
“Um lobo pode ser mais do que aparenta. Ele usa muitos disfarces. (...) Os piores lobos são peludos por dentro. E quando eles te mordem, eles te arrastam para o inferno”
Uma das mais famosas fábulas infantis é subvertida e acrescida de muito simbolismo e sensualidade nesse clássico do cinema de fantasia. A companhia dos lobos, filme dirigido por Neil Jordan em 1984, faz uma espécie de paráfrase do conto de Chapeuzinho Vermelho, aqui revisto como uma alegoria ao amadurecimento feminino, a transição da puberdade para a vida adulta e a descoberta da sexualidade, além de flertar com o gênero de filmes de terror e com o mito do lobisomem.
Adaptado do romance de Angela Carter, A companhia dos lobos nos coloca dentro do sonho de Rosaleen (a esquecida Sarah Patterson), uma típica adolescente prestes a entrar no mundo adulto, que usa às escondidas a maquiagem da irmã mais velha, divide seu quarto com diversas bonecas e bichos de pelúcia e lê histórias de terror. Em seu sonho, Rosaleen acaba de perder sua irmã (Georgia Slowe), vítima dos lobos que habitam a floresta próxima a pequena vila em que vive. Após a tragédia, a bela jovem passa seus dias entre os afazeres cotidianos, as incontáveis investidas de um garoto narigudo e ocasionais visitas à sua avó (Angela Lansbury). A cada visita, sua avó lhe conta histórias sobre lobos e homens cujas sobrancelhas se unem, enquanto confecciona uma capa de lã vermelha. Até que um dia, a caminho da casa da avó para levar-lhe uma cesta de comida, Rosaleen encontra um jovem cavalheiro misterioso e de sobrancelhas ligadas (Micha Bergese), e que aposta que consegue chegar ao destino antes da moça, pois ele segue um caminho mais curto enquanto ela recusa-se a sair da estrada. Os que conhecem a fábula já fazem uma idéia do que acontecerá em seguida. No entanto, o final guarda uma maliciosa surpresa.
Todo o filme é permeado por uma atmosfera onírica. O cenário, exagerado e de cores fortes, é visivelmente artificial, o que acentua a impressão de irrealidade. Até as poucas cenas que se passam fora do mundo dos sonhos são dotadas de um certo misticismo, como o casarão de estilo vitoriano onde mora Rosaleen ou os enigmáticos bonecos em seu quarto. A trilha sonora, misto do saudoso sintetizador com tons renascentistas, também ajuda na construção de um ambiente híbrido entre realidade e imaginação, que apesar de inicialmente definidas, essa separação torna-se cada vez mais nebulosa, ao ponto de fundirem-se em uma só.
São inúmeras as referências a passagem feminina da infância à maturidade e suas descobertas, a começar pela própria conotação dada à história dos Grimm. Chapeuzinho Vermelho (quer dizer, Rosaleen) é na verdade uma bela adolescente que começa a despertar sua curiosidade em relação ao sexo oposto, assim como os questionamentos acerca da sexualidade. Sua avó passa então a instruí-la, ao seu modo conservador, sobre os homens e os perigos que eles representam. As histórias contadas por ela são ricas em metáforas e alusões, todas possuindo um rígido sentido moral, assim como a fábula a que o filme se refere. Há sempre a idéia do caminho certo a seguir, do qual desviar-se levará a perdição (com toda a ambigüidade que o termo represente), assim como da semelhança entre homens e lobos. Os homens são feras ardilosas, que esperam apenas um deslize para devorá-las. Como a própria avó dirá, “Eles são bons até envolverem você. Mas quando a juventude passa...a besta aparece”. Em contraponto, a mãe parece ter uma visão mais aberta, repreendendo a avó por encher a cabeça de sua filha de abobrinhas, e que fica evidente em sua frase “se há uma fera nos homens, há também nas mulheres”. Mais de dez anos mais tarde, o tema da adolescência feminina seria mais uma vez representado junto com a maldição do lobisomem, no filme Possuída (Ginger Snaps, 2000). Mas enquanto no filme do canadense John Fawcett a abordagem é mais teen, onde as transformações corporais causadas pela puberdade são misturadas com a licantropia (desenvolvimento do corpo, pelos crescendo em lugares estranhos e até a menstruação, referida no filme pelo trocadilho em inglês curse), A companhia dos lobos da um enfoque mais poético, infantil e sensual.
O filme também apresenta passagens que remetem ao surrealismo (movimento enraizado nos sonhos e no inconsciente), como o momento onde Rosaleen encontra um ninho de cegonha, e dos ovos que eclodem surgem pequenas figuras de crianças (talvez uma alegoria à questão “de onde surgem os bebês?”) ou na morte da vovó, quando sua cabeça se espatifa em vários pedaços como uma boca velha de porcelana, além de elementos que o aproxima do cinema de horror. A transformação do lobisomem pode até parecer engraçada aos olhos de hoje em dia cujo padrão de qualidade é Avatar, mas ver um homem arrancar a pele do rosto e do corpo até só sobrar músculos, para em seguida contorcer-se em gritos ao ver seu corpo se desdobrar e adquirir a forma de um lobo pode ter causado algum impacto na época, além da significação intrínseca (o lobo sai das entranhas do próprio homem). E para os mais saudosistas dos animatronics oitentistas, o momento pode até provocar uma certa nostalgia.
Neil Jordan só voltaria ao mundo dos monstros e do sobrenatural ao realizar Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire) em 1994, filme até hoje considerado um dos melhores do gênero, mas até lá ele já havia consolidado seu nome nesta obra que recria o imaginário (macabro) das histórias infantis, onde Chapeuzinho Vermelho não é tão inocente quanto parece, e o Lobo Mau e o Caçador são um só.
ResponderExcluirVou ver!!!
Bárbara
Acabei de ver o filme, para entende-lo tem que ter muita atenção, é bom dar uma lida aqui antes.
ResponderExcluirExcelentee
ResponderExcluirEu não gostei!!
ResponderExcluirEsse filme é ótimo! Assisti ele pela 1vez na antiga sessão de gala, na época a globo passava depois do supercine!!
ResponderExcluirGostei muito do texto escrito. Vou ver o filme , pra continuar a pesquisa
ResponderExcluir