A palavra
Iugoslávia imediatamente me remete a um conjunto pequeno de situações. A mais
particular delas, uma quase distante aula de Geografia, onde tentava imaginar o
que era viver em um país-barril-de-pólvora, unificado por um fio; sendo mais
específica. a figura de um carismático populista, o general Tito. Foi nesse
mesmo ano em que assisti “Adeus, Lênin”, e, oito anos depois, percebo alguns
goles (gotas?) da fonte de Kusturica no filme alemão, embora a bebida fique
apenas no desenvolvimento do argumento do que no viés ideológico.
Se em “Adeus,
Lênin” vemos um filho criar um mundo imaginário para manter de pé o regime
socialista (e o muro de Berlim) dentro da imaginação de sua mãe doente, em
Underground (tradução: Mentiras de guerra), as motivações da ficção passam
longe de qualquer nobreza. Remete a algo
como uma versão perversa de Mãe Coragem, peça de Bertolt Brecht, onde a
protagonista homônima se sustenta da mesma guerra que mata seus filhos.
É a Segunda
Guerra Mundial, e Belgrado é bombardeada pelos alemães. Os protagonistas e
melhores amigos Marko e Blacky são uma dupla de ditos comunistas que se
envolvem em uma série de saques, roubos e golpes. A amizade de ambos é abalada
pela jovem atriz Natalya, que os envolve em um triângulo amoroso. A bem da
verdade, um quadrado, uma vez que a outra ponta é o oficial nazista Franz. Ela
convenientemente se decide por Marko e, após uma batalha contra os nazistas, o
casal engana um grupo que estava acolhido em um abrigo subterrâneo – incluindo
o próprio Blacky – convencendo-os de que a guerra ainda não acabou. Enquanto
isso, por cima do chão, vivem uma vida luxuosa, sendo reconhecidos como heróis
por Tito, e comercializando as armas produzidas pelos moradores do porão. O
plano é abalado quando o impetuoso Blacky resolve romper as imaginárias ordens
de segurança do submundo e partir ao lado de seu filho para a luta lá fora.
Extremamente
sarcástico, Underground é felliniano, exagerado, teatral, talvez circense. Os
personagens, tipos extremos, povoam imagens de arquivo colorizadas utilizadas
durante o filme, misturando realidade e ficção, gerando cenas impagáveis (como
a da morte de Tito). As metáforas para falar do regime comunista e da colcha de
retalhos iugoslava são muitos, como a ilha feliz e possível na memória, como
uma realidade paralela vinda da teoria das cordas: o que teria acontecido se
não houvesse guerra? Uma ode à música (e à piada da trilha sonora versus música
diegética) torna tudo ainda mais divertido; a myse-en-abyme criada (felliniana,
novamente) é hilária. Tudo é terrivelmente divertido e trágico nesta história,
e o deboche ao comunismo (principalmente à “moral revolucionária” leninista e
toda a sua pompa envolvida) é evidente; mas, longe de ser um deboche rancoroso,
ou exclusivamente contra o regime comunista. Underground debocha de todos os
lados da guerra - “Quem nos bombardeia
agora? Os Aliados. Quando os Nazis não nos bombardeiam, são os Aliados”. Debocha
dos tipos nativos e seus estereótipos, debocha da guerra, além do evento, enquanto ethos. Por fim,
mergulhada em anomia, a Iugoslávia nada, desliza, paira, uma memória e um
registro do que já foi e nunca mais será.
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