sábado, 14 de fevereiro de 2015

Uma guerra só é uma guerra quando..., por Jullie Utsch



A palavra Iugoslávia imediatamente me remete a um conjunto pequeno de situações. A mais particular delas, uma quase distante aula de Geografia, onde tentava imaginar o que era viver em um país-barril-de-pólvora, unificado por um fio; sendo mais específica. a figura de um carismático populista, o general Tito. Foi nesse mesmo ano em que assisti “Adeus, Lênin”, e, oito anos depois, percebo alguns goles (gotas?) da fonte de Kusturica no filme alemão, embora a bebida fique apenas no desenvolvimento do argumento do que no viés ideológico.

Se em “Adeus, Lênin” vemos um filho criar um mundo imaginário para manter de pé o regime socialista (e o muro de Berlim) dentro da imaginação de sua mãe doente, em Underground (tradução: Mentiras de guerra), as motivações da ficção passam longe de qualquer nobreza.  Remete a algo como uma versão perversa de Mãe Coragem, peça de Bertolt Brecht, onde a protagonista homônima se sustenta da mesma guerra que mata seus filhos.

É a Segunda Guerra Mundial, e Belgrado é bombardeada pelos alemães. Os protagonistas e melhores amigos Marko e Blacky são uma dupla de ditos comunistas que se envolvem em uma série de saques, roubos e golpes. A amizade de ambos é abalada pela jovem atriz Natalya, que os envolve em um triângulo amoroso. A bem da verdade, um quadrado, uma vez que a outra ponta é o oficial nazista Franz. Ela convenientemente se decide por Marko e, após uma batalha contra os nazistas, o casal engana um grupo que estava acolhido em um abrigo subterrâneo – incluindo o próprio Blacky – convencendo-os de que a guerra ainda não acabou. Enquanto isso, por cima do chão, vivem uma vida luxuosa, sendo reconhecidos como heróis por Tito, e comercializando as armas produzidas pelos moradores do porão. O plano é abalado quando o impetuoso Blacky resolve romper as imaginárias ordens de segurança do submundo e partir ao lado de seu filho para a luta lá fora.


Extremamente sarcástico, Underground é felliniano, exagerado, teatral, talvez circense. Os personagens, tipos extremos, povoam imagens de arquivo colorizadas utilizadas durante o filme, misturando realidade e ficção, gerando cenas impagáveis (como a da morte de Tito). As metáforas para falar do regime comunista e da colcha de retalhos iugoslava são muitos, como a ilha feliz e possível na memória, como uma realidade paralela vinda da teoria das cordas: o que teria acontecido se não houvesse guerra? Uma ode à música (e à piada da trilha sonora versus música diegética) torna tudo ainda mais divertido; a myse-en-abyme criada (felliniana, novamente) é hilária. Tudo é terrivelmente divertido e trágico nesta história, e o deboche ao comunismo (principalmente à “moral revolucionária” leninista e toda a sua pompa envolvida) é evidente; mas, longe de ser um deboche rancoroso, ou exclusivamente contra o regime comunista. Underground debocha de todos os lados da guerra -  “Quem nos bombardeia agora? Os Aliados. Quando os Nazis não nos bombardeiam, são os Aliados”. Debocha dos tipos nativos e seus estereótipos, debocha da guerra,  além do evento, enquanto ethos. Por fim, mergulhada em anomia, a Iugoslávia nada, desliza, paira, uma memória e um registro do que já foi e nunca mais será.

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