terça-feira, 24 de julho de 2007

"O abraço repartido" por Nataska Conrado


A partir da dissecação desbotadamente melancólica e risonha da vida de Ariel ao decidir se perguntar sobre si mesmo, é recriado um microcosmo inspirado nas diversas situações mundanas contemporâneas. Paredes de vento nos pensamentos de um jovem argentino permitem que suas frustrações e idéias sejam compartilhadas.
A garimpagem pela identidade pessoal de Ariel e de seu círculo de relações está em paisagens de uma Argentina multicultural com emulsões de uma vida social descompassada e fragilizada economicamente. Tentando conseguir um passaporte polonês maquiado por um conhecimento raso sobre suas origens, percebe-se nele um desejo de "resetar" sua vida ao mesmo tempo em que se investiga no vazio que, muitas vezes, parece o preencher de apatia.
A expressão de seu auto-reconhecimento também está nas suas fisionomias desanimadas, tensas e confusas assim como na reconstituição de seu passado, quando, por exemplo, resolve ver um vídeo caseiro que mostra o dia de sua circuncisão e quando se questiona sobre o "desaparecimento" de seu pai. O desejo de conhecê-Io esbarra num aparente medo de se confrontar com o pai e consigo mesmo e de acalmar suas angústias, que, ao que parece, foram as fontes dos propósitos e movimentos de sua vida até então.
Diálogos aparentemente quentes com a mãe, mornos com a avó, frios com o irmão, os amigos, o rabino que casou e separou seus pais e com pessoas que pertencem ao seu universo acrescentam substância a sua existência e desmontam/remontam as percepções e suposições sobre o que conhecia de si e dos outros.
Os conflitos de Ariel, armados principalmente a partir do circuito relacional construído pela loja de lingerie da família, que fica num centro comercial, e pelo próprio ambiente do centro comercial, são trêmulos e rarefeitos, porém acumulam uma carga simbólica que liga a ficção (como parte) à realidade (como um todo representacional).
Há, no desenrolar do filme, um quê de realidade nos personagens e nas situações que eles estão envolvidos. Isso não apenas porque trata dos descentramentos pós-modernos, mas porque possui movimentos de câmera que aceitam os ruídos naturais do olhar e conseguem somar uma carga representativa intensa às imagens do filme. Um outro apontamento possível é sobre o texto fílmico que, com o auxílio de alguns subtítulos, parece dialogar mais claramente com a linguagem da Literatura, possuindo uma narrativa que sutilmente lembra o conto.
Ao pressentir o que está por vir como primeiro indício do que é o abraço partido a que se refere o título do filme, acumula-se a carga necessária para dar um sorriso no canto da boca com a confirmação da suspeita na cena que elucida a questão. A aflição que carrega a ação expressa no título do filme se converte numa sensação bonitinha.
Partido não é só o abraço do pai no filho, é o abraço da ficção na realidade. O filme é uma metonímia de alguns dos sentimentos de mundo que constituem a vitalidade nos tempos atuais. O abraço se reparte em quem vê.
Os retratos movimentados do contemporâneo feitos pelo diretor Daniel Burman possuem os contrastes que a "vida real" tem. Com singeleza, da agonia da dúvida à esperança do novo, O Abraço Partido é uma das faixas do "lado b" de um disco que toca os hits do contemporâneo.

sábado, 14 de julho de 2007

"O abraço partido" por Talita Marques


O abraço partido


Mario Vargas Llosa chama de “o dado escondido” uma espécie de hiato que pode existir em um romance, uma lacuna premeditada que faz o leitor conjecturar sobre a obra, enriquecendo a troca. Digamos que a obra de Daniel Burman possui esse interessante predicado. Alguma explicação não-arbitrária falta, a composição dela não segue bem uma convenção e, também por isso, O Abraço Partido é um belo filme.
Ariel largou o futuro como arquiteto e uma namorada de anos e passou a trabalhar com a mãe em uma loja de lingerie. A loja fica em uma galeria decadente de uma Argentina igualmente empobrecida, com inquilinos de diversas nacionalidades.
O personagem, achando não pertencer àquele lugar, enfrenta os trâmites para conseguir um passaporte polaco, por isso se reaproxima da avó, que há muito evitava. Passa o tempo livre com a esquisita espécie-de-namorada, que trabalha no cybercafé ao lado da loja de calcinhas. O irmão, com quem tem uma relação bastante amigável, também participa do comércio local, vende produtos importados de procedência e funcionalidade duvidosas.
A mãe é judia, mas não exatamente típica, apesar dos bolinhos nunca faltarem. Mesmo tendo o marido a abandonado, possui por ele devoção grande, que só depois Ariel traduz como culpa.
No terceiro dos quatro filmes que o diretor trabalha com Daniel Hendler, há espaço para cenas fantásticas, como a do casal da realeza coreana que de lá escapuliu e agora vende feng-shui na galeria ou, ainda, o fabuloso conserto do rádio número 30.
O abraço partido fala da vontade castrada de gostar de um pai que se foi sem muito ser explicado. Não apenas o ócio recorrente na vida de Ariel o fazia pensar muito no pai; a ele apenas havia sido contado que seu pai fora, nos anos 70, lutar no Yom Kippur e, por vontade própria, não voltara.
As informações suprimidas por toda a vida eram responsáveis por sentimentos ininteligíveis para Ariel e que, possivelmente, impediam-no de entrar no mundo adulto. Há constante incoerência na relação do filho com o pai, Ariel parece lutar todo o tempo para sufocar o amor e a admiração que sente. Não queria falar com ele quando telefonava e, concomitantemente, negava-se a comer na lanchonete por conta do famigerado episódio da maionese estragada.
Uma seqüência de acontecimentos ordinários vai entrecortando a história do filme e dá a ele uma dinâmica particular. O filme poderia ser inserido no grupo dos que, aparentemente, falam sobre coisa alguma e que mostram esse nada de uma maneira delicada, sem espetacularização ou maneirismos. E com boas interpretações e um roteiro capaz.