domingo, 30 de maio de 2010

"Antes da revolução", por Filipe Marcena


No alegórico If..., do diretor Lindsay Anderson, a protagonista é College House,
uma típica escola britânica para meninos que serve cenário para os personagens. Como Mick Travis (Malcom McDowell, antes de estourar com Laranja Mecânica) que, assim como seus colegas, está voltando para as aulas após férias. Com um denso bigode, reflexo de sua ainda pueril rebeldia, Mick detesta o ambiente escolar. A College House funciona como uma ditadura, onde a obediência e a disciplina andam sorrateiras pelos corredores à procura de um infrator. O diretor escolhe alunos Seniores para ajudar no controle dos alunos Junior, utilizando métodos violentos de repreensão. Mick também acredita na violência, mas tem uma concepção própria, idealizada sobre o assunto. O choque entre opressão e rebeldia atinge o estopim quando Mick e seus amigos são penalizados por beber na escola.


Inspirado em Zero de Conduta de Jean Vigo, If..., que apesar de fazer parte no divisor ano de 68 e de ter absorvido as influências da contracultura, foi filmado meses antes do evento mais significativo do movimento, as revoltas estudantis em maio daquele ano. O filme de Anderson capturou o espírito jovem em voga quase fez um presságio dos atos rebeldes que aconteceram logo em seguida, e ainda soam controversos se pensarmos nos famigerados casos de alunos invadindo suas escolas com metralhadoras. Teorias defendidas à parte, If... é de um apuro técnico primoroso. Anderson trabalha sobre uma atmosfera repressora, com os imponentes cenários da escola representando não só uma instituição de ensino de método rígido, mas quase um presídio. Tanto que na única sequência onde dois personagens saem para a rua, o filme se desprende da narrativa e se desenrola livre e imprevisível, exibindo a mesma sensação de liberdade dos protagonistas. As tomadas em preto-e-branco, tão questionadas na época, foram uma escolha técnica resultante de um defeito de iluminação, e que acabou se tornando um estilo. E o filme ainda evita trilhas sonoras, utilizando-se apenas de canções de coral de garotos nas cartelas que dividem a narrativa em capítulos, o que acrescenta na atmosfera alegórica.

If... foi um sucesso surpresa de bilheteria, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes e influenciou uma geração, o que serviu como mais uma prova de seu acerto na representação do zeitgeist de 68, para a surpresa da Paramount, que investiu pesado no fiasco Barbarella no lugar do filme de Anderson. Trunfo de um filme que sobre transportar o macro para o micro de forma audaciosa, ressonante e até mesmo fantástica, especialmente em seu final de abordagem quase surrealista, cheio de fúria. Um clímax horripilante que encerra o filme de maneira assustadoramente profética. Na época, muitos protestaram contra a violência de If..., colocando-a em questão algo incitador. Engraçado como o filme parece ser um contra-argumento em si mesmo, especialmente por causa de seu intrigante e desafiador título.
Um dos filmes mais importantes da new-wave britânica.

"Beber, cair, levantar; Beber, cair, levantar; Beber cair levantar", por Victor Laet


“Tudo começou no sábado” começa numa sexta-feira. Uma sexta-feira maçante marcada pela feitura de peças industriais, pela repetição mundana e massiva de um trabalho inerte, estéril, o qual tende a reificar seus atuantes, deixando-os num estado de indiferença quanto ao futuro e um morno gosto a um conformismo industrial. Palavras e pensamentos chatos, não? É só para enfatizar a quão tediosa a sexta-feira é mostrada.

Ao tratar de assuntos como marasmo na vida, a inércia, a falta de vontade, o longa do radicado britânico Karel Reisz se mostra um surpreendente filme – e as surpresas já começam no título: “Saturday night, Sunday morning” não é a duração da história no filme, mas o espírito dos anos ingleses chefiados por Macmillan e Home. Uma soma de espíritos conformados do pós-guerra com espíritos influenciados pelo eco das frases cínicas ditas por Bogart e os bordões encourados de Brando.

Por vezes o roteiro (assim como o livro, ambos assinados pelo recém-finado Alan Sillitoe) parece atacar impiedosamente a mediocridade. O que para uns é visto como uma vida simples, neste filme cinza é apontado como uma vida medíocre. Uma mediocridade germinada num pós-guerra que plantou um contentamento conformista nos homens: vindos dos anos da guerra, sem empregos, a então juventude se satisfez com o fato de estar trabalhando, deixando de lado almejos e adotando uma filosofia de predestinação mecânica. A vida não era boa, mas não havia porque reclamar: todos estavam empregados; era isso o que importava. Assim a idéia de ‘aqui estamos, daqui não saímos’ influencia a cabeça da juventude sucessora, impossibilitando-a a querer sair daquele cotidiano. Não fica muito difícil, então, levantar a bandeira do “I'm out for a good time - all the rest is propaganda!” (1) – como assim faz o protagonista.

Arthur, interpretado por Albert Finney, trabalha somente para poder desfrutar de roupas caras, falso status, alcoolismo e relações adúlteras. A trama tem seu ponta-pé ao revelar uma disputa de bebedeira num bar. Mostrado é o jovem Arthur com sua personalidade nervosa, esnobe e alcoolizada. A presença do álcool nos primeiros minutos do filme acaba sendo mais do que divertida, pois serve como apoio para uma sugestiva visão social daquela juventude inglesa: “Saturday night” seria todo o aspecto da maravilha, ebriedade, entorpecência, êxtase causados graças aos coeficientes do etanol, enquanto “Sunday morning” serviria como a ressaca, a consciência, o enxergar dos problemas – a mudança parece não ocorrer porque o sábado (Saturday) sempre precede o domingo (Sunday)(2).

As duas personagens principais do filme são vividas por Shirley Anne Field e Rachel Roberts, respectivamente Doreen e Brenda. Doreen é solteira e representa outro ponto a ser criticado pelos realizadores britânico neste filme: partindo de uma idéia de personagens de proletário (todavia sem adotar uma ideologia comunista(3) ), as mulheres desse proletário, como Doreen, tem suas aspirações moldadas pela comunidade a qual pertence, fazendo com que estas não ultrapassem o viés de casar-se com um homem trabalhador, ter uma casa e estagnar (esse é o verbo chave, pois durante a ‘trilha evolutiva’ dos jovens no filme, todo o querer de futuro nunca leva a uma de idéia de estabilizar e sim a estagnar-se na vida e aceitá-la) reconhecendo seu papel de submissa e tendo uma vida de dependência do marido. Sabido isso, Brenda pode ser vista como a evolução de Doreen. Brenda é casada e traí o marido com Arthur, uma traição fundamentada apenas na ociosidade de dona de casa onde os problemas conjugais são, não inexistentes, todavia pífios. Não obstante, engravida do amante numa época onde métodos anticoncepcionais e aborto eram ilegais(4).

Talvez a sequência mais impactante do filme se dê minutos pertos do término do filme. Dias antes, Arthur escuta da tia Ada (Hylda Baker) que chega uma hora na qual todo homem deve enfrentar a realidade, tomar as rédeas de quaisquer situações. Ao se deparar encurralado em um brinquedo giratório num parque de diversões, a subjetiva revela imagens distorcidas, movimentadas muito rapidamente, o que intensifica o receio do personagem. A inércia (que se mostra durante todo o longa-metragem social e a qual ele despreza, mas abraça ao mesmo tempo) deseja ejetá-lo do passeio para que assim, ele possa enfrentar seus erros. Não porque ele precisa tornar-se homem e largar a rebeldia sem causa juvenil, mas só porque, simplesmente, a inércia funciona assim, logo, a vida é assim.

Karel Reisz cinematografou não somente uma forte crítica assim como Allan Sillitoe não apenas roteirizou um brilhante livro. A importância de “Saturday night, Sunday morning” se desprende de prováveis listas de “os 1234567890 filmes que você tem de ver” ou de influenciar a cultura pop-alternativa dos anos 70, 80 e início do século XXI. Somente a idéia de tratar o sábado à noite como apogeu e domingo de manhã como queda valeria, mas não, eles vão além ao brindar público e crítica com uma trama tão verdadeira.

Victor Laet
Sete de maio de 2010

e como diriam o arctic monkeys no seu mais do que (por este mesmo filme) influenciado primeiro álbum: “last night what we talked about, it made so much sense; but now that the haze has ascended, it don’t make no sense anymore.” (5)


NOTAS:
1. “Arthur: I'll have a fag in a bit, no use working every minute God sends. I could get through it in half the time if I worked like a bull, but they'd only slash my wages so they can get stuffed! I'm out for a good time - all the rest is propaganda!”


2. Talvez esse site dê uma melhor idéia da ‘tese’: http://picnic-land.com/2009/04/saturday-night-and-sunday-morning.html

3. Uma característica presente desde os primórdios do cinema britânico: mostrar o coletivo, os trabalhadores – seja por ficção ou não – mas sem aderir à ideologia esquerdista.

4. “Aunt Ada: It's not right is it, I think men get away with murder.
Brenda: They do, don't they?”
5. “From Ritz to the Rubble”, Arctic Monkeys, Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not, Domino Records, Inglaterra, 2006

sábado, 29 de maio de 2010

"Blow Up" por Renato Souto Maior


A visão artística condicionada a um olhar específico através de uma lente serve como elucidação para o verdadeiro sentimento de poder que tal artifício - o da câmera - pode proporcionar. Em Blow Up Thomas, fotógrafo aparentemente renomado, permanece quase todo o tempo em seu pedestal de artista arrogante munido de sua arma fotográfica impiedosa. Do alto de sua consciência burguesa estabelecida, consolidada e até então imune a qualquer tentativa de quebra desta condição, ele seguirá coerente a sua posição “privilegiada” de burguês poderoso. Em seu estúdio de moda Thomas trava batalha com suas pseudo-modelos suficientemente estúpidas e incapazes de agradar por completo o artista; ele impõe de forma grosseira e seca seus comandos, e ordens. Em uma das sessões fotografa a exaustão uma de suas modelos, em uma interação quase sexual, onde ele se ajoelha sobre ela, grita, ordena posições, em tom de cansaço, para logo em seguida sair imediatamente em retirada de descanso em seu sofá. O controle, obviamente, não ousa sair de suas mãos; o tem a todo instante. Até o dia em que, vagando por um parque, em busca de alguma coisa que fuja daquele mundo plástico de seu estúdio, depara-se com mulher acompanhada a dançar e correr pela grama. Aquilo desperta um interesse fulminante no fotógrafo, que com sua câmera em punho registra uma série de reações e momentos da desconhecida; esta, que ao percebê-lo, corre em sua direção e em tom de desespero clama pelo negativo. A partir daí um jogo de sedução e tortura emocional se sucederão no estúdio de Thomas, em um dos poucos momentos do filme onde o diálogo se faz complemento significativo da ação.

A trama subseqüente ao encontro com a mulher do parque se resume em uma virada de perspectiva do protagonista; sua até então inconteste arrogância encontra-se passível de mudança, e as fotos da mulher, uma obsessão sem volta. O estado de conforto antes garantido acaba por estabelecer novas perspectivas. Não é uma mudança brutal e completa, mas o vislumbre de algo além, que não estava ali. E tudo isso vem à tona por meio de uma foto em particular, do parque, onde Thomas vê, na verdade, um homem deitado no chão, o que depois se revelará em alguém assassinado. Não existe mais ligação com a mulher, ela foi embora carregando aquilo que pensa ser o negativo tão desejado, e não apareceu mais. Ele a procura, mas sem sucesso. Então lhe resta, apenas, o amontoado de fotos daquele dia, e uma tentativa de solução, também frustrada. Mas a mudança se dá pelo incontrolável; justamente pelo “inesperado”. Acostumado ao controle total de sua obra, por ser a câmera, e “enquadrar” sua visão das coisas nas imagens, aqui, pela primeira vez, a consciência sobre sua imperfeição grita. Ao fazer recortes e ampliações das imagens Thomas redescobre uma dimensão até ali desconhecida por ele; é como se até em uma imagem supostamente comum houvesse algo a se descobrir, escondido, em sua composição; é tudo uma questão de olhar. A grandiosidade do artista e de seu intencional controle sob o ambiente ao seu redor tomam proporção menor ao se aproximar da imagem capturada.


Ao realizar a nova perspectiva, Thomas vai em busca de respostas, decepcionando-se com o que vê e encontra pela frente. Em uma festa “burguesa” onde pessoas se drogam e deixam-se levar completamente – em uma óbvia crítica a tal da burguesia alienada e drogada – ele não se identifica mais como integrante daquele grupo, existe um desconforto claro ali. Logo depois, quase ao final do filme, ele reencontra um grupo de supostos “baderneiros” de rostos pintados, palhaços, que simulam um jogo de tênis em uma quadra; praticam o esporte sem bola ou raquete, “interpretam” a partida. Thomas observa de perto o grupo e em um determinado momento lhe pedem para recuperar a bola recém caída aos seus pés; mas não há bola, primeiramente pensa Thomas. Não importa, pois, como ele mesmo descobrira há pouco, nada é o que parece, totalmente. Assim, ele abaixa-se, segura a “imaginária” bola em uma das mãos, e a arremessa, entregando-a novamente ao grupo. Naquele momento Thomas situa-se totalmente na nova realidade de sua vida.

Antonioni orquestra com excelência todos os elementos de Blow Up; desde a trilha curta, mas marcante, até a fotografia viva. Seu filme se desenrola na típica e moderna Swinging London; os penteados, a banda de rock, a moda, a rua: tudo remete ao momento. A construção de Thomas denuncia a vertente crítica do diretor em relação à burguesia londrina; o personagem é arrogante ao extremo. Sua pretensão artística é denunciada como algo falso; na passagem onde ele saí de uma fábrica no meio da massa operária, meio que misturado, apenas para conseguir fotos pseudo-políticas possivelmente integradas a um livro futuro a ser lançado; é colocada, então, essa questão da fotografia de arte como refúgio do assumidamente fotógrafo de moda, de publicidade, em uma relação com uma certa culpa burguesa em ser o que é, onde o escapismo artístico e verdadeiro serve como alívio para o que se é. O trato de Thomas com as mulheres, em especial na sequência onde ele exerce mais um de seus jogos perversos com duas pretensas modelos, nem um pouco vitimizadas por Antonioni, em uma clara relação de troca por sexo, e só. É como se ele não fosse tão culpado assim, e pudesse justificar seus atos pelo medíocre argumento de que “não criou o mundo”; ele apenas reproduz seu poder “socialmente” permitido sob supostas vítimas que não hesitam em participar do sistema e desenrolar seus papéis de subservientes. A crítica a burguesia existe, mas sem vitimar em demasiado o outro lado, supostamente controlado por completo. A perversidade da relação se faz legítima por uma consciência, mesmo que limitada, dos dois grupos. Thomas percebe algo novo, mas não necessariamente mudará. Possivelmente não o fará, tornando-se mais amargurado, apenas.

"Rapadura também é doce, mas não é mel!", por João Roberto Cintra


Mãe e filha que se detestam. Flerte entre uma menina (branca) e um marinheiro (negro). Aberta discussão sobre homossexualidade. Tudo isso em um filme feito há quase 50 anos! Como uma obra com todos esses elementos pode se chamar “Um gosto de mel”?

Dirigido por Tony Richardson, e baseado numa peça de Shelagh Delaney (que co-assina o roteiro), o filme é um primoroso exemplar dos “dramas de pia e cozinha” que retratavam o universo da classe operária inglesa, tema de vários outros filmes dessa época. Em especial o filme traz uma mulher como protagonista (mais uma ousadia), colocando esse universo feminino (tão sagrado em épocas anteriores por donas-de-casa compassivas) mais realista, ordinário – e até cruel.

Jo (Rita Tushingham) é uma adolescente pouco graciosa e até deslocada. Aparece logo no início do filme lavando o rosto, olhando-se no espelho, desajeitada e infantil. Mora só com sua mãe, Helen (Dora Bryan), que não vive exatamente como seu papel social designaria: mãe solteira, chegada a bebida e festas, por vezes promíscua, parece viver a adolescência tardia e não sente responsabilidade pela filha. Em resumo, Helen seria aquela colega de classe de que toda mãe imediatamente mandaria a filha se afastar quando a conhecesse. Ora Jo vive seu momento: como meninas da sua idade, diverte-se na escola e tem seus namoricos – é quando conhece o marinheiro negro (Paul Danquash) – um escândalo que ela parece não se importar – e com ele passa uma noite. Ora ela entra em conflito com a mãe rebelde, numa inversão de papeis. Os diálogos entre as duas são realistas ao ponto de se tornarem cruéis – ou amargas – saídas da boca de uma mãe, cândida figura da cultura cristã ocidental.

Jogada no mundo por Helen (que se casa e não leva a filha consigo), Jo conhece Geoffrey (Murray Melvin), com quem passa a morar – que logo se torna seu heroi, a segurança que nunca conheceu antes. Poderia ser o galã... se não fosse gay. E é surpreendente a aparição de um personagem homossexual nessa época, com tanto destaque e tendo sua sexualidade tratada de forma tão aberta – mesmo que seja para ouvir palavras maldosas da matriarca e seu marido da vez. Verdadeiro salvador de Jo, quem a tira de seu mundo ordinário e põe um pouco de sabor em sua vida, e com a qual se importa de verdade, é posto para fora de casa com o retorno de Helen, após o fracasso de mais um casamento, levando a doçura que Jo e o bebê que esperava poderiam experimentar. Pobre Jo. Involuntariamente grávida, seria mãe sem saber a quem copiar – a não ser a mãe solteira que teve, com quem nunca soube lidar.

Todos os personagens, tão carentes, mas sem saber como agir com o outro, se atraem por essa ânsia de contato, mas se repelem pelo gosto agridoce do sentimento, que só os pequenos gostam sem procurar entender – como uma sobremesa antes do jantar. Talvez isso explique a recorrência de crianças brincando ao longo do filme, além do tema musical infantil usado. Ou mais que isso. Do começo ao fim do filme, mesmo com todas as experiências e turbulência, há um tom infantil na figura de Jô, boca semiaberta, indagando o mundo – como na imagem congelada do menino Doinel, no final de “Os incompreendidos”, de Truffaut. Doinel e Jo. Infância pouco tranqüila e com adolescência interrompida por uma maturidade precoce, desorientada e indesejada. Rapadura também é doce, mas não é mel.

"O Criado (The Servant), de Joseph Losey, 1963" por Igor Calado


O diretor Joseph Losey, norte-americano de tendências esquerdistas, fugiu de seu país com a carreira acabada após ser listado como “subversivo” no período McCarthista, no início da década de 50. Exilado na Inglaterra, Losey reinicia penosamente sua carreira e, eventualmente, trava contato com o escritor e dramaturgo Harold Pinter, também de forte tendência política e esquerdista. De modo independente, ambos já tinham interesse de adaptar a obra literária “The Servant”, de Robin Maugham e, depois do contato, surgiu uma prolífica parceria artística que resultou em três filmes: “O Criado”, “The Accident” e “The Go-Between”, que constituíram todos sucesso de crítica e trouxe fama internacional para ambos, bem como diversos prêmios (entre Bafta, Cannes e outros).

A trama: em Londres, um rico e jovem aristocrata britânico, Tony (James Fox), procura um mordomo à moda antiga para lhe suprir todas as necessidades, agora que seu pai faleceu e que comprou uma nova casa. Apesar da decadência da função do mordomo já naquela época e do estilo de vida jovem e irreverente de Tony, o encontro com o tradicional mordomo Hugo Barret (Dirk Bogarde) lhe confirmará que um gentleman é essencial em sua legitimação como aristocrata e que não poderia haver ninguém mais adequado ao cargo que ele. Mas o que lhe parece ser um empregado completamente devotado vai mudar bastante, numa inteligente lógica de deturpação da hierarquia clássica.

Apesar do bom relacionamento que se estabelece entre Tony e Barret – principalmente por parte do primeiro – o exato oposto acontece entre Barret e Susan: mesmo antes de conhecê-lo, Susan se sente desconfortável com a idéia de um mordomo, e, tendo-o conhecido, a antipatia se formaliza, de ambos os lados, através dos pequenos incidentes domésticos. Susan se sente incomodada com a presença e por vezes a falta de privacidade que acarreta a existência de um mordomo na casa e, mais tarde, com a crescente influência e dependência de Tony por ele, fazendo-a sentir-se de certo modo ameaçada, criando-se uma pequena batalha muda de dominação e poder entre ela e Barret.

Mais tarde, Barret introduz na casa de Tony sua irmã Vera, para trabalhar como empregada. Vera, bem menos formal e educada que Barret, irá logo se aproximar de Tony e conquistá-lo. Mais tarde, porém, Susan e Tony descobrem Barret e Vera na cama e ele revela que não irmãos e sim amantes. Ele ainda revela o caso que Tony também tem com Vera, destruindo seu o relacionamento dele com Susan. Hugo e Vera vão embora, seguidos por Susan.

Hugo volta, mais tarde, a trabalhar na casa, pela clemência de Tony, dizendo ter sido enganado por Vera. Tendo retornado, o relacionamento dos dois mudou dramaticamente: ao contrário da fria, cordial e confortável ligação patrão-empregado, há uma intimidade conflituosa entre os dois que desequilibra a hierarquia tradicional. Agora mais próximo de Tony e tendo tirado Susan do caminho, Hugo se entrega com força à destruição psicológica de seu patrão, no ambiente claustrofóbico e angustiante que se tornou a casa, onde os dois vivem reclusos. A tarefa não é tão difícil para um homem habilidoso como Barret, que tem em mãos um jovem inexperiente e com feliz interesse por álcool. Através dos jogos infantis travados entre os dois, com efeitos psíquicos assustadoramente amplificados pela reclusão em que se encontra Tony, e na exploração do seu vício pelo álcool, Barret consegue, por fim, sua vitória, transformando Tony num ser bizarro e decadente, que cortou completamente seus laços com qualquer pessoa, exceto Hugo, o fiel mordomo que sempre sabe o que lhe apraz e que lhe supre todas as necessidades.

Do ponto de vista estilístico, é clara a influência de Pinter, reforçada pela direção de Losey. Há uma forte presença de diálogos superficialmente banais que possuem importância apenas pelo subtexto, além do freqüente uso do silêncio e das expressões faciais como instâncias comunicadoras principais, em detrimento do diálogo; geralmente, são exatamente esses silêncios e expressões que comunicam o subtexto e a essência do diálogo. Além disso, as falas são marcadas pelo tom de ameaça e pela ironia, desvendando os mecanismos de dominação social. O silêncio, a ameaça, a ironia e os diálogos que significam pelo que não dizem são marcas da obra de Pinter.

Muitos diretores, como Hitchcock e Antonioni (que chegou a afirmar que os atores são parte do cenário), optam por interpretações facialmente inexpressivas, esperando que elementos outros como o espaço cênico ou o próprio diálogo estimulem o espectador a projetar no intérprete as expressões “corretas” – uma herança do experimento de Kuleshov. Neste filme, Losey utiliza uma técnica completamente diferente: as interpretações são extremamente importantes e a expressão facial dos atores se torna um meio comunicativo tão importante quanto (ou mais que) o diálogo, reforçando-lhe, dando-lhe significado, fazendo-lhe oposição. Esse uso carregado das fisionomias, muitas vezes travando diálogos entre si (como em Bergman), é evidentemente uma influência do teatro, presente tanto na trajetória de Bergman como de Pinter – e no cinema e atores britânicos em geral, influenciados pela forte tradição teatral da Grã-Bretanha. O uso considerável de planos-sequência da direção de Losey vem como uma forma de reforçar as expressões e o temp’o do diálogo real, permitindo-nos observar aquele momento de relação entre personagens de modo mais realista, sem as deturpações temporais que o corte pode causar, além do uso de planos separados dos personagens impedir a percepção das expressões de forma simultânea, prejudicando o efeito do diálogo mudo estabelecido diversas vezes entre eles.

Na fotografia em preto e branco do filme predominam tons cinzas e o contraste é bastante comedido. Porém muda bruscamente quando Hugo vai trabalhar na casa pela segunda vez: o contraste aumenta enormemente e há um uso muito maior de sombras, conferindo um tom sinistro às imagens. A composição é muitas vezes simbólica: não raro a imagem do mordomo, como reflexo ou sombra, aparece entre Tony e sua noiva.

Há certos elementos recorrentes da mise-em-scéne, de significado simbólico: o uso exaustivo de reflexos de espelhos e a existência de quadros em diversas paredes, que remetem a uma constante invasão da privacidade dos personagens mesmo na intimidade da casa, onde são sempre observados socialmente mesmo emblematicamente, e uma recorrência da imagem das pernas femininas como símbolo sexual.

O livro “The Servant”, que deu origem ao filme, é de autoria de Robin Maugham, nobre bissexual inglês sobrinho do também escritor Sommerset Maugham. No livro, a presença da homossexualidade é importante, enquanto que no filme ela foi completamente anulada, ao menos explicitamente. Pode-se interpretar que ela persiste muito sutilmente na relação íntima de Tony com Barret, em sua exagerada dependência dele e no controle que o último exerce sobre o primeiro, que numa perspectiva psicanalítica poder-se-ia encarar como uma dominação sexual. Nas cenas finais, vemos que Barret é responsável por trazer prostitutas para a casa para satisfazer tanto ele como a Tony, o que lhe torna o responsável em última instância pelo prazer sexual proporcionado a seu mestre. De qualquer modo, o comportamento sexual de ambos os personagens é completamente heterossexual.

Há um sarcasmo rude no filme na forma de abordar certos assuntos – é aí onde residem as críticas mais diretas e, paradoxalmente, não tão importantes para a trama. A cena de Susan e Tony na casa de um casal de amigos aristocratas satiriza os nobres, enquanto falam sobre a América do Sul e seus cowboys; já a cena do almoço de Tony e Susan revela alguns personagens quase caricatos do clero e da alta sociedade, sem relação com a trama. Outra crítica, provavelmente a mais interessante, é a feita à anulação do mordomo para se transformar em um eunuco moderno: somos levados a acreditar que a vida pessoal de Barret é tão comedida quanto seu jeito no trato com Tony, e que apesar de sua cordialidade e frieza, age de maneira relativamente espontânea (essa idéia é reforçada pelas cenas em que ele pega Vera na estação, onde, mesmo longe de Tony, não a trata calorosamente). Mais tarde, essa idéia vai começar a mudar quando descobrimos de modo relativamente brusco sua vida pessoal: uma namorada e, fora da vista do patrão, uma atitude pouco ética em relação a seus serviços, uma personalidade cheia de energia e de desejos – e carente de escrúpulos.
A clara alusão à luta de classes, um roteirista político e esquerdista e um diretor fugido do macarthismo, numa Europa que havia se tornado um campo de batalha político-ideológico, acabou por estimular uma abordagem excessivamente política da obra pela crítica da época. A visão do filme como uma alegoria social é, a meu ver, uma idéia simplória que relega o mais importante conteúdo psicológico do filme a mera moldura dessa alegoria.

A abordagem do filme à subversão da dominação é claramente inspirada em Hegel. Este postulava que o escravo e o senhor são também o contrário: primeiramente, o senhor só existe enquanto houver o escravo para lhe servir e manter sua hierarquia; e segundo e mais importante, o senhor, intermediando seu contato com o mundo através do escravo, acaba perdendo a ciência prática da vida, tornando-se dependente de seu servo. Ou seja, o escravo torna-se senhor de seu senhor à medida que lhe é indispensável, pois anula seu contato com o mundo e se torna uma ferramenta essencial. Entretanto, em Hegel, as duas instâncias, ao se misturarem, chegam à uma síntese dialética equilibrada, pois o escravo, redescobrindo a liberdade, irá ensinar a seu senhor, agora aflito com a condição servil, como ser livre: através da dominação de si e do trabalho servil.

Mais tarde, Hegel foi criticado por Marx, por exemplo, pelo caráter pouco prático de sua teoria da servidão, muito filosófica e pouco prática, social - e também pouco realista, à medida que era facilmente observável a permanência da servidão e o não cumprimento da esperada síntese da libetação. Entretanto, apesar da influência esquerdista existente no diretor e no roteirista, a abordagem marxiana, mais política e social, foi posta de lado em razão da abordagem dialética hegeliana. Mas não um Hegel comum, e sim um Hegel perverso, conturbado: o servo Barret age conscientemente na busca por se tornar indispensável a seu senhor, já com objetivos escusos; mais tarde, ao atingir seu objetivo de privar Tony do contato sadio com o mundo exterior, permanece nessa situação confortável de “escravo-senhor”, em oposição ao happy end da dialética de Hegel. Após dominar psicologicamente Tony, Hugo o isola em sua condição de senhor, não lhe permitindo reaprender o contato com a vida material. Age sempre como o servo, servindo-lhe os drinques, trancando a casa e fazendo os serviços domésticos para que o “patrão”, alienado pelo álcool e pela decadência mental, nunca se aperceba de sua condição de prisioneira senhor, servil aos desejos de Barret.

"Doce na boca, amargo nas entranhas", por Luciano Monteiro


Imagine um leve melodrama onde a atriz principal é linda, bem resolvida, tentando vencer na vida e que o único grande obstáculo para sua felicidade é sua mãe, egoísta e de postura infantil. Imagine agora que o melhor amigo dessa protagonista é um jovem belo, másculo e charmoso, capaz de arrancar suspiros de espectadoras juvenis ao redor do mundo. Pode ter certeza que este não é o caso. Em A Taste of Honey (Um Gosto de Mel, de Tony Richardson, 1962) tudo está pelo avesso, para nossa felicidade.


Aqui não temos uma bela atriz interpretando a personagem principal. Os personagens são perdidos, infantis e confusos. A abordagem é realista, dura, desconcertante, amarga refletindo bem o jovem cinema britânico da época. No filme de Richardson o angry young man dá vez ao feminismo e ao homossexualismo dos personagens principais, fato que atesta o porquê que a cultura pop britânica é uma das mais importantes e influentes da época. A obra é fruto de uma época de contestação com um porquê, com um motivo. Beatles, vanguarda, Swinging London, Stones, minissaia, emancipação feminina, juventude. O caldeirão da invasão britânica, impulsionada pela rebeldia própria da adolescência misturada a uma boa dose de boa formação artística das art schools britânicas dos anos cinqüenta, criadas pelo governo britânico para dar aos jovens algo útil para fazer, já que o mesmo governo não conseguira na época reconstruir suas universidades vitimadas pela Segunda Grande Guerra, tudo isso deu o tom e um toque de particularidade da invasão inglesa ocorrida nos anos sessenta, mas que encontra ecos até nos dia de hoje.


A Taste of Honey, que originalmente trata-se de uma peça de teatro, desenrola-se como, na verdade, uma singela fábula infantil e com leves toques do famoso humor britânico. A constante presença de crianças reforça um tom otimista, assim como a infantilidade e inconstância dos personagens. Nas entrelinhas, entretanto, o tom duro e sarcástico dos diálogos dialogam num contraponto perfeito a essa infantilidade. Os personagens são icônicos da nossa época e servem de metáfora a tudo aquilo que os jovens cineastas, como o próprio Richardson, queriam dizer. Jimmy, o amante negro da personagem principal, Helen, já nos mostra o quanto o filme é à frente de sua época e a gravidez solitária também da mesma personagem profetiza a quebra de tabus existentes até o tempo recente. Goeffrey, o doce amigo gay da personagem principal é carismático, doce e, por assim dizer, perfeito, idealizado com o claro intuito de quebrar as barreiras do preconceito. O marido da mãe de Helen é chato, bêbado, preconceituoso. Um curioso, personagem que simboliza o angry old man. Uma música instrumental homônima fora criada para a peça, mas que infelizmente não aparece no filme chegou a ser gravada pelos Beatles, porém Lennon e McCartney adicionaram uma letra, o que nos revela a popularidade da peça e do filme. E mais tarde o próprio McCartney compôs uma música inspirada em uma das canções da peça, Your Mother Should Know. É incontestável, portanto o quando este pequeno grande filme de Richardson é admirado, amado e estimado pela cultura britânica. Um filme que fica cada vez mais jovem com tempo. Mais jovem e mais doce.

"As oito vítimas" por Lady Patrícia Oliveira


Durante a Segunda Guerra Mundial, inevitavelmente toda a produção da Europa sofreu os efeitos do conflito em seu panorama cinematográfico. Na Inglaterra, por exemplo, as salas de cinema chegaram a fechar temporariamente suas portas. Porém, ainda eram produzidos pequenos documentários de guerra e curta metragens de caráter ufanista (para elevar a moral dos soldados), pelos Estúdios Ealing. Após a Guerra, os estúdios vieram a atingir seu auge no final dos anos 40 e início dos anos 50, ganhando reconhecimento por suas comédias de humor negro, que ficaram conhecidas como comédias Ealing.

Dentre os filmes que marcaram essa época está As Oito Vítimas (Kind Hearts and Coronets). Nele, temos a história de Louis Mazzini (Dennis Price), filho de um pobre cantor de ópera italiano e uma moça aristocrática, rejeitada por sua família rica. Órfão de pai, Louis jura vingança ao ver negado a sua mãe seu último desejo: ser enterrada no mausoléu da família. Pra isso, ele decide matar oito pessoas de sua família materna, para se tornar um duque.

Apesar da história aparentemente macabra, o filme é cheio de graça. O famoso senso de humor britânico está lá, certeiro e cortante, presente em praticamente todas as cenas: desde o menor detalhe, como a rima provocada pelo nome da primeira vítima, Ascoyne D’ascoyne, ou nos chapéus bizarros da personagem Sibella (Joan Greenwood); até na frieza sarcástica de Louis ao narrar sua história, e das tiradas hilárias que pontuam cada assassinato. Embora o filme não tenha maiores pretensões que não a de divertir, surge uma questão que parece brincar com o senso de moral do espectador: se Louis é um assassino, porque somos levados tão naturalmente a torcer pelo sucesso de sua empreitada? Parte do mérito é de Dennis Price, que confere ao seu personagem uma dignidade ímpar, como se matar aquelas pessoas fosse um direito adquirido. Mas o destaque do filme fica por conta de Alec Guiness, que participou de várias comédias britânicas na época, mas que ficaria conhecido posteriormente por seu papel de Obi-Wan Kenobi na saga Star Wars: ele interpreta nada menos que oito personagens (as oito vítimas do título)! Para completar, temos um final ambíguo, e por isso mesmo surpreendente.

Ambíguo também parece ser o pensamento que imperava naquele longínquo ano de 1949: senso de humor à parte, o filme quase foi proibido na época de seu lançamento, não por causa de um homem que assassinava seus parentes, mas sim por mostrar uma mulher casada que traía seu marido. Ah, o conservadorismo inglês...

“Bem aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus”, por Evandro Mesquita



A história está centrada em três crianças da área rural de Lancashire, Inglaterra as quais encontram um estranho (Bates) dormindo no celeiro da fazenda. A criança mais velha, Kathy (Mills), lhe pergunta quem é. As palavras que ele pronuncia são: “Jesus Christ” que em português seria “Minha Nossa”. Isso cria uma confusão na cabeça de Kathy que passa a acreditar, piamente, que aquele homem seja, realmente, Jesus Cristo. Porém o tal Cristo é, na verdade, um assassino procurado pela polícia que se escondeu naquela fazenda.

Este é um filme que apresenta certa dose de humor natural, característico das crianças, e a sua disposição de amar e confiar.
Nota-se a devoção e pureza das crianças em contraposição a muitos adultos que mercantilizam a fé e os ideais de Jesus no mundo atual, em especial durante a Páscoa e o Natal.

Contudo, o filme não pretende dar um olhar doutrinário-teológico quando mostra as crianças como se fossem da parábola “O Bom Samaritano” de Jesus. Enquanto lida com um material tocante, que pode até sugerir blasfêmia para alguns, a obra está permeada de simplicidade, naturalismo remetendo a uma atmosfera de religiosidade remota contada com humor, compaixão e sentimento de fraternidade por parte das crianças.

Talvez este sentimento de amor estivesse pronto a se revelar, até porque no caminho para a fazenda as crianças têm um breve encontro com o Exército da Salvação. Logo depois elas mostram, na prática, sua compaixão ao resgatarem alguns gatinhos que foram jogados num rio por algum sujeito mau. Logo, estavam “prontas” para exercitarem seu dever cristão que era proteger e amar os mais fracos. As três crianças informam o segredinho do “retorno de Jesus” para as demais crianças da vila, deixando de fora os adultos.

A sua reverência e animação, respeito e prestatividade são, de fato, engraçados e genuínos. Há muitos toques brilhantes e vários paralelos com a história da Bíblia. O nascimento de Jesus se deu num celeiro, local onde foi encontrado o estranho. No final, ao ser revistado pela polícia “Jesus” abre seus braços como se estivesse sendo crucificado. O pão e o vinho subtraídos do jantar da família eram oferecidos ao estranho, remetendo à Ceia do Senhor.

Não há quem não se encante com a fotografia, a música e todo o cenário bucólico criado neste filme. Além disso, e principalmente, vejo como uma grande metáfora da maldade x pureza, onde a última deveria sempre prevalecer, não apenas no mundo das crianças, mas, e principalmente, no mundo dos adultos, até porque segundo os ensinamentos de Jesus (o verdadeiro), só alcançarão o Reino dos Céus os que forem puros como as crianças.

Recife, maio de 2010.

"Um conto de Cantuária: resgatando valores morais e religiosos diante do contexto da II Guerra Mundial. " por Milena Wanderley



Em épocas de caos as sociedades sempre tendem a repensar seus valores e sua identidade. E quando pensa-se nos períodos das duas grande guerras mundiais, pode-se perceber claramente nas produções científicas e artísticas as mudanças de perspectiva diante dos processos de re significação das realidades envolvidas em tais processos; o fato é que a guerra mexe com as estruturas culturais das sociedades e levando em consideração este fato é que iniciar-se-á uma breve análise do filme “A Canterburry Tale” ou “Um conto de Cantuária”, escrito, produzido e dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburguer em 1944.

A narrativa é iniciada por um trecho do prólogo da Obra literária “Contos de Canteburry” na intenção de situar o expectador na representatividade que o lugar tinha na idade média, em que peregrinos seguiam para a Catedral de Cantuária, fundada por Santo Agostinho na época da Roma católica, sede do Arcebispo de Cantuária1 e símbolo da fé e da tradição anglicana após a reforma religiosa inglesa. A referência à obra literária citada se dá apenas como introdução ao local e à cultura de peregrinação que há naquela área, pois o enredo tratará da discussão de valores tradicionais ratificando a manutenção dos mesmos diante das mudanças sociais promovidas pela guerra e consequentemente pela presença de soldados estrangeiros em cidades pequenas do interior da Inglaterra.

Em uma cidade próxima a Cantuária, Chillingbourne, chegam três jovens, dois militares, e uma moça; um deles, Bob Johnson, sargento americano, desce nesta cidade por engano e é orientado por um funcionário da estação de trem a ficar nela e acompanhar a jovem até a prefeitura onde ela seria encaminhada ao serviço em uma fazenda ao qual ela havia sido recomendada, ele a acompanha junto com o outro sargento, Peter Gibbs, que se destinava a tal lugarejo. A energia elétrica ainda não havia chegado naquele lugar, por isso tudo ela muito escuro e eles só contavam com a ajuda de pequenas lanternas para iluminar o caminho. Logo após eles descerem as escadas da estação, a moça é atacada por um misterioso homem que vestia roupa de soldado, ela não sofre nenhum tipo de violência a não ser pelo punhado de cola que o “militar” ,até então, sem identidade colocara no seu cabelo. Ela, Alison Smith, e os soldados que a acompanhavam só perceberam tal fato quando entraram na prefeitura, onde funcionários jogavam baralho para passar o tempo; daí se desenrola o enredo em busca da identidade do “homem da cola” que já havia atacado outras mulheres antes desta.

A trama de Powell e Pressburguer traz reflexões acerca de valores que são mantidos a todo custo pelo Juiz da cidade, Sr. Colpeper, homem austero e controlador que dirige a cidade procurando manter as regras e os valores que eram vigentes antes da guerra. O Sr. Colpeper é a personificação da resistência diante da inversão de valores promovidos pela guerra no velho mundo.

As referências a uma manutenção da identidade tradicional inglesa não são poucas; e o sargento americano também é colocado na trama como o colonizado que resguarda algumas das virtudes essenciais ao “homem honrado” inglês, como a gentileza, a perspicácia e, acima de tudo, o respeito; nesta perspectiva, os militares, assim como o juiz, aparecem transfigurados em cavaleiros medievais, virtuosos e desprovidos dos vícios da guerra, porque embora os dois sargentos tenham vivenciado os horrores da guerra, não há menção a traumas nem a atitudes que firam a “imagem” de virtude construída pelos autores neste filme que é um dos exemplares de tantos outros que trabalham para a construção de uma narrativa da nação. A impressão é que o militar americano aparece na narrativa apenas com a intenção de comparação e justificativa para a cooperação entre as duas nações no período das guerras; é como se o inglês quisesse provar pra si mesmo que os americano era como ele não só pelo fator da colonização, mas pela grandiosidade da duas nações, afinal a colonização inglesa foi um modelo que mais deu certo nas Américas.

Quanto mais o inglês pudesse justificar e enaltecer seus atributos culturais ele o ia fazer. No período de guerras não perdem-se apenas homens, uma parte da identidade cultural da nação é manchada pelos horrores e a situação de caos é sempre instalada, principalmente nos centros urbanos. Um novo tipo de fugere urbem2 é trabalhado em Um conto de Cantuária, o homem agora prefere prefere a calma do campo à agitação das cidades e isso é significado no filme pelo fato de dois dos personagens principais terem saído de Londres em busca de paisagens mais amenas. Além deste fato, a fotografia do filme presou pelas imagens bucólicas dos vastos campos ingleses em que se peregrinava e se admirava as paisagens , como na cena em que Alison e o Srº Colpeper se encontram no alto da colina a admirar também a Catedral de Cantuária vista ao fundo; na mesma cena os dois sargentos, que não veem os outros dois personagens porque eles haviam se escondido, comentam sobre a caminhada até o alto da colina, valer a pena, diante da paisagem que se poderia admirar, neste momento há uma outra comparação entre a paisagem americana e a inglesa, dando-se ênfase ao que se via ao fundo: A catedral de Cantuária.

A catedral é comentada durante todo o filme, e se levarmos em consideração que ela é hoje a sede do anglicanismo no mundo, é também neste filme valorizada a religiosidade inglesa. O anglicanismo, por ser fruto do período de reforma, é um importante componente da identidade cultura inglesa assim como é a monarquia, pois a igreja católica da Inglaterra, por muito tempo, esteve separada de Roma por questões geográficas e depois, com a reforma, só foi legitimado o que era fato; é como se a conquista de tal independência religiosa fizesse do anglicanismo fizesse do inglês um cristão formado de acordo com sua próprias bases culturais, observado no fato, por exemplo, da cultura cristã britânica ter assimilado muitos elementos simbólicos da cultura celta, como a cruz com uma esfera vazada no meio.

O questionamento principal do filme gira em torno de que ações são válidas quando se trata da manutenção das tradições e valores morais que constituem a cultura britânica. Durante e viagem a Cantuária, já no final do filme, os personagens comentam sobre a re significação de valores como fidelidade3 no contexto da guerra, e o Juiz, agora acusado de ser responsável pelos ataques feitos às mulheres de Chillingbourne, apresenta a justificativa de que ele cometia os atentados vestido de soldados para que as mulheres do vilarejo tivessem medo dos militares evitando que se aproximassem deles para que fosse resguardada a honra de ambos: do soldado e da mulher, por isso, após às 11h30 da noite ele fazia uma ronda pela cidade e colocava cola no cabelo das jovens; ele não as machucava, mas as traumatizava. A dualidade do juiz faz o espectador questionar se as ações dele são realmente válidas diante do argumento de que as mulheres não sofriam nenhum tipo de violência física, tal fato é perceptível na narrativa pela docilidade do Srº Colpeper, colocado como vilão e reconstruído como mocinho no final da trama. A última cena do filme também faz referência à modernização e forte urbanização da cidade; ao contemplar uma paisagem de casas destruídas e terrenos a venda em Cantuária, Alison parece desolada, como se seus sonhos bucólicos estivessem sendo destruídos em face a paisagem caótica que se coloca diante dos seus olhos. Tal cena nos remete à infalibilidade do progresso no pós guerra, a reconstrução de cidades leva a construção de outras cidades, e Cantuária, uma pacata cidade de tradição religiosa, famosa por acolher peregrinos, já não é tão pacata assim, como vemos no momento em que a banda do exercito com toda sua fanfarra entra na catedral em que antes só ouviam-se sinos e órgão.

A intenção metafórica de um conto re-estrutura significados e traz a uma sociedade sempre um novo ângulo diante do que é perceptível aos sentidos. Assim, a águia que se transforma em avião de guerra, as carroças que se são substituídas por tanques, e as crianças que encenam o contexto de guerra nos traz olhares diante de fatos que passam desapercebidos quando as prioridades são outras, O cinema, assim como as outras artes, esteve engajado em levantar questionamentos que desvelassem os impactos sociais e culturais causados pelas guerras, quer seja na idealização de um mundo perfeito, quer seja na captura e popularização de imagens chocantes, o fato é que tal filme, mesmo tendo intenção mercadológica e , as vezes, alienadora, faz-nos repensar até onde chegaremos em nome do poder e até quando passaremos cegos diante das lacunas construídas pela própria humanidade.

"Cineastas europeus na Swinging London" por Thiago Rocha Ferreira




Acho curioso que justamente quando o cinema inglês começa a tomar força, embebido dos ares de renovação cinematográfica trazido pela nouvelle vague, com vários novos cineastas trazendo algo de novo, de diferente ao cinema britânico, que outros cineastas, já consagrados no mundo filmam na Inglaterra. François Truffaut, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Roman Polanski são alguns dos exemplos.

Além disso, a Inglaterra já tinha sido acusada, pelo próprio Truffaut inclusive, de não ser um pais onde a cinematografia fosse forte ou até relevante, pois as maiores figuras inglesas do cinema Charles Chaplin e Alfred Hitchcock migraram para os Estados Unidos. Mas é preciso lembrar que havia um esvaziamento de Hollywood por causa dos altos custos de produção e aí eles procuraram filmar em países europeus. A Itália também foi um desses países. os americanos Joseph Losey e Stanley Kubrick filmarão em Londres nessa mesma época. Quer dizer, havia um favorecimento à produção cinematográfica, com bons recursos e o barateamento dos custos.

Também é preciso ressaltar o contexto que esses cineastas foram filmar em Londres. Era a época de um fervor cultural chamada de Swinging London. Era a hora de mostrar ao mundo o quanto a Inglaterra tinha superado a segunda guerra, o quanto que ela havia se atualizado. Era preciso voltar a ser o centro do mundo. Esse momento foi muito ligado à moda, à música pop, à contracultura. Visto assim, seria contraditório apostar no novo cinema inglês da época que se interessava mais em retratar a classe operária, quer dizer, tinham uma atenção aos problemas sociais nas abordagens deles. Provavelmente, isso não interessaria aos produtores que desejassem passar a idéia de um Londres moderna, descolada, arrojada, onde imperava o otimismo. Além de que, aqueles cineastas do continente agregariam valor ao produto.

É nesse ambiente que Antonioni filmará Blow Up, para ficar só em um exemplo. Tratava-se de um cineasta de fama incontestável, que acabara de filmar uma trilogia muito elogiada e respeitada. Tudo está lá: roupas, moda, bandas, cultura do egocentrismo, atores celebridade, uma trama enigmática, nova, diferente, em suma: moderna. A imagem de uma Inglaterra dinâmica, atual, referencial persiste até hoje.

"Mel com fel" por Ricardo Duarte



“Um gosto de mel” é um filme que trata de assuntos polêmicos com uma inocência encantadora. Há uma relação inter-racial, um personagem gay, gravidez na adolescência, idéias de aborto e uma análise sobre a necessidade que sentimos de nos ligarmos aos outros, tudo num longa-metragem com diálogos deliciosos e músicas que parecem ter saído de um desenho animado. Essa é a característica mais interessante e bela do filme: emocionar-nos com a ingenuidade de alguns de seus personagens enquanto não ignora o lado duro e difícil da realidade.

Jo, a protagonista, é uma jovem da classe proletária cuja mãe não dá muita importância para ela. Sempre fugindo de um lugar para outro por falta de dinheiro para o pagamento das estadias, as duas têm uma relação bastante hostil, mas o filme nunca condena uma ou a outra por aquilo, embora tenda mais para culpar a mãe, mas vemos outras vezes que ela tenta se aproximar da filha, apenas para ser repelida brutalmente. Não há ali nenhuma chance de reaproximação. É nesse contexto: presa e ansiado por liberdade, como o pássaro na gaiola que sua mãe tem, mas sem coragem de fugir de sua progenitora, que Jo encontra e se apaixona por um marinheiro (símbolo de liberdade). Entretanto, logo após eles fazerem sexo e ele engravidá-la, ele tem que partir. A adolescente não pensa, ou não tem coragem, na possibilidade de ir com ele e, finalmente livrar-se daquela sua vida triste. Logo em seguida é abandonada por sua mãe, que se casa com um homem rude, mas de boa classe social. Aparentemente livre de um fardo, a vida da menina parece bem melhor, ela conseguiu a tão almejada liberdade. Conhece Geoffrey, um homem gay, e após um divertido dia no parque, resolve chamá-lo para morar com ela. Nesse momento vemos que embora Jo afirme que quer ser só, isso não é a verdade. Por mais que aparentasse satisfeita por estar sem Helen, assim que tem a chance de morar com outra pessoa, ela se agarra a isso. E é curioso notar que quando ela chama Geoffrey, eles ganharam um peixe num aquário no parque, fazendo um paralelo com o pássaro engaiolado que a mãe levou embora quando se casou. Após felizes e infelizes momentos passados juntos, os dois são separados pela chegada definitiva de Helen, abandonada pelo marido, que expulsa Geoffrey de lá. Num final doce-amargo, vemos-lhe indo embora, enquanto um menino acende um fogo de artifício para uma reflexiva Jo. Sempre aparecendo sujas, correndo ou metidas em confusões, as crianças do filme servem como um alerta para a protagonista, aumentando ainda mais o seu medo de ser mãe, entretanto, nesse final, é surpreendida pela gentileza de uma delas, que lhe dá algo para ilumina a escuridão, deixando em aberto que talvez seja o filho que terá que fará com que a sua vida melhore.

Tendo sido adaptado de uma peça, o aspecto verborrágico é bastante forte. Os personagens conversam o tempo todo, sobre os mais diversos assuntos e, na maioria das vezes, prosaicos, fato que não prejudica o filme, pelo contrário, fortalece a sua simplicidade e verossimilhança, ao retratar jovens que, comumente a idade, tem arroubos de tristezas seguidos por de extrema alegria e, muitas vezes, de uma arrogância inocente. Há também uma grande dose de sarcasmo e humor em diversas falas presentes ao longo da projeção. Alguns dos diálogos do filme são usados atualmente em letras da banda “The Smiths”, como “I'm not happy and I'm not sad”, ou “The dream is gone, but the baby's real.”. Há também momentos sem diálogos que, usando-se de todo o poder das excelentes atuações, transmitem para os expectadores todos os pensamentos e emoções que passam pelas cabeças daqueles personagens, tendo como exemplo mais obvio e mais significativo, o belo e introspectivo final.

Quase completamente formado de atores não profissionais, as atuações são impecáveis, especialmente as de Rita Tushingham (Jo) e Murray Melvin (Geoffrey), destacando-se ainda o fato do quão difícil deveria ser interpretar um personagem homossexual no início da década de 60. Afastando-se da expansão típica do teatro e focando-se em atuações contidas e realistas, esse aspecto revela-se acertado, aumentando ainda mais a nossa simpatia por aqueles personagens. Claro que, tratando-se de jovens, há alguns excessos necessários para demonstrar a própria vitalidade da juventude, como quando os dois protagonistas, efusivamente, decidem aproveitar o dia de feriado para passearem. Também se deve citar a atriz que interpreta Helen (essa já uma veterana) que convence como uma mãe egocêntrica e fútil, fazendo com que tenhamos uma mistura de raiva, pena e desprezo por ela. Merecidamente essas atuações resultaram em vários prêmios, como o Cannes de melhor ator (Melvin) e melhor atriz (Tushingham), o Bafta de melhor atriz (Tushingham) e o Globo de Ouro de melhor atriz iniciante (Tushingham).

Os cenários do filme e sua fotografia também são algo que merecem atenção. Dando enfoque a composições realistas, a câmera nos leva aos becos, ruas sujas, docas, ruínas e conjuntos habitacionais de uma Inglaterra que muitos cineastas escondiam, revelando-nos os lugares onde uma classe proletária triste e sem grande expectativas de vida passavam seus dias. Usa-se em todas as cenas externas a luz natural, resultando, muitas vezes em um ótimo efeito, como a conversa de Jo e Geoffrey embaixo do arco. Na maior parte do filme o que predomina é a escuridão, que, combinada com os cenários decadentes, aumenta ainda mais a angústia que sentimos por aqueles personagens.

Realizado em 1961 e dirigido por Tony Richardson, “Um gosto de mel” é um filme do movimento não oficial que ficou convencionalmente chamado de “British New Wave”, uma espécie de Nouvelle Vague britânica, sendo um de seus maiores expoentes esse diretor. Embora com poucos filmes, esse movimento é considerado por muitos como um dos mais importantes da cinematografia inglesa, pois foi uma “novidade bem-vinda após o entretenimento conformista (...) da primeira parte dos anos 50” ¹, fazendo com que muitos estudiosos do cinema inglês façam várias pesquisas sobre ele e sobre as inúmeras contribuições dele para o cinema britânico contemporâneo, influência perceptível em filmes como Trainspotting, 9 songs e outros. Vários das características que marcaram a British New Wave estão presentes nesse filme, como ser focado em jovens “rebeldes” e alienados, o enfoque dado a classe proletária, a fotografia sombria, as locações urbanas e decadentes e outros. Porém, há um fato que difere bastante dos outros filmes dos “angry young men”, que é o fato da protagonista ser uma mulher, dando um toque um pouco mais delicado e feminino a um universo de filmes focados em jovens homens violentos, fazendo com que esse filme seja uma espécie única (ou quase) desse movimento.

¹: Peter Hutchings, ‘Beyond the New Wave: Realism in British Cinema’

Material de consulta:

The British New Wave, B.F. Taylor, 2006.

"Blow up: amplie, visualize e transcenda" por Lucas Simões


“Swinging London” foi o momento de exaltação dos costumes ingleses para o mundo durante a década de 60. Foi a cultura materialista regada por aparência. Foi o uso ufânico da bandeira Inglesa como representação de poder. Foram os Beatles em sua fase alienada cantando “Porque dinheiro não pode comprar o meu amor” em “Can´t buy me love”. Foi a moda artificial e supérflua alimentando o consumismo desenfreado. Foi a juventude míope e marginal às problemáticas sociais. Foi uma ideologia maquiada e excluída de propósitos consistentemente revolucionários.

Foi também o cinema de Antonioni cuspindo em toda essa nojeira formalista.

“Blow up” narra a história do respeitado fotógrafo Thomas que após revelar as fotos de um casal em um parque, suspeita da ocorrência de um assassinato. A construção do enredo com base na suposição pretende ir além dos fatos contatos para tratar subjetivamente das possíveis interpretações humanas.

A fuga de Thomas do set fotográfico em sua própria casa para um parque bucólico demonstra uma transformação nas intenções do fotógrafo em substituir a artificialidade das modelos por imagens naturalistas de um casal em romance.

Essa captura de imagens formará um semblante possivelmente imaginário em Thomas. Por que uma mulher misteriosa se demonstraria preocupada em ser fotografada com um homem no parque? Por que um rapaz desconhecido vigiava Thomas durante uma conversa com seu amigo no restaurante? A importância daquelas fotos vai se tornando cada vez mais evidente.

O fotógrafo parte para a revelação das imagens que posteriormente são ampliadas e pregadas na parede lado a lado. É possível fazer uma analogia da composição dessa cena como uma montagem construtiva. Cada imagem é um pedaço que concentra separadamente a atenção de Thomas.

O título “Blow up” deriva deste tratamento com as fotos através da ampliação. Porém, mais do que ampliar, Antonioni propõe que o espectador visualize e transcenda o óbvio. Uma mesma fotografia pode fornecer interpretações divergentes como uma paisagem pictórica, um expressionismo fotográfico ou até mesmo um crime bárbaro. Já diria Munsterberg que o filme deve existir além da película na consciência de cada pessoa.

Thomas, ao observar as fotos, enxerga uma arma em meio aos arbustos e um corpo estendido na grama, porém essas imagens talvez não fiquem evidentes para o espectador. Indícios dessa incerteza são revelados quando o fotógrafo durante um retorno ao parque consegue ver o corpo na grama, porém em outra investida, o corpo desaparece. Em um momento posterior, a mulher misteriosa é vista por Thomas observando uma vitrine, mas em seguida desaparece subitamente entre as pessoas. O crime de fato aconteceu? Aquele casal no parque realmente existe? Antonioni substitui as respostas às indagações por possibilidades. A realidade exibida pode ser onírica.

Fica claro em “Blow up” que as evidências se transformam em aparência. O suspense em torno do acontecimento no parque passa para plano de fundo. A narrativa se consolida em momentos pragmaticamente críticos e em outros subjetivamente psicológicos.

Na cena final, os mímicos se divertem jogando uma partida de tênis imaginário. Materialmente, não há bolas, raquetes ou regras. Thomas observa atentamente até que uma bola invisível paira em seus pés e ele interage não apenas devolvendo com um lançamento, mas indo além e escutando o próprio som imaginário das rebatidas entre as raquetes. A ficção pode assim ser perfeita em um mundo imperfeito.

De maneira superficial “Blow up” é uma simples exposição do “Swinging London”. Entretanto, a crítica ao período inglês é incorporada de maneira subjetiva nas entrelinhas. Paralelamente à narrativa, existe um tratamento sarcástico com que Antonioni explicita a sociedade banal inglesa. As mulheres são vistas como meros manequins inexpressivos e são hostilizadas constantemente pelo fotógrafo. Durante o show da banda Yardbirds, a contemplação por um público robótico demonstra possivelmente uma juventude passiva, preocupada na ousadia de pegar um pedaço da guitarra quebrada para depois descartá-lo. Em outra cena, os manifestantes contra guerra são vistos como minoria e tratados com indiferença pela população.

Para Antonioni a contestação da realidade é necessária, mesmo que camuflada através de propósitos imaginários.

"Um Gosto de Mel/A Taste of Honey (1961)" por Pedro Coelho



Estamos diante de um filme que explora um universo marginal: proletários, mulheres criando seus filhos sozinhas, crianças nas ruas, bêbados, gays, negros, jovens subempregados alugando pequenos apartamentos pelos sujos bairros de cidades industriais inglesas do pós guerra. Dentro deste universo trata-se de temas que ainda hoje são fortes, na época eram verdadeiros tabus para a sociedade: aborto, preconceito racial, homossexualismo.

Dito desta forma, parece ser um filme duro. Mas sua maior qualidade é a forma delicada que este ambiente é tratado. A estória é contada pela ótica de Jo, uma menina sensível criada por uma mãe solteira endurecida pela vida. Ela anda pelas ruas proletárias e zonas portuárias observando aquele mundo decadente de uma maneira tão ingenuamente poética como só um jovem moça poderia transmitir.

Jo sente desde cedo o peso da liberdade individual e das inseguranças de um mundo desprovido de convenções sociais: família e escola nunca havia sido uma realidade para ela. Mas mesmo diante deste ambiente árduo, ela não perde as fantasias e puerilidades. Em vez dela se adequar ao mundo, ela reconstrói o mundo de acordo com sua visão. Jo vai trabalhar, morar sozinha, se apaixona por um marinheiro negro que parte deixando-a grávida, e conhece um gay com quem começa a viver junto. Ela atravessa esses percalços da vida de maneira mais humana possível.

A apropriação que o filme faz da visão de mundo desta moça ingênua porém acostumada com o árduo mundo, permite ao filme esse angulo único. As sensações de Jo diante das paisagens urbanas, das fachadas dos edifícios, das, dos rios, das brincadeiras de crianças nas ruas, dos parques de diversão ao ritmo de Jazz band. Todo universo marginal que citei mais acima é, na verdade, só o pano de fundo para existências profundamente humanas e universais.

Mas não se deve esquecer que A Taste Of Honey é um típico exemplar de kitchen sink drama dirigido por um verdadeiro angry young man. Essa visão poética de vidas periféricas não procura higienizar esse universo. Em um cinema dominado por um visão de mundo exclusiva, mostrar uma outra perspectiva, partindo não dos dilemas da burguesia em relação aquele universo, mas dos dilemas internos que ali operam e mostra-los tão universalmente reconhecíveis é uma maneira muito mais inteligente e sensível de lidar com os conflitos sociais.

"A madona das sete luas" por Sofia Donovan


Madalena, menina criada em um convento na Itália, ao resolver dar uma de chapeuzinho vermelho e ir colher flores num bosque é surpreendida por um terrível cigano que a estupra. Logo seu pai a promete a Giuseppe Labardi um rico comerciante de vinho o que a faz deixar o convento. Aparentemente, o trauma causado pelo estupro fez com que Madalena desenvolvesse dupla personalidade e Giuseppe acaba tendo que conviver com súbitos e longos sumiços da esposa.

Madalena, com seu vestido recatado, cabelo preso e gigantesco crucifixo pendurado no pescoço, espera Ângela, sua filha (que não sabemos se é ou não fruto do estupro) voltar de um longo período de estudos na Inglaterra e se choca ao vê-la, vestindo shorts e acompanhada pelo jovem caricato diplomata inglês, Evelyn. A filha logo se mobiliza para a “atualização” de Madalena, o que a acaba desestabilizando.

Na festa de aniversário de Ângela, a mãe vê Sandro Barucci, irmão de seu amante da “outra vida” o que desencadeia o surgimento da cigana Rosana, sua personalidade antagônica. Naquela noite, rouba as próprias jóias (afinal, todos os ciganos são estupradores ou ladrões) e corre até Florença, para os braços do ladrão Nino Barucci, para quem as entrega.

Ângela, que ainda não sabia sobre os acessos da mãe (os quais não pareceram a chocar nem assustar muito) resolve sair à sua procura. Evelin, agora seu noivo, tem que viajar e o sinistro Sandro, que a jovem conheceu em sua viajem de volta à Itália, promete ajudá-la. O link entre as duas histórias acaba sendo feito através das jóias roubadas.

O fim é trágico: Sandro morre e Madalena, agonizante, é levada de volta à sua casa. Nino que chega à mansão dos Labardi com intenção de matar Giuseppe, o encontra na beira da cama onde está deitada a moribunda, e desiste de matá-lo.

No decorrer do filme, Madalena se perturba com uma música mais dançante ou roupas ousadas enquanto sua outra personalidade, com procissões ou igrejas (o que é algumas vezes demonstrado através de closes nas péssimas encenações de loucura da atriz). O tema mais uma vez (como em Narciso Negro) é aquele conflito clássico entre o desejo, o pecado e a castidade, a fé, a culpa cristã, conflito esse que fica bem claro na cena final, onde há um close no peito da protagonista, onde se encontram uma rosa e uma cruz.

A família e a moral vencem. Ao contrário dos Labardi, Rosana e os Barucci são inescrupulosos, trapaceiros. Apesar de Ângela representar o “ar” de modernidade e independência vindo da Inglaterra, é fiel ao diplomata, seu futuro marido.

Primeiro trabalho de Arthur Crabtree, esse filme da década de quarenta foi uma aberração em meio aos melodramas de costumes da produtora inglesa Gainsborough. Os personagens planos e estereotipados convivem em uma Itália que está bem distante da de Mussolini, estilizada, onde todos possuem costumes e gestual inglês. Tudo isso somado aos exageros característicos dos tais melodramas acaba dando um efeito cômico que não nos permite “entrar” no filme, o que contrasta com a fotografia e a qualidade técnica, das quais não se pode reclamar.

"Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1964)" por Gibran Khalil de Espíndola Brandão


Repulsa ao Sexo é considerado por muitos a obra-prima de Roman Polanski. Tendo boa parte de sua trama passada dentro de um pequeno apartamento suburbano, o filme compõe a primeira peça da trilogia do apartamento (composta também por “O Bebê de Rosemary” e “O Inquilino”). Suas características claustrofóbicas e psicopatológicas marcaram tendência e sua sensualidade aflora em uma temática bastante chocante.
Não por acaso, o filme retrata e é rodado em um período de grande efervescência cultural na Inglaterra. O Swinging London não marca só uma atmosfera de sensualidade e novidade, mas também uma estética fílmica; belas mulheres, pulsão sexual, o preto-e-branco, a rua, as vitrines a moda. Tudo neste Polanski “britânico” respira estes ares de juventude.

O filme conta a história da estranha e bela manicure, Carol (Catherine Deneuve), que vive em um estado de confuso desligamento que acarreta em uma repulsa sexual e um “horror a homens”. Quando a sua irmã viaja com o amante para a Itália, ela fica sozinha e todos os seus medos começam a surgir em forma de situações aterrorizante de violência e perversão.

O cinema britânico do final dos anos 50 e ao longo dos anos 60, tematizou várias vezes assuntos tabus para a época; Na New Wave e no Swinging London, temas como a liberdade sexual, o hedonismo, a pobreza, a juventude, a homossexualidade se tornaram pontos comuns de um pensamento libertador e jovem.

Tratando de uma temática altamente sexual a um ponto doentio, Polanski parte do extremo oposto da liberdade para definir uma humanidade pretensamente sexual, porém, reprimida socialmente. E os freudianos se divertem!

A personagem, cheia de marcas de repressão, se desprende (não voluntariamente) de um mundo bastante “sexualmente pulsante” e foge a todo preço de contatos mais íntimos com homens. No entanto, quando ela fica só no apartamento devido a uma viagem da sua irmã com o namorado (homem casado), seu estado de repressão sexual aflora em aterradoras aparições de figuras grotescas que estupram, violam e a assediam.

Para Carol, o sexo sempre esteve do lado de fora de seu apartamento. O contato de sua escova de dentes com produtos masculinos a deixa tensa, o som do sexo de sua irmã com namorado no quarto a deixa assustada. Mesmo assim, de certa forma, os gemidos de prazer da irmã delimitam um distanciamento entre ela e o sexo. Todavia, quando sua irmã viaja, há a quebra deste distanciamento, o sexo sai do quarto da irmã e vaga pela sua casa, agressivo, violento e impulsivo. O sexo invade seu quarto, assim como sua imaginação (como o texto vai ser publicado, vou evitar spoilers).

Vale ainda ressaltar que toda esta profundidade narrativa não existiria sem a presença de Catherine Deneuve como personagem principal. Ela representa a espécie de beleza e sensualidade de sua época. Seu jeito de andar e de se vestir faz os homens a desejarem. Porém, Polanski conseguiu injetar nessa beleza sedutora uma dosagem de loucura que surpreendeu o público. Sua aparência distante, lunática e desesperada, com seus olhos arregalados associa-se a protagonista paranormal e reprimida de “Carrie, a estranha” (Brian de Palma, EUA, 1976). Porém francesa e sexy.

Polanski, assim como em “O Bebe de Rosemary”, conseguiu neste filme deixar um clima constante de suspense e terror. Seguindo as imaginações da personagem estamos também em um estado alheio do mundo, imerso na possibilidade de algo acontecer. Os efeitos especiais, o estupro, os recursos expressivos e narrativos parecem ter influenciado uma série de tendências mundiais em cinema; Um cinema underground nos Estados Unidos e o Cinema Marginal, no Brasil (As mãos saindo da parede para agarrar Carol são grotescamente comparáveis as mãos do inferno do Zé do Caixão em “A Meia-Noite levarei a sua Alma”).

Querendo reproduzir uma descrição sucinta do que é “Repulsa ao Sexo”, basta descrever as características principais de sua protagonista; bela, sensual, assustadora e neurótica. Polanski consegue em seu filme, traduzir bem um mundo reprimido e uma época de libertação. Carol é mais uma vítima do horror da repressão sexual e este “crime” é retratado de forma esplêndida e impecável em sua feia crueldade.

"Um Gosto de Mel/A Taste of Honey (1961)" por Bruno Alves


Spoilers a rodo.

Queridos leitores (sim, fingirei que mais de duas pessoas, contando o que vos redige, vão ler isto), vocês já passaram pelo fatídico e triste momento aonde tinham que escrever algo e no entanto não conseguiam? É a minha situação, amigos. Preciso escrever uma resenha de Um Gosto de Mel e no entanto não sai nada do meu pequenino mas esforçado intelecto. Estou com calor, fome e sono. Maldição. Perambulo pelo apartamento nesta quieta madrugada em busca de inspiração. Procuro um biscoito treloso para ingerir e nada encontro. Maldição. Deito no sofá para meditar o texto e acordo duas horas depois sem texto e com a coluna partida em quatro partes. Maldição. Vou ao banheiro lavar o rosto, acordar os sentidos. Me sinto como o protagonista de algum péssimo romance de Stephen King (desculpem o pleonasmo), mais um escritor fracassado sofrendo de um infame writer's block e assombrado por um espelho que insiste em mostrar uma verdade inconveniente: Meu rosto. Maldición.

Se engana o leitor que acha que essa introdução foi apenas para enrolar, enrolar, enrolar e botar o contador de palavras a girar, girar e girar. Não apenas isso, embora o leitor mais atento certamente notou que não havia a mínima necessidade de repetir três vezes os verbos da oração anterior, anterior, anterior. Sua função foi dupla. Também serviu para em minha auto-depreciação costumeira incorporar a personagem principal. Acho que está funcionando...

É bem esquisito, não apenas meu rosto mas esta sensação de se olhar no espelho e achar que há algo de errado com você. Imagine neste triste mundo monocromático que nossa protagonista Jo habita. Com duas bolas de gude (das buchudas) de olho, bocuda e um jeito moleque é uma deslocada natural. Sua mãe é promíscua, canta como se tivesse engolido um galão de hélio e nunca deu bola para nossa protagonista. Estão presas em um ciclo de insultos e tréguas, insultos e tréguas, insultos e tréguas (três vezes?!) que nunca se acaba. De casa em casa, sempre fugindo do fantasma do aluguel, não tem onde criar raízes e adquirir aquela segurança necessária para o crescimento saudável de qualquer pessoa. Sente uma carência natural nunca suprida por ninguém até a aparição supostamente fortuita em sua vida de seu príncipe Ossini (Jimmie para os íntimos), direto de um palácio luxuoso nas savanas de algum misterioso país da África, posando de descascador de batatas de um navio da marinha ele é a primeira fonte de afeto relativamente estável na vida da nossa feinha protagonista. Logo, logo, logo (três denovo?! Preposterous!) uma precoce paixão se forma e em pouco tempo estão trocando juras de amor e promessas de casamento.

Solidão é uma constante na vida de Jo e está prestes a se tornar permanente. Sua mãe, velhinha cheia de aforismos existencialistas, está prestes a se casar com Peter, boêmio com olho de vidro e uma tara por figuras maternas. Édipo ficaria intrigado. Infelizmente o conflito de personalidades entre Peter, o bebum edipiano de mão boba e nossa protagonista com suas pitombas que lhe encaram a alma, tudo chega à um prevísivel impasse... ou ela ou ele. Sua mãe não decepciona as baixas expectativas que já tínhamos dela e escolhe o óbvio ululante para alguém do seu quilate. É uma chance de ouro para recomeçar! Pois vá para o raio que te parta Jo mas antes um dinheirinho pro ônibus querida, quer que eu te acompanhe até o ponto? Grr....

É neste estado que Jo se entrega à Ossini que partirá no dia seguinte. Mas o futuro não importa, Jo só quer se sentir amada, mesmo que à beira de um rio fedorento, num chão seboso embaixo de um céu cinza tom grafite...

Larga a escola e começar a trabalhar numa sapataria, aluga um vasto apê caindo aos pedaços e inicia uma terna amizade com Geoffrey, sua primeira venda bem sucedida e homossexual sem teto. Jo rapidamente lhe chama para compartilhar moradia. Geoffrey é outro bicho esquisito, não apenas pelas características já citadas que não o faz ser o cara mais popular entre as senhoras conservadoras da Inglaterra dos anos cinquenta... e sim pelo valor simbólico do personagem. Ele é o verdadeiro amor que nunca houve na vida de Jo. É o amor incondicional sem nada a exigir, que mesmo pisado e chutado inúmeras vezes pela língua venenosa de Jo e suas alternâncias de humor, nunca desiste de oferecer-lhe o afeto que tanto necessita.

É o verdadeiro gosto de mel na vida miserável de nossa protagonista. Geoffrey é tão bom que chega a cogitar em sacrificar sua sexualidade pelo futuro filho de Jo (spoilers galore!). Caramba Geoffrey, você é o cara. Acho que se cada pessoa no mundo tivesse um Geoffrey só para si (lá ele) não haveriam pessoas tristes no mundo. Mas o retorno de uma velha coroca e a já citada gravidez jogam uma bigorna pesadíssima na bela amizade. Enfim, Um Gosto de Mel se passa no mundo real, onde contos de fadas não existem e nossa protagonista não quer ser mãe, muito menos solteira. Aonde o único herói do filme é expulso de casa e não se impõe à vilã existencialista. Aonde tudo acaba em uma ambiguidade... em uma incerteza angustiante.

"Você tem certeza para onde está indo?" por Natália Ribeiro Barreto




Quem sabe, certo dia, Pressburger propôs a Powell: Vamos fazer um filme sobre uma garota que quer chegar a uma ilha, mas que está atrasada para chegar lá e quando ela pode chegar, não quer mais? Poderíamos pensar, inicialmente, que essa seria uma proposta ingênua, principalmente para quem vivia em plena 2ª Guerra. Mas, acredito que, em meio ao caos, fazer um filme de amor, no qual predominam o sonho e o mistério, é, no mínimo, digno de mérito. O gosto particular dos diretores por cenários “quase que esquecidos pelo mundo” é visível: se em Narciso Negro, um vilarejo no Himalaia, dessa vez, uma pequena ilha na Escócia, Colonsay, de nome fictício Kiloran, onde há castelos amaldiçoados e as águas do mar tem quase que vontade própria.

Sei onde fica o paraíso não foi simplesmente um projeto inspirador enquanto Powell e Pressburger esperavam a chegada definitiva das cores às telas. Se, como os diretores disseram, a história fluiu quase que espontaneamente, só poderiam mesmo estar falando do roteiro. Mesmo que as cenas internas tenham sido filmadas em estúdio, cenas complexas como a travessia de barco no meio de uma tempestade exigiram muita técnica e inteligência dos diretores. Sendo essas sequências a combinação entre as filmagens no tanque do estúdio - onde se usou até mesmo gelatina na água para a criação de mais efeito das ondas - encenações de estúdio do barco em gimbal e imagens filmadas em cenários naturais. Outra dificuldade teria sido a impossibilidade de Roger Livesey, que interpreta Torquill, de ir à Escócia durante as filmagens. Problema que teria sido resolvido com a utilização de dublês nas cenas de área externa.

Joan, interpretada por Wendy Hiller, figura a típica garota de classe média alta que visa à preservação de seu status quo por meio de um casamento vantajoso. O problema é que ela “sabe para onde está indo”, mas os supostos “acasos” não a permitem chegar lá. Terrivelmente teimosa e obstinada, nada a desvia do seu destino cuidadosamente escolhido, a não ser o aparecimento de um atípico príncipe encantado, Torquill, trajado em sua saia escocesa. Como aparente característica comum às obras de Powell e Pressburger, a história parece se sustentar enquanto os personagens não tomam uma decisão definitiva quanto aos seus conflitos interiores. No caso de Joan, dividida entre sua paixão por Torquill e sua ambição material.

O lugar torna-se particularmente estranho aos olhos de Joan ao perceber que, ali, as pessoas não encontram sentidos de vida em visar ao dinheiro e à posição social, e sim, em permanecer em constante contato com a natureza e suas forças místicas. A maldição do castelo, desconhecida até o final do filme, mantém o suspense de que algo terrível poderá acontecer, mas, ao final, descobriremos que a maldição não é, propriamente, uma vingança, mas um destino - maravilhoso para os apaixonados - a ser cumprido: ficarem acorrentados um ao outro pelo resto de seus dias.

A trajetória de Joan é uma trajetória de descoberta do amor, do desprendimento, dos pequenos prazeres, da doação e, sobretudo, da incerteza. Joan descobre a incerteza. A incerteza em que se atira ao abrir mão de seu suposto paraíso para viver um grande amor. Talvez, nesse momento, ela tivesse dito, como nos belos versos de José Régio: não sei por onde vou, não sei para onde vou, só sei que não vou por aí.

"O melhor está nas entrelinhas" por Yuri Assis


Michael Powell e Emeric Pressburger criaram uma narrativa de tons subversivos quiçá para a época, quiçá pelo tema. “Narciso Negro”, contando com atuações de Deborah Kerr como madre superiora, Kathleen Byron como uma freira psicótica, e David Farrar como o expatriado britânico Mr. Dean, põe em foco, em 1947, irmãs da Ordem das Servas de Maria, que, rodeadas de luxúria, são testadas em suas crenças. Colocar os representantes de Jesus Cristo em parâmetros humanos foi uma boa sacada da dupla, que se intitulava The Archers. Ao menos, naqueles tempos, naquelas condições, naqueles pensamentos típicos de um momento pós-Segunda Guerra Mundial.

“Narciso Negro” traz para a tela cinco freiras que tentam instituir um convento num povoado, de nome Mopu, situado próximo ao Himalaia. O clima, entretanto, não parece exatamente favorável à empreitada. Primeiro que o local escolhido para acolher o projeto tinha servido anteriormente como harém para um antigo sultão. Depois que a irmã Clodagh, personagem de Kerr, sente qualquer coisa fora de lugar transmitida nos ventos que assolam o palácio. Era como se o ambiente, de propósito, já decretasse a derrocada das intenções da recém madre superiora. E de fato, o maior efeito chega sem atraso: as irmãs começam a se relembrar de suas vidas mundanas como mulheres comuns. Aí que o jeito de freira começa a se desmanchar.

Para um melodrama, a película consegue ultrapassar aquilo a que se propõe, pelo fato mesmo de haver um constante erotismo cercando o desenvolver da trama. Erotismo este que se imiscui através dos personagens, através do cenário, através do jogo de imagens. É um prato cheio para o campo da semiótica fazer comparações de cunho freudiano a respeito do desejo e do medo. Vale a pena ressaltar aqui a presença de Mr. Dean, encarregado do general de auxiliar as irmãs a se instalarem. Farrar encarnou bem o papel de galã viril a intermediar a relação entre cinco mulheres frágeis e os habitantes do povoado. Acontece que o quê de erotismo advém em boa parte dessa aproximação com o Mr. Dean.

Premeditado ou não, a fotografia por si só é luxuriosa, com toda uma insinuação barroca que se revela na mise-en-scène, na paisagem, no palácio, nos trajes, nos closes da câmera, nos ângulos enviesados, nas encenações caricatas de cada ator, enfim. É interessante, inclusive, perceber que os personagens, sem exceção, são meticulosamente encaixados em tipos. Dá para suspeitar que Powell e Pressburger quiseram reforçar essa analogia com o inconsciente humano através do uso de arquétipos, isto é, símbolos triviais do imaginário humano cujo apelo é tal que por si sós constroem mensagens.

Uma cena bacana de se destacar é uma, perto do final, na qual a irmã Clodagh está verificando se todas as freiras se encontram em seus recintos. Ao passar pela porta do quarto da irmã Ruth, Clodagh vê a luz acesa e presume que há alguma movimentação estranha. Primeiro, bate na porta, chama e espera resposta. Ruth apaga a luz e silencia. Clodagh persiste, força a entrada e se surpreende com uma porta trancada. Continua até conseguir. Quando finalmente adentra o lugar, se assusta - ou se admira - ao apanhar a ex-freira sem seu hábito, trajada com um vestido bordô. Apesar da breve contenda, Clodagh consegue convencê-la a ficar até o amanhecer. E assim, sentam-se uma diante da outra. Ruth, para testá-la, saca um batom e um espelho e pinta os lábios de um vermelho vivo. Ruth, vermelha e bordô, pálida, gestos esquivos, se esvaindo na escuridão, uma sombra. Clodagh, branca e azul, respiração presa, lábios tensos, portando uma bíblia, um terço, ares de santa. Céu e inferno. Deus e diabo. Superego e id. É nesse momento que todo o viés subliminar do filme vem à tona, deixando claro que o melhor está nas entrelinhas.

"Narciso Negro", apesar dos diversos pesares que lhe dão um caráter levemente cafona, merece atenção por ultrapassar os contornos de seu próprio gênero. Powell e Pressburger criaram uma cinematografia que dá a margem a comparações com crenças ou ciências baseadas em signos. O que a censura não deixava dizer, teve que ser dito atrás do pensamento. Vem daí seu mérito de receber destaque no cinema inglês dos anos 40, isto é, o fato de não ter sido apenas um melodrama com um romance sentimental repleto de percalços, mas cujo sentido faz manhas e artimanhas antes de se revelar por inteiro.

“Blow up (Depois daquele beijo)” por Ingrid Maiany



“Blow up”, primeiro filme em língua inglesa de Michelangelo Antonioni, é um verdadeiro trocadilho. Filmado na Londres de 1966, o longa amplia nossa visão de cinema, à medida que Thomas – o fotógrafo personagem – amplia seus negativos. E o trocadilho não se restringe à brincadeira com o título da película. Mas para que se entenda, é preciso contar um pouco da história ambientada na “swinging london, expressão de Diana Vreeland, editora-chefe da mais famosa revista de moda do mundo, a Vogue.

Para começar, é necessário que se diga que é exatamente com moda que o personagem de David Hemmings trabalha. Thomas é o mais requisitado fotógrafo de modelos e publicações da capital inglesa. O que não faz com que sua vida seja interessante. Ele julga todas aquelas mulheres tão bonitas quanto inexpressivas um tédio. “Sorria”, ordena para um grupo de cinco garotas que estão sendo fotografadas. Diante da apatia que permanece, constata: “Vocês não sabem sorrir”.

Não, a criatura de Antonioni não é contente com sua vida de glamour. Ele próprio sorri muito pouco. E é por isso que quando resolve lançar um livro, a temática nada tem a ver com a beleza gritante da esfera “fashion”. Isso não é real. E o que é real para Thomas? A insatisfação, a tristeza, retratadas em violência, em mendigos. Mas ora, que penoso seria um livro sem final feliz! Afinal, não é isso que o leitor anseia ao acompanhar uma história? Não é isso que esperam aqueles olhos na sala escura do cinema?

Thomas encontra não premeditadamente um desfecho tão real como bonito para seu enredo. Passeando por um típico parque londrino, o fotógrafo flagra um casal aos beijos e decide fazer dessas imagens não autorizadas o “grand finale” de sua obra. Mas, como diz o teaser do filme (inteligentemente composto por foto-imagens – http://www.youtube.com/watch?v=an4tDcb7LvQ), “algumas vezes, a realidade é a mais estranha de todas as fantasias”.

Talvez pelo fascínio que a cena lhe causou, talvez pela insistência de Jane (Vanessa Redgrave) – a moça fotografada involuntariamente – em receber o filme utilizado de volta, Thomas confere atenção especial às imagens capturadas no parque. E é justamente a expressividade dela que a trai. Jane se mostra preocupada, aflita, olhando em uma direção. Após uma série de ampliações do local para o qual ela olhava, Thomas consegue perceber um homem segurando uma arma. Teria o fotógrafo sido ironicamente testemunha de um assassinato enquanto tentava livrar-se do rumo obscuro de seu livro?

Não importa a resposta, não é esse o objetivo do filme. “Blow up” é uma alegoria. Através da metalinguagem, ele versa sobre o cinema. Da mesma maneira que o espectador procura uma resposta por meio da sucessão de imagens que se projeta na tela, Thomas tenta achar uma solução pras fotografias do parque espalhadas pelas paredes de sua casa. Antonioni parece estar a todo momento perguntando: “cinema tem que fazer sentido?” Bom, a sequencia de imagens observadas pelo fotógrafo possuem uma lógica. Contudo, a lógica foram as fotografias que projetaram ou foi Thomas quem inventou? A mensagem transmitida pela película pertence ao cineasta ou àquele que a assiste? Engendra-se uma discussão acerca da perspectiva.

Talvez seja esse o principal questionamento de Antonioni. Não é, contudo, o único. As modelos em suas poses estáticas, os diálogos escassos, a apatia dos espectadores do show dos Yardibirds, a passividade dos frequentadores da festa em que Thomas vai resgatar seu agente. Tudo vai de encontro à Londres efervecente da década de 60. Nessa época, a Inglaterra vivia uma explosão cultural e lançou ao mundo importantes nomes da música, artes plásticas, teatro, moda e cinema. Entres eles, a própria Verucshka, modelo fotografada por Thomas em “Blow up”.

O ensaio de Verucshka para Thomas é uma das cenas mais bonitas do filme. Ângulos avassaladores, enquadramentos perfeitos, movimentação precisa. O espectador, pelos olhos de Antonioni, é o fotógrafo de Thomas fotografando sua modelo. Sendo tecnicolor, “Blow up” possui imagens exuberantes, as cores são vivas, talvez a única coisa palpitante na obra. Nem mesmo o lema “sexo, drogas e rock'n'roll” foge ao tédio que é a vida humana. A apatia não se restringe aos ouvintes da apresentação dos Yardibirds. Moças e rapazes que se drogam, não ficam eufóricos. Eles olham para o nada e possuem a mesma expressão vazia das modelos fotografadas anteriormente ou da vizinha de Thomas, Patrícia (Sarah Miles), ao fazer sexo com seu namorado.

O porquê do talvez na afirmação sobre as cores deve-se a basicamente um detalhe: os mímicos que abrem e encerram o filme de Antonioni. Eles são, certamente, borbulhantes. Na última cena, Thomas presencia uma partida fictícia de tênis encenada por eles e não só parece ver, como escuta a bola. Pois não é isso que nos acontece ao ver um filme? Sabendo tratar-se de uma representação, transportamo-nos para sua história e cremos naquilo que estamos vendo. Último plano, o fotógrafo vai buscar a bolinha imaginária que caiu longe, no gramado, e desaparece. Para onde foi Thomas? Sobem os letreiros, voltamos.