sábado, 14 de fevereiro de 2015

"As duas faces da felicidade", por Juliana Soares Lima


A primeira sequência do filme, um imenso jardim de girassóis onde se vê ao fundo uma pequena família, que é também uma família na vida real, passeando é quase a síntese da vida levada por aquele casal e seus dois filhos: François, o carpinteiro e Thèrese, a costureira, levam uma vida bucólica na pequena cidade francesa de Fontenay. Não há dúvidas do carinho mútuo e os dois são felizes em passar os dias seus dias revezando entre o trabalho e a criação do pequeno casal de irmãos Gisou e Pierrot. Seu lazer nos fins de semana é fazer piqueniques e passear no campo. A trilha sonora composta por Mozart combinada com a fotografia em cores pastel ajuda a tornar a rotina daquela casal que não precisa de muito para considerar-se feliz, tão detalhada ao longo do filme, ainda mais encantadora. Max Ophuls disse uma vez "a felicidade não é alegre". A felicidade do casal é simples, serena, quieta e parece inabalável, mas até que ponto?
Numa viagem a uma cidade próxima, ao dirigir-se algumas vezes ao centro dos correios para fazer ligações interurbanas conhece uma funcionária. O encanto é mútuo: depois de um encontro num café os dois acabam envolvendo-se num relacionamento amoroso. François diz “Eu conheci Thèrese primeiro, e casei com ela, e a amo, e amo você e sou feliz. Se tivesse conhecido você primeiro, teria casado com você”. François ama Thèrese, acredita que é capaz de somar os dois amores, somando assim felicidade. Mas será possível somar dois amores? Será que François realmente ainda ama Thèrese da mesma forma?
É interessante a forma com que Agnes Varda discute a questão da poligamia. Agnes disse "No meu filme, o pecado não existe. Nem a baixaria." François não sente culpa, não se deixa tomar pelo moralismo, também não omite a verdade de sua mulher: em mais um dos passeios ao campo com a mulher e os filhos ele lhe conta a verdade, diz que está encontrando outra pessoa há um mês, teme a reação da esposa mas espera que ela entenda que ele jamais negligenciaria sua família por causa de outra mulher, mas pelo contrário, seria um homem ainda mais feliz e traria mais felicidade pro seu lar. A reação de Thèrese é ainda mais inesperada: ela diz que se ele está feliz, ela também está. E qualquer coisa que o faz feliz, também a faz. Parece bastante altruísta, mas será que uma mulher apaixonada por seu marido seria capaz de conviver com o fato de que seu marido é feliz com outra mulher? Não Thèrese, porque apesar da aparente tranquilidade diante da notícia, deixa os três enquanto tiram um cochilo e comete suicídio no lago do bosque onde estavam.

A beleza estética provocada pela combinação de trilha sonora, fotografia, cores, cortes, a brincadeira com o foco e o jogo de plano e contraplano na montagem do filme, que torna a experiência tão amena contrasta com a força das questões levantas por Varda: o alcance da felicidade, amor, moralismo, sentimento de culpa, ciúmes e sofrimento. E após os curtos 79min de duração do filme é capaz de suscitar questões dignas de bastante reflexão sobre nossa própria postura. Desde "Qual seria minha reação se eu fosse Thèrese?" até "O que é preciso para ser feliz?".

Um comentário:

  1. Extrema beleza que machuca. Olha, sinceramente... Poético, sútil e intenso.

    Infelizmente a sátira parece passar por cima da cabeça de muitas pessoas que se deixam enganar pelos artifícios do filme e veem nele uma linda meditação simpática ao poliamor. Quando, na verdade, a atmosfera "perfeita demais", o constante senso de artificialidade e a subserviência das mulheres aos desejos e à felicidade de François, apontam para algo extremamente diverso, muito mais ácido.

    “- Qual delas prefere: Brigitte Bardot ou Jeanne Moreau?
    - Como mulher, você... (corta para despensa lotada de imagens de revista das duas)”

    Esse personagem principal já tem lugar reservado no seu Top 5 de embustes do cinema. Começei a estranhar o rumo do filme enquanto assistia, até me tocar da chamada “crítica social f*da”: o carpinteiro bom-moço, cidadão de bem e pai de família que “inocentemente” se apaixona por outra e tenta conciliar a vida com as duas, até que acontece o que aconteceu e o filme tem seu final “feliz”... é capaz de muito homem (e muita mulher) assistir e se sentir representado e até mesmo redimido sem analisar nas entrelinhas.

    “Postière Très Tentante. Pense Très. Tendrement. Passionément Terriblement a. Toi. Prés Te toi. Pour Toi Ton. François.”

    "Não sei se era a intenção, mas o final deste filme me causou muita angústia" - Você não sabe como isso rola com tais pessoas. aqueles minutos finais, aparentemente fofinhos, são terríveis. Sendo está aí a intenção do filme, nos apresentar um mundo florido onde tudo é lindo e colorido, e no final nos apresentar a tristeza do abandono e da indiferença. Tu entendestes bem o filme, é exatamente isso.

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