranho, tedioso, sem brilho, de pessoas vivendo a esmo. Um sol pintado em um muro com a mensagem “Welcome to Florida” soa, nesse sentido, particularmente irônico em uma paisagem desabitada, que parece pouco sedutora aos nossos personagens viajantes.


Eva, elemento estranho naquele espaço, opera como possibilidade de compreensão da cultura daquele lugar: o olhar estrangeiro que o próprio Jarmusch assume a partir dela possibilita que se olhe ao redor sem o véu do hábito. O dia-a-dia americano passa a ser questionado juntamente com as pequenas verdades cotidianas que ele naturalizava. O diretor soube, nesse sentido, inserir pequenos detalhes, capazes de falar da sociedade em questão: Eddie fala com intimidade da paisagem de Cleveland sem nunca ter estado lá - estamos em um mundo em que a imobilidade se confunde com a vibração de imagens de todos os lugares. Eva, por ser um espaço em que a cultura daquele lugar não pode se infiltrar totalmente, funciona também como uma espécie de impulso de mudança – é graças a ela, afinal, que os personagens abandonam o marasmo e seguem em viagem.


Em uma época em que o cinema independente americano tem freqüentemente se comportado como uma espécie de “escadinha” para novos diretores entrarem em Hollywood, Jarmusch nos chama a atenção por reinvindicar um olhar enviesado, que se traduz no trato bastante particular que o autor tem com o cinema. Respondendo a um estado da arte em que as fronteiras entre alta arte e cultura de massa se dissolvem – erguendo uma filmografia poderosa ao dialogar tanto com o cinema moderno quanto com a tv ou a música pop -, Jarmusch propõe em Estranhos no Paraíso uma poética de palavras gastas e banais, que adquirem beleza com seu traçado. A piada que Willie tenta contar, mas que lhe foge à cabeça, as conversas durante a viagem, o lago que os personagens foram visitar, mas que encontram congelado: o cineasta constrói, com o bom humor que lhe é característico, situações que ficam na memória por sua delicadeza. São esses momentos, justamente, que colocam Estranhos no Paraíso como um filme particulamente bonito na história do cinema independente americano.

"A Chinesa (1967) – Jean-Luc Godard" por Laíse Queiroz


O subtítulo desse filme já nos diz muito sobre ele logo de início. “Um filme em processo de ser feito” engloba não só a discurso estético de A Chinesa, mas também a instabilidade das tentativas de se fazer cinema político.


O filme é claramente um discurso contra o imperialismo norte-americano, tanto na sua forma, quanto no seu conteúdo. Na questão estética, em contato íntimo com o discurso do filme, a narração é não linear e por vezes confusa para o espectador, em contraponto a linearidade americana que, para Godard, poda a liberdade do processo criativo. Ele utiliza, então, a narrativa como um instrumento para fazer com que o espectador entre no filme, fazendo-o participar ativamente dos seus acontecimentos, suas histórias e personagens, num diálogo direto. Até a forma com que a câmera é conduzida casa com o discurso da obra: esta não se mostra neutra, onisciente. Vem como uma terceira pessoa apta a questionar e analisar o comportamento dos jovens, fazendo com que o espectador se posicione. Sua não-linearidade e heterogeneidade que beira o caos estético fazem também com que quem esteja assistindo A Chinesa interaja com o filme, fazendo co-relações por vezes pessoais e “criando” o filme a partir do seu entendimento. Um filme sempre em processo de ser feito numa estética aberta, godardiana.


Em seu conteúdo Godard explora e questiona uma juventude “aprendiz de esquerdista”. Jovens se juntam num apartamento que se torna um mini-universo, onde discutem a política de Mao Tse Tung e o comunismo europeu, tendo a política como um ponto de fuga de suas realidades sociais, onde não conseguem viver. Acontece então um desfile pop-político, onde burgueses não-proletários querem encontrar uma solução para o proletariado. Godard permite então um questionamento, mostrando as limitações e contradições desse processo. O apartamento, um ambiente claustrofóbico sem ligação com o mundo exterior, enfatiza a idéia da falta de ligação daqueles jovens com a realidade e permite que o espectador se depare com as ações e os vícios do grupo, que utiliza suas férias para se trancar num apartamento alugado e “praticar” o Maoísmo. Numa crítica a absorção do pensamento de Mao como consumismo intelectual pela jovem burguesia francesa, genialmente, Mao é transformado em um slogan cantado (“Mao, Mao!”).


Godard faz uso de vários elementos da linguagem cinematográfica e mostra que a forma com que são utilizadas intervém diretamente na compreensão do espectador. Ele manipula os elementos para mostrar como estes se relacionam com a forma que o filme é assimilado e causa diferentes impressões.


O diretor não teme os questionamentos em seu filme, pelo contrário, incita-os. Rompe com a linearidade e com a tradição cinematográfica, enfrentando a forma americana de fazer cinema. Um filme com discurso político e estético.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

"Exotica (Atom Egoyan, Canadá, 1994)" por Guilherme Carréra


O cinema do diretor Atom Egoyan poderia ser definido pela palavra inquietude. A construção de sua narrativa parece estar calcada em uma adesão a um discurso tenso, a um senso de mistério, onde o papel da trilha sonora tem uma força absurda como co-autora para criar esta ambiência. É dessa forma que “Exotica” (Canadá, 1994), um dos filmes mais conhecidos deste realizador canadense, mas nascido no Egito, parece funcionar. A obra é sustentada por esta sintonia de suspense, tensão e som, fincando-se como um cinema desejoso de inquietar o espectador, fazê-lo, genuinamente, acompanhar a trama contada e prender sua atenção.


Os elementos narrativos utilizados pelo filme confirmam esta premissa. Tanto a montagem como a trilha sonora dialogam em prol do clima soturno predominante. A estrutura não-linear da narrativa e as melodias instrumentais de tom sombrio pontuam o andamento da trama. Somado a isso, tem-se uma fotografia que prioriza espaços internos, com iluminação restrita, pondo aos olhos da audiência a escuridão. Esta combinação é a responsável pelo estranhamento que chega até o espectador. Inquieto, esse poderá refutar o cinema de Egoyan ou aderir às estratégias, interessando-se pela trama um tanto quanto policialesca a nos ser contada.


Sendo assim, a inquietude, no entanto, não se restringe ao aparente objetivo a ser alcançado pelo produto já pronto, entregue à audiência. O incômodo causado por tais elementos narrativos não ressoa apenas para quem fruirá o filme, mas, certamente, este incômodo é também o centro da própria história narrada. De teor incomum, o roteiro de “Exotica” é quase um jogo de quebra-cabeça. A boate que dá nome ao filme é o cenário emblemático da trama. É lá que a maior parte da história se passa, entrecruzando seus personagens.


Francis Brown (Bruce Greenwood) é o protagonista. Ele é um ativo freqüentador da Exotica. Aparece para ver todas as noites a jovem Christina (Mia Kirshner), uma das atrações principais do local. Ela dança sempre para o cliente, com a restrição de que ele, assim como todos os outros freqüentadores, não pode tocar nela. A reincidência de Francis e o relacionamento que se estabelece entre os dois, a princípio, escondem mais do que expõem. Eric (Elias Koteas) é o DJ da boate. Ao mesmo tempo em que cumpre um papel de voyeur, ele está sempre atento ao comportamento de Francis em especial, por motivos que o espectador desconhece. E Francis, por sua vez, também tem uma relação curiosa com a adolescente Tracey (Sarah Polley). A garota vai todos os dias trabalhar como babá na casa dele, embora o patrão não tenha filhos. O que Christina, Eric e Tracey têm em comum ou de que forma eles interferirão na vida uns dos outros são perguntas que o roteiro não tem muita pressa em responder.


Enquanto isso, a montagem se responsabiliza por intercalar imagens de um passado que não se sabe ao certo a que pertence. Mas nele tem-se Christina e Eric passeando por verdes campos. Este intercâmbio de tempos, apesar de ter se tornado marca da cinematografia dos anos 90 via histeria pop tarantinesca (Pulp Fiction, Jackie Brown), não se rende ao deslumbre. Há em Egoyan uma espécie de despopificação da montagem não-linear (aquela sem começo, meio e fim evidentes). “Exotica” mistura os tempos-espaços para engendrar ainda mais o espectador a sua história.


O resultado de “Exotica” é certamente incomum. Muito embora sua estrutura não seja dotada de grandes inovações, a elaboração de sua narrativa carrega em si um peso bastante singular. À parte o diálogo consciente entre os diversos instrumentos narrativos mobilizados a fim de que se criasse uma atmosfera específica, o filme de Egoyan não deve ser resumido a um simples exemplar do suspense. Seu ritmo apurado sinaliza para além da camada narrativa exposta. O que Francis esconde, ou simplesmente do que ele não sabe falar, ultrapassa a busca pela solução de uma mera incógnita do roteiro. Trata-se, na verdade, do que ele não encontra na sua própria casa, do que ele não consegue esquecer ao olhar para Tracey e o que ele busca todas as noites na Exotica.


Francis é um personagem à margem. Nota-se sua falta de ânimo com o mundo que tem diante de si. Em suas idas intocáveis a Exotica ele não parece procurar pelo prazer disponível. Quando oferece caronas à jovem Tracey, Francis encontra na garota reminiscências de um passado não tão longínquo. Por mais que “Exotica” esteja preenchido por tentativas de se decifrar o quebra-cabeça, o filme não entende o desvendar do caso como forma de aliviar uma tensão. Aliás, muito pelo contrário. A partir do momento em que o espectador compreende o que Francis traz consigo, tal incômodo se potencializa, transformando seu protagonista em um homem incapaz de aliviar a sua tensão inerente. E é desse peso que Egoyan parece querer falar.

"A (Cor) Chinesa de Godard" por Anderson Baretto


Realizado às vésperas do turbulento ano de 68, o filme “A Chinesa”, de Godard, à primeira vista, faz jus ao seu subtítulo “um filme em processo de ser feito”. Por isso, não é de se estranhar que se faça a pergunta: O que é isso? Afinal, não há um percurso usual, comum ao que até então “conhecemos” como linguagem de cinema. O filme, é mais que uma liberdade artística, antes de tudo, é um grito pela liberdade, seja esta do indivíduo, da sociedade ou do próprio cinema.


A Chinesa é uma combinação entre ficção, documentário, performance e vanguarda, e, sem se propor a ser nenhum deles, supera qualquer tipo de convenção ou classificação. Além de brincar com toda a capacidade possível de se fazer entender, o filme ainda “estremece” qualquer senso de realidade. Essa talvez seja a função do cinema, essencialmente. Godard utiliza depoimentos dos personagens, entrevistas e ilustrações, explora as mais diversas formas de arte, encenação, fotografia, gravuras, performances, tudo para conseguir mostrar um filme que “ainda não está pronto”. Entretanto, é uma obra perfeitamente completa e bem acabada, uma vez que atinge todos os objetivos do autor/diretor, que, além disso, ainda teve a competência de mostrar uma realidade antes mesmo que a própria realidade se mostrasse, conforme é dito por uma das personagens: “A realidade ainda não se mostrou a ninguém”.


O filme é um combate ao imperialismo americano, num discurso bastante político que é acompanhado pela cor vermelha, a cor do sangue, da revolução, do comunismo, da bandeira chinesa... O vermelho aqui, muito além de Almodóvar, é muito mais que uma cor, é um instrumento. A cor está presente em todo o filme, e é uma característica percebida desde os primeiros segundos da obra. Vermelho, Amarelo, Azul, cores primárias que, para Godard, significam harmonia e equilíbrio. São a partir dessas cores que todas as outras são formadas, o que remete ao “filme como algo não acabado”, como se as bases da realidade mostrada no filme se constituíssem como um ponto de partida – para o espectador, os indivíduos, o cinema e o mundo.


Godard mostra a sua visão de mundo, uma visão profunda, densa, focada, real, que está presente marcadamente no filme através da fotografia, isto é, o diretor utiliza, em sua maioria, planos fechados, evita o “plano americano”, mais uma prova de sua magnífica intertextualidade e subjetividade. O enquadramento é focado, não apenas pela câmera, mas pelo olhar do cineasta, um olhar restrito, sem ser levado e iludido pelas paisagens, pelo exagero de imagens, pela multiplicidade de informação, propostas pelo “american way of life”. E assim, o filme tem uma estética peculiar, concentrada e equilibrada, características essenciais para se compreender uma realidade que estava prestes a se mostrar. Godard também nega a narrativa linear do cinema americano, há uma liberdade de movimentação de câmera, bem como uma liberdade de cortes, promovendo uma certa imprevisibilidade ‘des-norteante’.


No filme é dito: “Para tudo o que vemos devemos considerar três coisas: a posição do olhar de quem vê, o objeto visto, e a fonte de luz”. O espectador estaria, então, vendo frontalmente essa proposta de uma nova realidade, trazida pelo filme - o objeto visto - um instrumento trazido à luz pela genialidade de Godard. Isso remete uma vez mais ao “filme em construção”, representando não apenas um filme, mas sim a certeza de que é possível trilhar um caminho diferente. A Chinesa percorre esse caminho diferente, destoa do cinema americano, central, ridiculariza o luxo e o poder dos EUA. “Há uma falsa idéia do cinema”; “Cultura e ação estão separadas”; “A cultura oferece controle sobre o mundo”...


A política é o que move os personagens, seus pensamentos, suas idéias, seus instintos e atitudes. A política é “o pequeno livro vermelho que faz tudo se mover”. O filme mistura política e arte, passa a idéia de que para mudar algo é necessário conhecê-lo antes, e antes disso, conhecer-se. Godard teve essa sensibilidade, e no filme trouxe tudo isso através do que chamou de “consciência infeliz”. Infeliz, talvez, pelo fato de que toda consciência traz consigo um nível maior de responsabilidade, esta, por sua vez, está diretamente ligada ao poder e à realidade. E assim, mais uma vez perguntamos: o que é a realidade? Ao longo de todo o filme, o espectador pode se perguntar: o que se passa nesse filme? São meras ilustrações ou é de fato uma história? Existe uma história? A Chinesa é um filme para poucos, é um filme que faz pensar, e muito mais do que isso, pensar em agir. É uma obra onde nem sempre tudo é compreendido, afinal, olhar um objeto de perto significa conhecer os seus detalhes. O nível aumenta quando o “objeto” analisado não é mais o filme, ou o cinema em si, mas sim a realidade.


O olhar é algo bastante instigador nessa obra, aliado à imagem e ao som, sobretudo às palavras, propõe uma análise dessa tal realidade. Através da fala dos personagens, há uma informação, que, por mais paradoxal que pareça, aponta a intencionalidade do autor. É dito que ser cego é a saída para enxergar melhor o mundo. Godard fecha os olhos ao mundo imperialista, ao cinema tradicionalmente norte-americano, e com isso, não só enxerga uma nova maneira de fazer cinema, como também propõe ao público uma nova maneira de enxergar a realidade.


Assim, o filme traz uma verdade combatente, combate o imperialismo, o cinema americano, e até mesmo o processo da construção fílmica, uma vez que nega os caminhos até então conhecidos do cinema mundial. Godard para isso deu novo significado à imagem, à representação, à fotografia, à música. Inseriu imagens, figuras de pensamento, brincou com a subjetividade, reinventou a arte cinematográfica, retratada também numa de suas inúmeras frases de efeito: “A arte não reproduz o visível. Ela inventa o visível”. Godard, portanto, finaliza o filme, apesar de anunciá-lo “em processo de ser feito”, e faz de A Chinesa algo maior do que “um tímido passo de uma longa marcha” – um começo de um novo caminho.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

"Aqui ou Ali" por Bernardo S. Mendes


No ano de 1984, quando contava apenas 32, Jim Jarmusch lança o seu segundo longa, Estranhos no Paraíso (Stranger Than Paradise), fazendo uma análise do paraíso americano e do sonho estrangeiro em uma terra que parecia ser prometida. Willie é um imigrante húngaro desocupado, que vive de apostas em corridas de cavalo e jogos de poker. Vivendo num pequeno apartamento em Nova York, Willie é o símbolo da falta de perspectivas, do tédio e da conformação com uma vida monótona. O paraíso que o esperou na América está apenas do lado de fora do seu apartamento, ou na televisão. É interessante ver como Jarmusch expõe essa contradição em cena, onde o país dos sonhos é o país em que ele está, mas que não passa de uma paisagem pouco contemplada.


Willie recebe uma ligação de parentes seus avisando que uma prima sua, Eva, teria que passar alguns dias em sua casa antes de viajar para Cleveland, onde sua tia Lotte iria abrigá-la, mas teve que ser internada. A chegada de Eva ao convívio de Willie não lhe vem a ser tão agradável. De maneira rude e indiferente, seguindo o tédio diário que, incrivelmente, o paraíso lhe proporcionava, ele segue tratando a presença de sua prima. Jarmusch coloca Eva como o elemento recém-chegado no paraíso. Portanto, para ela, o país ainda lhe era algo novo e os sonhos, teoricamente, ainda estariam verdes e vivos nela.

Como modificadora da rotina de Willie, direta ou indiretamente, Eva proporciona uma modificação discreta no modo como o primo a vê nesse convívio e um relativo afeto é posto na relação dos dois. Eddie, um fiel amigo de Willie, é outro daqueles perdidos, que crêem que a busca está além do espaço em que se vive, que tudo está lá fora, mas não chega a ser um sonhador. Por sentir afeto por Eva e vislumbrar na presença dela uma perspectiva de mudança de ambiente e rotina, Eddie tenta levá-la consigo para os lugares que sai com Willie (em geral, as apostas), mas sempre esbarra na negativa do primo, que seja em Nova York, seja na Flórida, sempre opta por deixar sua parente em casa. Porém é o próprio primo que propõe, mais tarde, uma visita a Eva em Cleveland, onde ela fora viver com a tia.


A narrativa do filme, fria, com uma câmera contemplativa e estática, onde não há cortes dentro de uma cena, faz uma analogia a essa frieza em que vivem os personagens, em seus diálogos breves, nas suas falas curtas. O pensamento é aquilo que sugere e o que espectador pode extrair como elemento para compreensão da profundidade dessas três criaturas que acreditam que o que é bom está sempre no outro lugar. Em Nova York, Cleveland ou na Flórida, nesse paraíso, nesse mundo novo, não importam as paisagens, não importam os termos que os levem a buscar uma diversão entre si, sempre estará presente o tédio, a inércia, a aparente frieza, a indiferença. O paraíso acaba sendo sempre um sonho, uma idéia que se dissipa assim que é concebida, uma imagem que se borra logo que o real é constatado.


Eva, o elemento modificar, em nada se modifica e nem modifica aos outros. Dela é que mais se esperava uma grande mudança, uma virada, no entanto, acaba tornando-se uma garçonete frustrada numa pequena lanchonete de Cleveland, morando com a tia que a controla e restringe sua liberdade, seu espaço. Mesmo ao tentar sair desse espaço, quando Willie e Eddie a reencontram um ano depois, nada é resolvido, tudo continua estático apesar dessa leve busca existente junto a eles. Eva tem a oportunidade de pegar um avião para qualquer lugar, ela quer qualquer canto da Europa o mais rápido possível, mas qualquer canto vai ser sempre o mesmo canto, o mesmo espaço onde a alma deles é impermeável. A estranheza, colocada no título, é o silêncio, o pouco contato existe entre eles, a pouca intimidade. O que os une nesse paraíso é o desejo de sair da rotina, largar o tédio, buscar algum desejo, algum sonho.


Eddie, personagem no qual reside a ironia e o humor do filme, é também aquele que percebe as situações e as traduz para quem assiste. Ele é aquele que descreve as belezas de uma cidade, as elogia, mas revela sempre ao final que nunca esteve em tal lugar. Ao constatar, em Cleveland, que por mais que tivessem vindo de tão longe pareciam que estavam no mesmo lugar, Eddie retrata para nós a fuga da monotonia construída em cima de uma imagem deturpada, pois onde quer que vá o sentimento será sempre o mesmo, o paraíso não vem e nem se modifica. A ironia de sua pergunta final, no aeroporto, parece se dirigir somente a nós, já que ele se encontra sozinho na cena: “mas o que é que ele vai fazer em Budapeste?”. Eddie não sabe, porém, que lá e cá não há diferença, o paraíso pode estar em qualquer lugar. E a vida seria, mesmo assim, tão diferente na América ou em Budapeste?

sábado, 11 de outubro de 2008

"Bonita lavanderia com gosto de mel" por André Antonio


O título do artigo relativo ao cinema britânico do livro Cinema mundial contemporâneo (lançado em 2008 e organizado por Mauro Baptista e Fernando Mascarello) é “Cinema britânico: realismo, classe e televisão pública”. Vamos nos deter sobre as palavras “realismo” e “classe”. Com relação a esta, não espantaria a Terry Eagleton que ela figure no título do texto em questão, pois, para ele, a tradição esquerdista inglesa é muito mais consistente, sistemática e ativa que a, por exemplo, norte-americana[1] (se é que esta de fato existe...). E, de fato, a questão da classe é uma das principais obsessões do áudio-visual britânico. Com relação à outra palavra, ela é a síntese daquilo que é criticado nos dois filmes aqui abordados: Um gosto de mel (Tony Richardson, 1961) e Minha adorável lavanderia (Stephen Frears, 1985).



Há um discurso que permeia o melhor da crítica de arte já há algum tempo e que pode ser sintetizado pela seguinte frase de Benjamin: uma “obra caracterizada pela tendência justa [no conteúdo e politicamente falando] deve ter necessariamente todas as outras qualidades (...) a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”[2]. Tal discurso está, em última análise, correto. No entanto, ele não pode legitimar julgamentos apressados e superficiais, que impedem um conhecimento mais profundo a respeito de certos artefatos culturais. No caso dos dois filmes aqui em questão, esse discurso pode considerá-los admiravelmente engajados e preocupados com importantes problemas sociais, e no entanto desinteressantes do ponto de vista formal e artístico, tornando-os dispensáveis num estudo mais sistemático a respeito de suas relações sócio-estéticas. O “realismo” do título do artigo, e que serve para mapear esteticamente esses dois filmes, está mais próximo de uma gramática cinematográfica mais tradicional e mainstream do que às revoluções do neo-realismo italiano. A subversão política do conteúdo desses filmes seria, por isso, cooptada a seguir pelo próprio sistema político-social que eles criticam, mas que lastreia esse realismo hegemônico. Mas as coisas são assim tão simples?



Minha adorável lavanderia é tido como o renascimento do cinema britânico, que ficou estagnado depois dos anos 60 que produziram os documentários do free cinema, as peças dos angry young men e os filmes socialmente conscientes (alguns são chamados de kitchen sink dramas) dos quais faz parte Um gosto de mel. Mas o fato de os dois filmes, apesar da distância temporal, se enquadrarem num mesmo mapeamento estético não é fortuito. Pois o que liga os dois é uma série de longas-metragens produzidos para a televisão pública inglesa com um objetivo que permaneceu (em pela era Thatcher!) o mesmo da década de 60 para a de 80 e conecta os dois períodos: concretizar em termos cinematográficos (ou áudio-visuais) as questões ou muito abstratas e amplas ou muito específicas e relativas da exclusão social dos mais variados grupos (raciais, étnicos, sexuais, de classe...).



O objetivo não era fácil. Esse tipo de cinema, segundo Mauro Baptista[3], almejava ser ao mesmo tempo popular, de qualidade e socialmente engajado. Eles conseguem? Um gosto de mel narra um trecho melancólico da vida de Jô, uma jovem de caráter forte (todos os personagens do filme, aliás, são brilhantemente construídos) de origem proletária que se apaixona por um marinheiro negro. Este, porém, tem que ir embora e deixa Jô grávida, logo quando sua irresponsável mãe vai se casar novamente, deixando a filha para trás. Contudo Jeffrey, o melhor amigo dela, um homossexual, a ajuda a levar a gravidez a cabo. Minha adorável lavanderia se centra nos temas de diáspora e imigração e conta a história de como Omar, um jovem paquistanês na Inglaterra (seu caráter, diga-se de passagem, é predominantemente english), começa a se transformar num importante homem de negócios em meio a um ambiente corrupto, e como ele lida com a dupla condição periférica de imigrante e homossexual (apaixonado pelo sweet and tender hooligan Johnny).



Para além de sua tradicional relação inter-planos e seus nada inovadores raccords, esses dois filmes conseguem concretizar, ao nível do sensível, questões sociais importantes (até hoje, é bom frisar), através, principalmente, da exibição bem sucedida de situações cotidianas vividas por esses personagens marginalizados, sem cair em paternalismos cínicos. O final aberto de Um gosto de mel sinaliza que tão cedo a vida de Jô não vai deixar de ser melancólica. Uma frase dita por ela num diálogo a certa altura do filme (JEFFREY: - Are you still in love with your black prince? JÔ: - I hate love), alegoriza a estética que permeia sutilmente o realismo do filme: o romantismo gótico (outra tendência forte e consistente na Inglaterra), com direito a bonitos planos num arco onde a voz faz eco. Já em Minha adorável lavanderia, a estética que aparece vez por outra ao longo da gramática realista é a dos anos 80 (se é que existe tal estética), menos na moda presente nas roupas e nos penteados (algo, hoje, tão datado que até o camp tem dificuldade em recuperá-los) do que na sutil trilha sonora; estética essa que tem algo da descoberta e da liberdade que vez por outras os personagens principais do filme experimentam.


Conclusões apressadas advindas do uso errado daquele discurso de que falei antes podem fazer com que os desdobramentos dessas constatações são sejam considerados. Esse discurso deve, assim, num caso como esses, ser acompanhado por uma moldura teórica ampla mais matizada, como a de Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados, onde filmes como esses são considerados como peças-chave (A1, A2, A3...) na formação geral de um sistema social-artístico melhor e novo (B). Já Fredric Jameson usa a moldura marxista para conseguir essas interessantes conclusões: todos os grupos específicos e não hegemônicos de uma sociedade que se utilizem de uma forma artística determinada, obrigatoriamente passam pelo estágio do realismo (o próprio realismo mainstream foi inicialmente o realismo de um grupo específico: a burguesia. Só que esse realismo conseguiu se universalizar e se impor como regra geral[4]).


Algo semelhante, do ponto de vista teórico, está acontecendo com a análise de certos produtos culturais mainstream (programas de TV, clipes musicais, reportagens, além de filmes) que se debruçam também nesses temas da marginalização étnica, racial, sexual, de classe, como o filme ganhador do Oscar Crash – no limite (Paul Haggis, 2004). O que os melhores críticos de jornal e da internet dizem, com propriedade e acerto, é que o ponto de vista burguês, conformista e assimilacionista de um filme como esse se torna mais desonesto e perigoso ainda por causa de sua estética midcult. Porém ainda não se foi além disso (qual a relação desse tipo de produto – e de sua estética – com a demanda dele na esfera pública?) nem se disse algo verdadeiramente interessante.


[1] Em Teoria da literatura, Martins Fontes, 2006.
[2] Em “O autor como produtor”, Magia e técnica, arte e política, Brasiliense, 1996.
[3] Em Cinema mundial contemporâneo, Papirus, 2008.
[4] Vale a pena acompanhar detalhadamente essa argumentação de Jameson em As marcas do visível, Graal, 1997.

"O BANDIDO DA LUZ VERMELHA" por Hermano Callou


O principal risco de se escrever hoje sobre O Bandido da Luz Vermelha é o de celebrar o caráter de ruptura do cinema de Rogério Sganzerla dentro de um discurso crítico que o torne inofensivo. Quando nos encontramos com O Bandido hoje, temos que lidar com toda uma herança crítica que tomamos contato direta ou indiretamente e que se coloca, de alguma forma, como mediadora da obra. Podemos agora, portanto, saborear, tranqüilamente, a disformidade e o caráter dissidente do filme, seguindo passo a passo as linhas do mapa que já foram traçadas. O que se desenha, nesse intuito, é um filme sem arestas, sedimentado em um bom gosto cinematográfico que a própria obra parecia rejeitar, pelo menos no momento em que foi fabricada. Se ainda faz sentido ver e procurar escrever sobre O Bandido da Luz Vermelha é porque algo ainda se mantém em suspenso e ainda resiste. O filme de Sganzerla ainda pode ser um campo minado.


O Bandido da Luz Vermelha foi uma reação à institucionalização do Cinema Novo como porta voz da consciência nacional e a uma crise política que, de maneira muito geral, pode ser mapeada como uma crescente descrença em qualquer tipo de teleologia histórica. O sertão continuava seco, o mar permanecia em sua placidez azul e nada sugeria que a situação viesse a se alterar. Se Terra em Transe soube materializar o desespero da crise por uma teatralização trágica do fracasso político, O Bandido da Luz Vermelha escolheu o riso nervoso, a gargalhada agressiva, a irônia absoluta. Enquanto o Cinema Novo, nos seus primeiros momentos, sempre se manteve em uma distância segura da cultura de massa, O Bandido implodiu distinções em uma poética inclusiva e voraz, que soube se apropriar da tv, do noticiário sensasionalista, do filme de ficção cientifíca B, do filme noir, da chanchada e das revistas em quadrinhos. O amálgama que surgiu destilava um sarcasmo francamente sombrio sobre a possibilidade de um cinema político edificante e conscientizador e, ao mesmo tempo, violentava o bom gosto de uma classe média alta que havia aprendido a apreciar o Cinema Novo.


O que eu acabo de falar - nada muito novo, evidentemente, haja vista o que já se escreveu sobre o filme - contribui pouco para entender o que significa O Bandido da Luz Vermelha hoje. Ao colocar O Bandido em uma perspectiva histórica, pode-se enclausurá-lo como resposta imediata a uma certa conjuntura política e cinematográfica e, portanto, pacificar em uma interpretação totalizante o que o filme possui de caótico. O Bandido se inicia com um letreiro luminoso, em que se lê “um gênio ou uma besta”. Em seguida, em um corte tipicamente godardiano, nos deparamos com a imagem de uma esfinge. Ouvimos, em voice over, a pergunta “quem sou eu?”, proferida por o assim chamado Bandido da Luz Vermelha (Paulo Vilaça), um assaltante de casas de luxo de São Paulo. O personagem é uma esfinge que propõe a se próprio como questionamento: figura que o filme tenta o tempo todo decifrar, sem sucesso. Policiais vagabundos, locutores de rádio enlouquecidos e o próprio bandido lançam um volume desordenado de informações pouco críveis a respeito do persongem, que nunca se torna completamente apreensível.


Se a indagação metafísica do início do filme sugere que o enredo permitirá um aprofundamento psicológico do seu personagem, o desenvolvimento do filme trata de mandar essa idéia para longe. Não há posto de observação seguro: Sganzerla não estabelece um personagem unificado, mas o apresenta como um entrecruzamento de vozes que nunca alcança unidade ou coerência. A voice over do personagem, narrando sua infância pobre, nos sugere o marginal da ficção realista, sua imagem nos remete a uma iconografia noir de homens durões, as notícias de rádio dos seus assaltos desenham uma figura típica do jornalismo sensasionalista, o comportamento anárquico do bandido nos lembra certo herói de alguns filmes de Godard, o personagem parece, em alguns momentos, saído de uma história em quadrinhos. A narrativa acompanha o mesmo impulso: fragmentação e caotização intensa, intertextualidade em expansão descontrolada, riso paródico de si mesmo. O Bandido ainda não perdeu a capacidade de nos desorientar.


Imagino o que seria se O Bandido abandonasse sua condição de marco histórico do cinema brasileiro e andasse pelas ruas novamente. O que teria ainda O Bandido para nos provocar? Em uma época em que o cinema que se propõe político apresenta questões e idéias já muito bem assentadas no mercado cinematográfico, O Bandido nos lembra que o cinema pode ser político não apenas no colorido temático, mas na própria carne: Sganzerla sabe que é preciso romper com a sensibilidade dominante se quiser quebrar a fruição do filme como espetáculo e colocar o espectador em questionamento.


O final do filme é, sem dúvida, o momento mais poderoso e terrivelmente belo da obra. Luz, o bandido, consegue enfim se suicidar. Amarra fios pelo seu corpo, em meio a um vasto lixão, e morre com uma descarga elétrica. Referência ao suicídio de Ferdinand em Pierrot le fou, de Godard, a morte de nosso personagem se encontra em uma sucessão de planos curtos e intensos, tal como o próprio filme do francês. Se a morte de Ferdinand era o fim de um projeto de existência nômade e livre, levado por um jovem burguês cansado da normalidade da vida social, a morte de Luz é a culminação de um processo de autodestruição, descentramento e apagamento de identidade. Uma catarse. Após o suicídio de Ferdinand, Godard, no entanto, nos oferece a redenção com um belo travelling lateral para o mar. A morte de Luz, ao contrário, nos apresenta o início do caos: fuzileiros navais, comunistas, ets ou não sei mais o quê invadem o Brasil. Com a atmosfera de um carnaval, mas também a de uma revolução, assistimos imagens fritarem na tela, histericamente: uma roda de samba com ares de macumba, disco voadores explodindo no céu, uma imagem de São Jorge pegando fogo. Máscaras disformes de noções de brasilidade, as últimas imagens do filme mantiveram sua beleza e violência por esses quarenta anos. Se o filme se inicia com um “quem sou eu” é curiosamente amargo que ele termine com o berro do locutor de rádio dizendo um “e daí?”

“Montenegro – Ou Porcos e Pérolas” por Eduardo Feitosa


Uma das primeiras cenas do filme parece bem familiar aos olhos e ouvidos do espectador. A imagem é de uma mulher assistindo ao pôr-do-sol num dique de um grande e calmo lago. Ao fundo, uma música típica dos anos 80 interpretada por Marianne Faithfull. A impressão é de que o público irá se deparar com mais uma película Hollywoodiana da década de 80 no maior estilo “Os Goonies”. Mas não tem nada a ver com isso. E Dusan Makevejev fez questão de deixar tal fato claro na única cena que antecede a imagem alaranjada e saudosista do pôr-do-sol. Um macaco estava alí, logo no primeiro minuto de filme, para representar o instinto animal. Viemos ao mundo para sermos o que queremos, ou pelo menos para tentarmos.
A história narra um choque de culturas vivido por Marilyn Jordan, personagem interpretada por Susan Anspach. Marilyn é uma dona de casa americana, mãe de dois filhos e casada com um rico negociante sueco. Sua vida parece estar cercada de casacos de pele e de um típico “vovô gagá da família”, que acredita ser Buffalo Bill. A protagonista está cercada pelas fúteis convenções da sociedade rica sueca e termina por tomar atitudes estranhas e incomuns, que variam entre sintomas de loucura e explosões instintivas de uma ser humana condicionada.
O ápice do filme se dá a partir do momento no qual a dona de casa conhece, por acaso, um grupo de iugoslavos que moram na Suécia. A vida desse grupo está marcada por uma intensa sensualidade, alto grau de violência e muito álcool. Apesar do “clima” diferente, Marilyn parece se acomodar e se divertir muito mais quando está com aquele grupo de estranhos do que com sua própria família. Dividir o banco de trás do carro com uma ovelha, tirar uma foto junto a um homem que tem uma faca enfiada na cabeça, dormir ao lado de duas pessoas fazendo sexo (e é incrível como nesse trecho do filme Makavejev consegue fazer os humanos parecerem eqüinos), e acompanhar o nascimento repentino do erotismo feminino numa camponesa desajeitada. Tudo isso parece estar muito além da rotina da personagem de Anspach e, por isso, a periferia se torna muito mais convidativa. A imagem de Marilyn tocando na ferida ensangüentada de um daqueles homens e, em seguida, lambendo o próprio dedo é a prova de que ela se sente parte daquele grupo.
Através de uma comédia pitoresca, irônica e repleta de “times” bem executados, pode-se dizer que Dusan Makavejev conseguiu mostrar-se um verdadeiro anjo pornográfico do cinema. O espectador compreende as suas críticas, sente-se atraído por aquela periferia sedutora e, acima de tudo, goza de cada take da película.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

"Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961)" por Hermano Callou




Nos primeiros momentos de Um Gosto de Mel, Jo (Rita Tushingham) conversa com uma colega de classe no banheiro, enquanto lavam as mãos. A colega pergunta se ela vai para o baile do colégio, à noite. Jo não pode ir: não apenas não possui roupa apropriada, como precisa se mudar novamente com a mãe. A cena em questão possui uma função narrativa clara, um tanto óbvia, é certo: trata-se de nos apresentar a personagem e nos sugerir sua situação social – saberemos mais tarde, inclusive, que o motivo de tal “mudança” é a impossibilidade de pagar o aluguel. O que nos introduz ao tom do filme, no entanto, é o que nos surge em seguida: meio aborrecida com a inconveniência da colega, Jo lava o rosto cuidadosamente, até se distrair e sorrir de leve para o espelho; em seguida, a garota sopra as mãos ensaboadas e forma uma bolha de sabão. O título do filme se justifica por esse e outros instantes de leveza que dão um sabor adocicado ao trabalho de Tony Richardson.


Exemplar do cinema novo britânico, Um Gosto de Mel se filia à tradição do realismo lírico no cinema e estabelece profícuo diálogo com o neo-realismo italiano. Jo é uma adolescente teimosa, freqüentemente sarcástica, de personalidade um tanto aborrecida, filha de uma mulher (Dora Bryan) pobre e deslumbrada com os homens que ainda pode possuir. Jo encontra em um marinheiro negro (Paul Danquah) a possibilidade de arejar um pouco a vida opressiva que tem com a mãe. O marinheiro, no entanto, é obrigado a partir e a mãe se casa, deixando a filha sozinha. Jo resolve trabalhar e levar a vida como pode e, nesse intuito, acaba encontrando um amigo, Geoffrey (Murray Melvin), garoto homossexual que passa a ajudá-la a cuidar da casa. Quando se descobre grávida do marinheiro que amou, Jo terá que enfrentar o retorno inesperado da mãe, abandonada pelo homem com quem havia se casado.


Tony Richardson trabalha em locações reais – que impregnam o filme com sua atmosfera suja e velha – e atores até então pouco conhecidos - cuja presença em cena dão ao filme um pouco de espontaneidade. A história narrada, ao mesmo tempo em que se dirige a uma realidade social que o cineasta quer entender e criticar, permite que os personagens adquiram vida própria. Richardson não cai no esquematismo que se poderia esperar de um filme que trabalha tamanha variedade de questões sociais (questões de classe, etnia e sexualidade). A verdade que aos poucos se destila de seus personagens não se justifica, portanto, por estarem amparados em um tipo social definido (o marinheiro negro, o gay, a adolescente pobre grávida), mas pela construção dramática do filme, honesta e generosa, que permite que seus personagens desenvolvam formas particulares de reagirem ao mundo.


O interesse de Richardson não está propriamente na abrangência que as questões retratadas possuem (embora o filme, por esse lado, também seja importantíssimo): seu olhar se mostra atento, na verdade, às pequenas zonas de escoamento em que a vida ameaça se tornar mais agradável - um passeio de montanha-russa, uma piadinha feita para o namorado, fazer um bolo para uma pessoa querida, uma brincadeira. O momento mais interessante do filme, sem dúvida, corresponde ao relacionamento de Jo e Geoffrey: uma pequena união solidária, uma espécie de casamento casto que os coloca à procura de coisas que signifiquem o cotidiano e que dêem prazer. Procura que tem, ao seu modo, um sentido político: trata-se de responder ao inferno do mundo, já dado de antemão, buscando sobreviver em suas pequenas brechas – um lugar em que Jo e Geoffrey podem rir e enfrentar os problemas do mundo. Um paraíso particular – frágil, como a bolha de sabão do início do filme.


Se Um gosto de mel alcança tanta graça, muito se deve ao trabalho de Richardson: uma sensibilidade precisa, que articula realismo e lirismo. Se, por um lado, os bairros proletários onde os personagens vivem estão relacionados a uma realidade social que interessa a Richardson investigar, por outro, as locações escolhidas operam um pouco como paisagens afetivas, espaços carregados de uma atmosfera particular e, por vezes, um tanto etérea (pensemos nas ruas vazias em que Jo e seu namorado circulam à noite). É possível perceber, nesse sentido, pequenos momentos em que o cotidiano assume certo encantamento: Richardson se arma de uma espécie de escrita do detalhe, capaz de recolher pequenas banalidades e banhá-las de afeto. O final do filme é um exemplo claro dessa proposta: uma festa de rua, uma fogueira, Jo caminha meio desiludida, uma criança se aproxima e lhe entrega um fogo de artifício aceso, soltando pequenas faíscas. Os últimos dias para ela não foram fáceis, o futuro é completamente impreciso, mas aquele pequeno objeto em sua mão ainda insiste em faiscar. O final, um tanto nostálgico, nos lembra que o filme também é sobre amadurecimento, sobre viver e sair da adolescência.

"De Godard, avec amour" por André Antonio



Sentimento

O espectador de A chinesa, ao longo da sessão, tem um sentimento singular que só é possível se o filme estiver sendo visto pela primeira vez. Esse sentimento pode sobreviver em sessões posteriores, mas de forma muito menos intensa e forte. Na verdade, é apenas a lembrança do sentimento arrebatador da primeira sessão que permanece numa segunda, numa terceira, numa quarta... Que sentimento é esse? É difícil descrever. Mas antes de tentar, é preferível falar de onde ele surge: da descoberta paulatina, pelo espectador, de uma linha narrativa escondida.

A única coerência que o espectador pode deduzir do filme, a princípio, é a seguinte: se há algo em comum entre os planos não-consecutivos e as falas aparentemente sem conexão, é o debate de questões típicas da esquerda política. O ano de produção do filme, 1967, dá, então, uma pista: ele é sobre a efervescência política que naquela época agitava vários cenários mundiais. A primeira conclusão, então, é a de que Godard quis expressar o que estava acontecendo entre a juventude de seu país contemporâneo. Assim, aqueles jovens meio malucos naquele cenário estranho seriam uma espécie de fantasmagoria que tentava condensar as energias revolucionárias da época. Nessa primeira formação do filme na mente do espectador, alguns fatos perturbadores, como a autoconsciência incômoda (um dos jovens apontando para a câmera que o filma antes de ela se mostrar ao espectador; um letreiro onde se lê “último plano”, antes de se ver o último plano...) e a montagem não-linear, são acalmados porque o filme “é de Godard”, cujo nome, mesmo para aqueles que se interessam pouco por cinema, é conhecido como sendo um dos mais importantes realizadores de “filmes de arte” – então, ninguém se choca com esses experimentalismos a mais.

Mas essa visão do filme muda – ou melhor, se amplia – na medida em que o espectador descobre a narrativa escondida por trás de tantas “abstrações”: os atores vistos ao longo do filme representam jovens esquerdistas revolucionários que estão, na verdade, na casa dos parentes de uma integrante do grupo. Lá, eles estão debatendo essas questões políticas, filmando tudo, planejando fazer um filme à altura do “teatro socialista” e até assassinar um ministro. O sentimento mencionado antes surge da conexão perfeita entre essa narrativa simples e aquela fantasmagoria experimental na forma da qual o filme se revelara a princípio. E agora, sem sucesso, a descrição desse sentimento: é o que se sente ao entrar em contato com beleza.


Presente

Mas se esse sentimento desaparece em uma segunda sessão, algo novo surge: a percepção de que o experimentalismo de Godard não chegou ao ponto de filmar e de montar de modo que quem analisasse o filme pudesse concluir: “ele é fiel e idêntico ao que um grupo de jovens rebeldes teria feito com uma câmera, dentro de uma casa”. É possível exemplificar com a seqüência já mencionada em que um dos personagens aponta com o dedo para a câmera e em seguida ela aparece. Há três planos: um com o ator apontando; outro com a câmera (que é filmada como se houvesse outra câmera atrás da cabeça do ator); e de volta para o ator, que tem um fundo branco atrás de si, não uma câmera. Ora, esse segundo plano, escancaradamente “olhar de Deus”, mostra que nem todas as tomadas foram feitas como se os jovens na casa tivessem consciência da câmera.

A chinesa, na verdade, se revela um amálgama de formatos: uma mistura de documentário caseiro, com vídeo experimental, com representação mainstream, com encenações teatrais... se aquele sentimento da primeira sessão surge da impressão de que A chinesa é na verdade um filme feito por aqueles jovens rebeldes, a segunda sessão não resiste à pergunta: “quem é a pessoa atrás da câmera?”. Não é nenhum dos jovens da casa. É Godard. Foi ele que fez o filme, pensado milimétrica e rigorosamente. Na verdade, o filme foi um presente de Godard, feito com amor para a juventude esquerdista (principalmente maoísta!) de sua época. Embora de realização complexa – para que o efeito pretendido fosse concretizado – a percepção do filme, embora chocante, se revela simples, como colocou Ruy Gardnier na Contracampo[1]: “Não é que seus filmes [de Godard] sejam complicados demais para a maioria dos espectadores; na verdade, eles são complicados de menos”. Diz Godard sobre o filme: "Se A chinesa se fechar completamente no cinema e não dialogar com os militantes, é porque o filme é ruim e reacionário".


Cores primárias

Não passa despercebido o uso constante de cores primárias (azul, amarelo, vermelho e branco) ao longo de A chinesa (e também em outros filmes do diretor). Os jovens da casa pintaram agressivamente as paredes brancas com essas cores (a irmã da personagem que conseguiu a casa para os amigos, no plano final do filme, limpa uma parede, dizendo: “mamãe e papai vão ficar furiosos”) e elas permeiam todo o filme, da roupa dos personagens aos letreiros. Essas cores podem ser vistas como a simbolização do começo. Em 1967, era preciso destruir tudo e começar de novo. Como disse uma das personagens do filme: “se eu tivesse coragem, explodiria as universidades e o Louvre”. Não é que um filme possa mudar o mundo; mas, quando o mundo está mudando, é preciso que a cultura também mude, acompanhando-o (uma das primeiras frases ouvidas em A chinesa é: “é preciso criar as condições objetivas e subjetivas da revolução). Assim como esse mundo, tal cultura tem cores novas, primárias: simples, elementares, iniciais, das quais pode se desenvolver e complexificar inúmeros caminhos. Essa destruição seguida de um novo começar lembra o conceito de barbarismo positivo, proposto por Benjamin ao analisar a vanguarda (cubistas, Klee, Bretch): “Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda (...) [esse bárbaro] rejeita a imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraudas sujas de nossa época”[2]. Godard era um vanguardista.


Vanguardista

Mas não só por isso. É preciso recorrer à distinção feita por Huyssen[3] entre modernista e vanguardista para matizar o fato. O primeiro faz parte de um movimento que começa com Flaubert; seus nobres membros produziam obras de arte “totais”, cujos méritos formais são sempre lembrados pelos professores de literatura, mas cujos subtextos machistas só há pouco começaram a ser desvendados[4]. Vanguardista, pelo contrário, faz parte de movimentos surgidos dentro do próprio modernismo, mas cujas produções estéticas contestam (e isso bem antes do pós-moderno) a distinção Alta/Baixa cultura, Arte/Cotidiano, pretendendo, assim, gerar as condições culturais paralelas às condições materiais que os movimentos sociais borbulhantes do século XX estavam preparando para a revolução. Godard era um vanguardista. Filmes como A chinesa não eram só políticos no conteúdo (apesar dos erros que hoje muitos identificam nos maoísmos extremistas de Godard), mas também em sua própria forma nova que acompanharia um mundo novo. Esse mundo, como se sabe, ainda não veio.


[1] Ver: http://www.contracampo.com.br/sessaocineclube/pierrotchinesa.htm
[2] Em “Experiência e pobreza”, Magia e técnica, arte e política, página 116.
[3] Em Memórias do modernismo.
[4] Ver o próprio livro de Huyssen e Teoria da literatura, de Terry Eagleton.

"Memórias do subdesenvolvimento" por Rafael Acioly



Memórias do subdesenvolvimento.
É inquietante tentar descobrir o que é o subdesenvolvimento, ainda mais quando estamos vendo a nossa própria existência ser estendida para a decadência.
“As palavras devoram as palavras e deixam você nas nuvens, a milhares de milhas de tudo. Como sair do subdesenvolvimento? (...) No subdesenvolvimento não tem continuidade. Tudo é esquecido, as pessoas não são conseqüentes. Você se lembra de muitas coisas. Demais. Você não é nada, está morto. Agora começa, Sergio, tua destruição final.”
No filme “Memórias do subdesenvolvimento”, de Tomás Gutierrez Alea(1968) apresenta o anacronismo da vida de Sergio, um homem melancólico, já no final de sua terceira década e vivendo o angustiante conflito entre se contentar com as suas lembras ou persistir na esperança de um futuro prospero ali mesmo onde gostara de viver. Protagonista da Cuba pós-revolução (1961) que divide com ele as mesmas angustias anacrônicas, na verdade, há uma insistência em acreditar positivamente na esperança. Mas, ao longo da película vamos conhecendo, aos poucos, as ausências que provocam ao cenário um ambiente com um mixe de paranóia, melancolia e calefação tropical. A presença cada vez mais constante destas faltas vai tomando conta da esperança e apodrecendo os frutos de um passado.
A distância entre a realidade e as esperanças ao final se torna tão explicita e esta exposta em um discurso radicalmente hermético de Fidel quando nega a fragilidade do subdesenvolvimento frente às ameaças militares do capitalismo dos ianques. É neste hermetismo que parece esta centrada uma das principais críticas do filme para uma possível revolução socialista. Enquanto isto, a ilha estava tomada por uma estrutura militarizada na insistência socialista que vai aos poucos se autodesenhando para o autoritarismo.
É assim que são tratadas a todo instante as “memórias” de Sergio no filme “Memórias do Subdesenvolvimento”: são lembranças de um homem “podre”, que não é mais sábio e nem mais maduro, tornara-se “mais estúpido e mais podre do que maduro”. E ao final Sergio conclui que no subdesenvolvimento “nada persiste, pois tudo amadurece e apodrece com facilidade”. Mas a esta altura, ela já no auge da sua desesperança, prefere suspeitar que isto seja por conta do fenômeno natural determinado pelos trópicos o que faz de cuba um pais quente e por tanto subdesenvolvido. Aqui podemos encontrar com a sutileza de Edmundo Desnoes (autor do romance que deu origem ao filme) e de Alea nesta mescla de imagens reais e ficcionais para questionar antagonismos paradigmáticos como, por exemplo, as definições deterministas do desenvolvimento ou subdesenvolvimento por polarizações entre norte e sul; capitalismo e socialismo; quente e frio...

"Minha Adorável Lavanderia" por Guilherme Carréra



“Minha adorável lavanderia” (My beautiful laundrette, Inglaterra, 1985) é um exemplar de filme-fetiche para os Estudos Culturais. Marco no cinema inglês oitentista, o longa-metragem de Stephen Frears congrega elementos caros aos interesses teóricos da corrente citada, servindo involuntariamente como objeto de estudo referente às noções representativas no cinema. O roteiro de Hanif Kureishi privilegia a idéia das minorias, colocando no centro de sua narrativa: um paquistanês e um punk londrino. Omar (Gordon Warnecke) se diz socialista, veio do Oriente, assim como parcela imigrante da população mestiça de Londres, e pretende ser alguém na capital inglesa. Johnny (Daniel Day-Lewis) é um neofascista pós-moderno, anda em gangues urbanas e parece ter como objetivo não ter o menor dos objetivos. Ambos estudaram juntos nos tempos de escola e agora, anos mais tarde, se envolvem, dando voz no roteiro à temática homossexual. Entenda-se aqui filme-fetiche não como elemento dissociado de um contexto cultural – mola cujo único sentido seria a dissecação acadêmica de suas problemáticas; em “Minha adorável lavanderia”, o senso estético, ainda que envelhecido pelas décadas passadas, estabelece sim diálogo com o cinema propriamente dito.
O filme conta a história do reencontro que resulta nesse romance. Nasser (Saeed Jaffrey), tio de Omar, a pedido de Ali (Roshan Seth), pai do protagonista, aceita o jovem para empregá-lo em sua falida lavanderia. Ali sabe que a vida na Inglaterra não é fácil para os estrangeiros, portanto, embora sonhe com o ingresso do filho em uma universidade, pede para o irmão um emprego para o herdeiro. De início, Omar seria um simples funcionário, mas logo o vemos assumindo a responsabilidade de restaurar e gerenciar a lavanderia do tio, conseguindo assim um status melhor. Para a nova empreitada, Omar contará com a ajuda de seu amigo de infância e adolescência. Johnny ressurge na vida do antigo amigo, formando assim a dupla central da narrativa.
O personagem de Omar carrega em si, dessa forma, as dualidades que sustentam esta narrativa. Ser o estrangeiro em outro ambiente, a ausência do lar de origem e, ao mesmo tempo, a sensação de não-pertencimento ao local que se tornou sua morada. Além disso, há o homossexualismo disfarçado perante seus conterrâneos e parentes. A orientação sexual de Omar também o coloca na zona do ambíguo: ele deve se casar com a jovem Tânia (Rita Wolf), cuja nacionalidade é igual a sua, mas quem ele parece amar de verdade é Johnny. Quando um colega da gangue urbana de Johnny diz, em determinado momento do filme, a frase: “todo mundo tem que pertencer a alguma coisa”, é como se o roteirista conectasse a sentença não somente aos dois personagens em foco, mas a todo descentramento que parece assolar Omar, símbolo da idéia pós-moderna de sujeito do entre-lugar.
O que se estabelece entre Omar e Johnny, no entanto, é revestido do que se pode chamar de uma memória magoada. A relação dos dois foi marcada pela adesão do londrino a um neofascismo militante. Em uma das passeatas das quais Johnny participava gritando “imigrantes, fora!”, Ali e Omar o viram materializando o xenofobismo que tanto feriu o orgulho nacionalista deles. O desrespeito à questão racial impede a entrega sem ressalvas de Omar à possibilidade de felicidade trazida pelo envolvimento afetivo. Ainda no presente, por parte dos punks que circundam o sul de Londres – área na qual a lavanderia se instala – Omar continua a ouvir comentários preconceituosos (“volte para sua terra, mestiço!”).“Powders” é o nome dado ao estabelecimento. Reformado e inaugurado, ele torna-se palco de revelações na trama. O uso do local como ponto de virada na narrativa reafirma o caráter de personagem que o ambiente possui. A lavanderia, além de função simbólica ao reunir paquistaneses e punks movidos pela vontade de crescer financeiramente, é mais um personagem do filme.
Chamam a atenção no desenrolar da obra dois pontos que, se não se completam, ao menos perpassam a idéia de pertencimento: a necessidade de ser alguém em um país estrangeiro e a resignação diante do desejo de um regresso. Por mais que “Minha adorável lavanderia” atente para a resistência das minorias, às políticas identitárias e ao retrato da margem periférica londrina (preocupação irrevogável da corrente teórica dos Estudos Culturais), as estratégias narrativas parecem convergir para a discussão do sujeito desreferencializado, distante do que foi e do que pretende ser. Seja quando Omar afirma categoricamente que não quer ser derrotado por este país (a Inglaterra), seja quando Ali se resigna e diz que tal país acabou com a vida deles, o espectador compreende que a real tensão está inserida na idéia das impossibilidades, tanto de um regresso ao que se tinha quanto de atingir o que se quer ter. O “devíamos estar em casa” proferido por Ali parece nos dizer que o pior do não-pertencimento é quando ele não consegue ser refutado. Sobram a impossibilidade e a resignação.