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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

OS INCOMPREENDIDOS – Uma educação, por João Roberto Cintra


No filme “Educação” (An Education, 2009), da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, há o confronto entre dois tipos de educação: a formal, tradicional, como se tem nas escolas e uma outra, pouco ortodoxa, a da experiência, do dia a dia. Na Inglaterra dos anos 60, com Beatles e Rolling Stones a ponto de pipocarem, fica difícil para a protagonista não se seduzir em deixar a escola para conhecer o mundo. Entretanto, mais cedo do que esse período, a educação tradicional já não bastava para uma juventude que cada vez mais não queria olhar apenas para professores e livros, mas também para o mundo e fazer dele também um aprendizado.

Talvez seja a partir desses paradigmas sobre a educação que se possa começar a (sem trocadilho) compreender “Os incompreendidos” (Les 400 coups, 1959). Filme de estréia de François Truffaut, ele funciona como uma síntese desse sentimento de inadequação por parte dos jovens à educação tradicional que se impõe como “a verdade”. Antoine Doinel é um garoto que parece não pertencer a qualquer esfera em que esteja: em casa, enfrenta uma mãe descuidada; na escola, entra em conflito com o professor. Nesse meio tempo, suas escapadas à rua, ficando dias sem voltar para casa, parecem ser a melhor parte da sua vida, sem qualquer amarra social e tradicional em voga – apenas a descoberta da cidade e da (sua) própria vida.

Um dos clássicos mais celebrados do cinema, há talvez no enredo e na figura de Antoine Doinel a cara de toda a geração responsável pelo movimento do qual o filme se originou. A Nouvelle Vague trazia nos seus realizadores um olhar para o cinema o mais distante possível do que se vinha produzindo até então. O movimento nasceu dentre outras maneiras de uma consciência sobre a memória e a história do cinema, de como tinha sido feito até então – principalmente pela prática da cinefilia, com jovens assistindo e discutindo os filmes em reunião com amigos. Truffaut, Godard, Chabrol e outros da ‘turma’, começaram a enxergar o cinema de outra maneira – não pela gramática formal de se filmar, mas um modo mais livre, sem amarras desse formalismo. Assim como as experiências que buscava Doinel.

Essa ‘nova onda’ que propunha esses jovens realizadores iria de encontro à forma de se conceber o cinema, de se contar uma história. Isso já é claro na forma quase documental que é contado “Os incompreendidos”. Mais que a história do garoto é um recorte na sua vida, em um momento culminante de passagem da infância para a adolescência. As duas fases são recorrentes em todo o filme: as brincadeiras do protagonista com os amigos, a reação das crianças assistindo ao teatro de bonecos; do mesmo modo, Doinel fuma, rouba, é levado para uma delegacia e depois para um reformatório – universos não mais infantis. Sem grandes amarras na história de começo ou fim, o que temos é a história do ‘entre’, o meio, o que não é ainda. Em suma, um rito de passagem do personagem principal – e um rito também para o seu realizador. O olhar enrijecido dos adultos não via o que Doinel podia ver. Os cineastas da Nouvelle Vague não queriam mais enxergar daquele modo.

Interessante pensar que os filmes franceses até o movimento seguiam as convenções do cinema de forma extrema para parecer o mais natural, o mais real possível. Escrevendo para a revista Cahiers Du Cinema os críticos diziam que as convenções cristalizadas retiravam do público a verdadeira noção do que é real. Nos filmes da Nouvelle Vague essas convenções começaram a ser desrespeitadas em nome de mostrar o tempo inteiro ao expectador que aquilo não era a vida, mas um filme. Quebra de racord, montagem não linear, diálogos livres (sem estar diretamente atrelados a “contar” a história) são algumas das características dos filmes, que causaram estranhamento na época (ainda causam!), mas estão a serviço de uma legitimidade da mise-en-scène menos maniqueísta.

Uma das grandes cenas de “Os incompreendidos” está exatamente no encontro do protagonista com a psicóloga no reformatório: mesmo com a voz dela, há o estranhamento de sua imagem não ser mostrada em momento algum. De forma orgânica, Truffaut nos diz que não há um diálogo entre as duas instâncias, uma via de duas mãos, há, sim, um interrogatório. Apesar do estranhamento, não há nela nada de artificial: as respostas diretas, a inquietação das mãos, o olhar perdido de Doinel para nós (ele olha para a câmera, para a platéia) mostram agora muitas verdades e convergem para uma das mais reais e sinceras passagens que o cinema produziu.

sábado, 29 de maio de 2010

"Rapadura também é doce, mas não é mel!", por João Roberto Cintra


Mãe e filha que se detestam. Flerte entre uma menina (branca) e um marinheiro (negro). Aberta discussão sobre homossexualidade. Tudo isso em um filme feito há quase 50 anos! Como uma obra com todos esses elementos pode se chamar “Um gosto de mel”?

Dirigido por Tony Richardson, e baseado numa peça de Shelagh Delaney (que co-assina o roteiro), o filme é um primoroso exemplar dos “dramas de pia e cozinha” que retratavam o universo da classe operária inglesa, tema de vários outros filmes dessa época. Em especial o filme traz uma mulher como protagonista (mais uma ousadia), colocando esse universo feminino (tão sagrado em épocas anteriores por donas-de-casa compassivas) mais realista, ordinário – e até cruel.

Jo (Rita Tushingham) é uma adolescente pouco graciosa e até deslocada. Aparece logo no início do filme lavando o rosto, olhando-se no espelho, desajeitada e infantil. Mora só com sua mãe, Helen (Dora Bryan), que não vive exatamente como seu papel social designaria: mãe solteira, chegada a bebida e festas, por vezes promíscua, parece viver a adolescência tardia e não sente responsabilidade pela filha. Em resumo, Helen seria aquela colega de classe de que toda mãe imediatamente mandaria a filha se afastar quando a conhecesse. Ora Jo vive seu momento: como meninas da sua idade, diverte-se na escola e tem seus namoricos – é quando conhece o marinheiro negro (Paul Danquash) – um escândalo que ela parece não se importar – e com ele passa uma noite. Ora ela entra em conflito com a mãe rebelde, numa inversão de papeis. Os diálogos entre as duas são realistas ao ponto de se tornarem cruéis – ou amargas – saídas da boca de uma mãe, cândida figura da cultura cristã ocidental.

Jogada no mundo por Helen (que se casa e não leva a filha consigo), Jo conhece Geoffrey (Murray Melvin), com quem passa a morar – que logo se torna seu heroi, a segurança que nunca conheceu antes. Poderia ser o galã... se não fosse gay. E é surpreendente a aparição de um personagem homossexual nessa época, com tanto destaque e tendo sua sexualidade tratada de forma tão aberta – mesmo que seja para ouvir palavras maldosas da matriarca e seu marido da vez. Verdadeiro salvador de Jo, quem a tira de seu mundo ordinário e põe um pouco de sabor em sua vida, e com a qual se importa de verdade, é posto para fora de casa com o retorno de Helen, após o fracasso de mais um casamento, levando a doçura que Jo e o bebê que esperava poderiam experimentar. Pobre Jo. Involuntariamente grávida, seria mãe sem saber a quem copiar – a não ser a mãe solteira que teve, com quem nunca soube lidar.

Todos os personagens, tão carentes, mas sem saber como agir com o outro, se atraem por essa ânsia de contato, mas se repelem pelo gosto agridoce do sentimento, que só os pequenos gostam sem procurar entender – como uma sobremesa antes do jantar. Talvez isso explique a recorrência de crianças brincando ao longo do filme, além do tema musical infantil usado. Ou mais que isso. Do começo ao fim do filme, mesmo com todas as experiências e turbulência, há um tom infantil na figura de Jô, boca semiaberta, indagando o mundo – como na imagem congelada do menino Doinel, no final de “Os incompreendidos”, de Truffaut. Doinel e Jo. Infância pouco tranqüila e com adolescência interrompida por uma maturidade precoce, desorientada e indesejada. Rapadura também é doce, mas não é mel.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

"Quando não retornamos e voltamos sempre" por João Roberto Cintra


“Promise me you’ll come back to me…” “I promise, I’ll come back to you… I promise...” Ok. O filme em questão não é “O paciente inglês”. Nem a dona de casa é a mesma de “As pontes de Madison” – esperando o fotógrafo Clint Eastwood voltar. Nem os amantes que anseiam pela consumação do amor (não apenas do sexo) se chamam Jack Twist e Enis Del Mar. Mas, o título filme em questão, “Desencanto", mesmo sendo uma péssima tradução de “Brief Encountrer”, ainda serve para marcar uma tradição do melodrama que segue forte até hoje para plateias que adoram sofrer com as desilusões dos outros ou tentam expurgar suas próprias.

O filme de David Lean, entretanto, não é mais um filme romântico xaroposo como tantos outros – e não se entenda por xaroposos os outros filmes acima citados. Trata-se de um clássico do cinema britânico, cultuado e adorado até hoje, como uma alegoria da melancolia do pós-guerra. Não se pode dizer que seja exatamente atual, no sentido de que, para a visão de hoje, ele é posto como quase um filme de época – mesmo que tenha sido contemporâneo no seu tempo. Entretanto, como os sentimentos tratados no filme podem ser de época, datados, se são próprios da condição humana em si?

Laura (Célia Johnson, ótima atriz, beleza mediana, que não ofusca seu desempenho) é uma ordinária dona de casa, que, em um acidente trivial, conhece o médico Alec Harvey (Trevor Howard, galã de época, bom partido até hoje, daqueles homens que deixam as mulheres pensando: “Por que eu não encontro alguém assim?”), também casado, cujos encontros ao acaso os levam a alimentar sentimentos mútuos, mas impossíveis para o bem social de ambos. Drama instalado. Mas não há como agir sinicamente a ele.

Mesmo seguindo essa tradição, a narrativa é uma boa surpresa. O filme começa pelo desfecho, mas a não linearidade não estraga a história, e sim dá a ela nova dimensão. O que acompanhamos não é o desenrolar de fatos: são as memórias de Célia sobre os poucos dias em que teve contato com Alec. Coitada. Casada, não pode compartilhar sua angústia com o marido. Sem amigas próximas – bem, e a quem confessar algo assim? – ela vive seu pequeno segredo contando a história para si mesma, quase como quando enlouquecemos passando mil vezes a mesma versão dos fatos na cabeça.

Seu drama contrasta com a sobriedade das locações e do roteiro em si. Não há vazão para choros histéricos, não há lugar para a falta de compostura.Até linda fotografia em preto-e-branco parece a certa hora sufocar os amantes, seus sentimentos, como se sua história amoral fosse estragar o cenário. O tom melancólico é mais acentuado pela música de Rachmaninov, um concerto para piano, bonito e triste. Torcemos para um final feliz apenas para nadar contra a corrente, mesmo sabendo que não vai existir. Desde antes de “Romeu e Julieta” essa batalha é perdida – e continuamos a torcer, pedindo para que Sam toque outra vez: “You must remember this/ A kiss is still a kiss/ A sign is just a sign...”(E o avião parte outra vez para longe.)

Amores impossíveis, amantes solitários. No fim, a memória é o lugar seguro para o qual sempre voltamos para encontrar quem deixamos para trás. Mesmo que a promessa – ou a esperança – de volta não tenha se cumprido.