sábado, 14 de fevereiro de 2015

Natureza e transcendência, por Jonas Menezes




“O que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, um tudo em relação ao nada, um ponto a meio entre nada e tudo.”  (Blaise Pascal)

O filme já se inicia com a intrigante frase: “Todos nós somos feras selvagens por natureza. Nosso dever como seres humanos é tornarmos adestradores que mantêm seus animais sob controle, até os ensinarem a cumprir tarefas distantes da bestialidade.” Se para Aristóteles “Todo homem, por natureza, quer saber”, Apichatpong Weerasethakul proporciona uma experiência completamente diferente das noções de linearidade e busca por respostas a que estamos habituados em nossa sociedade. Uma verdadeira ruptura com a nossa visão ocidental de cinema e com o racionalismo cientificista.
Grande parte das cenas são desconexas e vazias de sentido, denotando certo niilismo. Imagens do cotidiano de um grupo de soldados são intercaladas com o cotidiano de uma família camponesa e com planos que demostram o ritmo acelerado da cidade grande, com suas luzes, cores fortes e toda sua agitação diária. O filme que se divide em duas partes, possui um inicio simples. No decorrer da narrativa vamos lentamente reconhecendo a existência do amor entre, Keng, um soldado, e Tong, um camponês que vive com a família em um vilarejo. A primeira parte é permeada de situações comuns na vida dos cidadãos tailandeses, como ir ao cinema, reuniões familiares para o jantar, jogar futebol, ir a um bar para apreciar música ao vivo, e entrar em contato com a religiosidade, retratadas de maneiras bastante singela.
Apesar de tratar-se de um romance homossexual, o filme não é panfletário. Não abarca a questão da homofobia e retrata um romance que aparentemente é aceito de maneira natural pelo convívio social. Fala sobre amor num aspecto geral. Em dado momento somos levados a uma caverna, e ouvimos histórias macabras de uma velha vendedora de flores. São desafiados a atravessar a gruta, porém Keng se opõe, contrariando seu parceiro. Temos nesse trecho a introdução do elemento místico na trama. Exatamente no momento em que há o ápice da troca de afetos entre os dois rapazes, quando simbolicamente Ken e Tong lambem seus respectivos dedos das mãos, Tong interrompe esse gesto e estranhamente vai embora, desaparecendo por entre a escuridão da floresta.
Após alguns minutos de cenas de felicidade e sorrisos de satisfação de Keng caminhando pela cidade em sua moto, O diretor nos surpreende e constrói uma narrativa totalmente diferente. Uma segunda parte do filme que pode ser interpretada como continuação metafórica ou simplesmente como um outro filme. Vacas da região começam a ser decapitadas por um animal selvagem e um mito local explica que um xamã que habita a floresta pode transformar-se em animais selvagens e seres humanos. O filme que possuía uma trama simplória toma ar de suspense sobrenatural.
Keng passa a habitar o coração da floresta tropical e depara-se com diversas situações sublimes e inexplicáveis. Se para Sêneca “Toda arte é imitação da natureza”, Apichatpong retrata uma trama onde a própria natureza é a personagem. Essa perspectiva acerca do mundo natural, certamente influenciada pela religiosidade budista e hinduísta, é possível de ser observada em outros diretores orientais como Satyajit Ray com seu A canção da estrada e Akira Kurosawa em Dersu Uzala, mas Apichatpong eleva isso a outro nível. Temos aqui um mergulho no mistério. Diálogos com macacos, uma luta corporal com um homem que pode transformar-se em tigre e visualização de espíritos de animais são algumas das situações inexplicáveis racionalmente e apenas passíveis de serem sentidas por nossos instintos primitivos.
É um filme sobre entrega pessoal. Há implicitamente a mensagem de que o amor transforma as pessoas. O embate entre o homem-tigre e o soldado lentamente revela-se em uma atração mútua. Ambos exercendo influência sobre o outro. O ultimato é dado: Matar o tigre ou entregar-se a ele. Por fim Keng decide render-se permitindo que o este devore sua alma recitando essas palavras: “Monstro, eu te dou meu espírito, minha carne  e minhas memórias. Cada gota de meu sangue canta nossa canção. Uma canção de alegria Então... Você está escutando?”. Se na primeira parte do filme o jovem camponês ironizava seu companheiro quando este dizia que por suas mãos formarem o desenho de uma barca real viveriam eternamente, respondendo que na verdade formavam uma frágil canoa, no segundo momento, o tigre interpretado pelo mesmo ator está devorando a alma do soldado.
Em seu artigo intitulado “O instante dos amantes: Cinema, tempo e corpo nas periferias do capitalismo flexível” Ely Vieira Jr afirma que “essa segunda estória prolonga o caráter de fascinação e mistério da primeira, fantasiando e reconfigurando a banalidade dos eventos que constituem sua antecessora, tal qual os enamorados fantasiam os pequenos fatos cotidianos... “Weerasethakul trabalha com uma série de ambiguidades para enredar o espectador sob regimes temporais diferenciados. Esses dois filmes trabalham muito mais de maneira sensorial que racional, de modo que podem ser melhor apreendidos intuitivamente do que sob uma lógica de começo-meio-fim.”




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