“O que é o homem na natureza? Um nada em relação ao
infinito, um tudo em relação ao nada, um ponto a meio entre nada e tudo.” (Blaise Pascal)
O filme já se inicia com a intrigante frase: “Todos nós somos feras
selvagens por natureza. Nosso dever como seres humanos é tornarmos adestradores
que mantêm seus animais sob controle, até os ensinarem a cumprir tarefas
distantes da bestialidade.” Se para Aristóteles “Todo homem, por natureza, quer
saber”, Apichatpong Weerasethakul proporciona uma experiência completamente
diferente das noções de linearidade e busca por respostas a que estamos
habituados em nossa sociedade. Uma verdadeira ruptura com a nossa visão
ocidental de cinema e com o racionalismo cientificista.
Grande parte das cenas
são desconexas e vazias de sentido, denotando certo niilismo. Imagens do
cotidiano de um grupo de soldados são intercaladas com o cotidiano de uma
família camponesa e com planos que demostram o ritmo acelerado da cidade
grande, com suas luzes, cores fortes e toda sua agitação diária. O filme que se
divide em duas partes, possui um inicio simples. No decorrer da narrativa vamos
lentamente reconhecendo a existência do amor entre, Keng, um soldado, e Tong,
um camponês que vive com a família em um vilarejo. A primeira parte é permeada
de situações comuns na vida dos cidadãos tailandeses, como ir ao cinema, reuniões
familiares para o jantar, jogar futebol, ir a um bar para apreciar música ao
vivo, e entrar em contato com a religiosidade, retratadas de maneiras bastante
singela.
Apesar de tratar-se de um romance homossexual, o filme não é panfletário.
Não abarca a questão da homofobia e retrata um romance que aparentemente é
aceito de maneira natural pelo convívio social. Fala sobre amor num aspecto
geral. Em dado momento somos levados a uma caverna, e ouvimos histórias
macabras de uma velha vendedora de flores. São desafiados a atravessar a gruta,
porém Keng se opõe, contrariando seu parceiro. Temos nesse trecho a introdução
do elemento místico na trama. Exatamente no momento em que há o ápice da troca
de afetos entre os dois rapazes, quando simbolicamente Ken e Tong lambem seus
respectivos dedos das mãos, Tong interrompe esse gesto e estranhamente vai embora,
desaparecendo por entre a escuridão da floresta.
Após alguns minutos de cenas de felicidade e sorrisos de satisfação de
Keng caminhando pela cidade em sua moto, O diretor nos surpreende e constrói
uma narrativa totalmente diferente. Uma segunda parte do filme que pode ser
interpretada como continuação metafórica ou simplesmente como um outro filme. Vacas
da região começam a ser decapitadas por um animal selvagem e um mito local
explica que um xamã que habita a floresta pode transformar-se em animais
selvagens e seres humanos. O filme que possuía uma trama simplória toma ar de
suspense sobrenatural.
Keng passa a habitar o coração da floresta tropical e depara-se com
diversas situações sublimes e inexplicáveis. Se para Sêneca “Toda arte é
imitação da natureza”, Apichatpong retrata uma trama onde a própria natureza é
a personagem. Essa perspectiva acerca do mundo natural, certamente influenciada
pela religiosidade budista e hinduísta, é possível de ser observada em outros
diretores orientais como Satyajit Ray com seu A canção da estrada e Akira
Kurosawa em Dersu Uzala, mas Apichatpong eleva isso a outro nível. Temos aqui
um mergulho no mistério. Diálogos com macacos, uma luta corporal com um homem
que pode transformar-se em tigre e visualização de espíritos de animais são
algumas das situações inexplicáveis racionalmente e apenas passíveis de serem
sentidas por nossos instintos primitivos.
É um filme sobre entrega pessoal. Há implicitamente a mensagem de que o
amor transforma as pessoas. O embate entre o homem-tigre e o soldado lentamente
revela-se em uma atração mútua. Ambos exercendo influência sobre o outro. O
ultimato é dado: Matar o tigre ou entregar-se a ele. Por fim Keng decide
render-se permitindo que o este devore sua alma recitando essas palavras: “Monstro,
eu te dou meu espírito, minha carne e
minhas memórias. Cada gota de meu sangue canta nossa canção. Uma canção de
alegria Então... Você está escutando?”. Se na primeira parte do filme o jovem
camponês ironizava seu companheiro quando este dizia que por suas mãos formarem
o desenho de uma barca real viveriam eternamente, respondendo que na verdade
formavam uma frágil canoa, no segundo momento, o tigre interpretado pelo mesmo
ator está devorando a alma do soldado.
Em seu artigo intitulado “O instante dos amantes: Cinema, tempo e corpo
nas periferias do capitalismo flexível” Ely Vieira Jr afirma que “essa segunda
estória prolonga o caráter de fascinação e mistério da primeira, fantasiando e
reconfigurando a banalidade dos eventos que constituem sua antecessora, tal
qual os enamorados fantasiam os pequenos fatos cotidianos... “Weerasethakul
trabalha com uma série de ambiguidades para enredar o espectador sob regimes
temporais diferenciados. Esses dois filmes trabalham muito mais de maneira
sensorial que racional, de modo que podem ser melhor apreendidos intuitivamente
do que sob uma lógica de começo-meio-fim.”
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