sexta-feira, 2 de julho de 2010

"A Mulher do Tenente Francês (Karel Reisz, 1981)", por Igor Calado


O livro A Mulher do Tenente Francês teve que percorrer um tortuoso caminho para chegar às telas. Mas, ao finalmente fazê-lo, conseguiu reunir nomes de grande peso: o roteirista Harold Pinter, o diretor Karel Reisz e os atores Meryl Streep e Jeremy Irons. Além do próprio autor, o renomado escritor inglês John Robert Fowles.

A proposta, metalingüística, é relativamente simples: os atores Anna (Meryl Streep) e Mike (Jeremy Irons) vivem um affair durante a filmagem de um filme (presumivelmente o próprio A Mulher do Tenente Francês). No filme, os dois interpretam outro conturbado par romântico: Charles Smithson e Sarah Woodruf, em meado do século XIX – ele um pesquisador de fósseis que acaba de se tornar noivo e ela uma empregada conhecida na pequena cidade moralista e vitoriana como uma mulher amoral (por um antigo caso que teve), além de apresentar sintomas psicóticos. O espectador acompanha então o desenrolar de ambos casos de amor, que guardam semelhanças e diferenças entre si.

O livro A Mulher do Tenente Francês é uma importante obra da literatura inglesa e terceiro livro de seu autor, John Fowles – considerado um dos melhores escritores ingleses do século XX e que alcançou grande sucesso desde seu primeiro trabalho, The Collector. No livro, existe apenas a história de Charles e Sarah, mas o autor deixa claro que se posiciona no século XX.

Ousado em forma e conteúdo, a obra de Fowles brinca com as camadas narrativas e questiona o papel do autor, criando mais de um final a ser escolhido. Além disso, como narrador, comenta com freqüência sobre seus personagens e sobre a sociedade vitoriana, sem esconder sua perspectiva do século XX. Assim, acumula ainda a função de crítica do romance vitoriano – Fowles era professor de Literatura Inglesa –, além da de obra literária contemporânea. Essa metalinguagem essencial do livro o tornou uma obra bastante difícil de adaptar.

A saída engenhosa encontrada por Harold Pinter, bastante cinematográfica, foi usar a metalinguagem literária presente no livro e transformá-la num “filme dentro do filme”, a filmagem de um roteiro de época. Assim, Pinter conseguiu manter as relações entre criação e realidade e possibilitar, através de duas linhas narrativas, a existência de dois finais para os dois diferentes casos de amor – mantendo ainda o final aberto do livro. E, também importante, conseguiu manter a visão contemporânea sobre a obra vitoriana.

Muitos foram abordados para trabalhar na versão filmada do livro, a qual Fowles estava interessado em fazer desde sua publicação. Pinter era a escolha de Fowles para roteirista desde o começo; para diretor, muitos nomes foram abordados, como Sidney Lumet e Fred Zinnemann, e mesmo o próprio Reisz, mas recusaram por variados motivos, até que os produtores conseguiram juntar Harold e Karel no projeto e autor deu luz verde para o filme caminhasse.

A presença de Pinter não passa despercebida. Os diálogos possuem forte presença de subtexto e analogia e de falas repetidas seguidamente. Outra idiossincrasia pinteriana existente no filme são as explicações redundantes nos diálogos (“Ela é um amor – a esposa”). A história moderna, que não está presente no livro, é o que há de mais pinteresco, em forma e tema: o adultério, por exemplo, foi o tema principal de sua peça Betrayal (1978) e os diálogos, nessa camada narrativa, são ainda mais próprios do roteirista.

As atuações também lembram as obras de Pinter, que abusa da linguagem corporal e da expressão. Entretanto, neste filme, as expressões faciais são menos trabalhadas e semantizantes do que em O Criado (1963) e O Mensageiro (1970), por exemplo – roteiros de Pinter filmados pelo diretor Joseph Losey. Aparentemente, Losey trabalhava mais as micro-expressões faciais, valorizando as nuanças do texto de Pinter mais do que fez Reisz.

A linda trilha sonora de Carl Davis ganhou o prêmio Anthony Asquith de Música no BAFTA; Meryl Streep ganhou melhor atriz no BAFTA e no Globo de Ouro e foi indicada ao Oscar; Harold Pinter também foi indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar. E apesar de não levar nenhum prêmio da festa americana, foi indicado em mais cinco categorias. A fotografia do filme (à cargo de Freddie Francis, que trabalhou muitas vezes com David Lynch), apesar de não ser necessariamente ruim, não me parecia à altura do nível artístico ao qual o filme se propunha. A decupagem era tradicional e bem datada, o que ficou mais óbvio com o uso recorrente de close-ups em zooms rápidos; é tecnicamente correta, mas vazia de qualquer criatividade. O resultado foi uma direção bastante inexpressiva, apesar da recriação estética da época vitoriana ter sido lembrada nos prêmio.

Tematicamente, o filme discorre sobre a narrativa em si e sobre as relações sociais e principalmente amorosas na Inglaterra vitoriana e naquela da década de 70, através do contraste dos dois casos de amor e seus conflitos. Aborda o tema do adultério e da natureza do casamento e das ligações amorosas, além da liberdade sexual e das convenções sociais.

Sarah é uma personagem misteriosa que, ao mesmo tempo que é vítima da rígida moral de sua época e da conservadora cidade onde mora, é inteligente e se utiliza desses mesmos julgamentos para manipular. Anna é uma personagem igualmente ambígua: mantém um relacionamento com seu par romântico no filme apesar de ser casada, e se esquiva (bem como Sarah) de confirmar um relacionamento mais profundo com seu amante.

Durante uma conversa com Charles, seu amigo psiquiatra cita estudos de um suposto médico alemão chamado Hartmann, que, curiosamente, são bastante psicanalíticos – apesar da psicanálise só começar a surgir com as publicações de Freud na década de 80 do século XIX, e a história vitoriana se passar nas décadas de 50 e 60. Essas citações não são em vão, e participam do comentário do texto sobre as diferenças comportamentais entre o dois períodos distantes mais de 100 anos: enquanto Sarah desenvolve comportamentos psicóticos, Anna parece ser alheia.

Nos estudos de Freud, a repressão dos impulsos sexuais era um tema central e, por vezes, relacionado com desordens psicológicas, as neuroses – o que causou furor na sociedade européia conservadora do final do século. Boa parte do comportamento “estranho” de Sarah é tipicamente neurótico.

Já a apatia de Anna, sua insatisfação e esquiva de relacionamentos, além de sua liberdade
sexual, são típicos da sociedade moderna, marcada, a partir principalmente da década de 40, por uma progressiva liberdade dos prazeres que levou a um certo hedonismo social, uma incitação pela busca do prazer (não necessariamente sexual). Muitas vezes, essa incitação social não cai bem a determinados indivíduos, o que resulta no que poderia ser considerado, nesse sentido, o oposto das neuroses repressoras: a depressão. Isso explica o fato dessa doença ter se tornado mais comum à medida que avançava o século XX, virando uma maladia tipicamente contemporânea.

É importante ainda ressaltar o papel da arte como libertador de Sarah. A personagem, que apresenta talento avançado para o desenho, demonstrado através de seus esboços de faces contorcidas e auto-retratos lúgubres, só encontra a cura da “loucura” que sentia quando é abrigada por um arquiteto e passa a dedicar-se a sua própria arte - e seus desenhos tornam-se bem menos fúnebres.

Em conclusão, A Mulher do Tenente Francês passa como uma adaptação astuta do romance homônimo, que apesar de não ter uma qualidade técnica suficientemente à altura do livro e do roteiro, é uma inteligente digressão sobre narrativa, arte, criação e as sociedades vitoriana e contemporânea.

Um comentário:

  1. O livro é fascinante - pela história, pelas referências à literatura e à sociedade vitoriana, pela metalinguagem, pelo humor refinado do autor, e foi adaptado brlhantemente para o cinema, num daqueles casos felizes de "livro bom, filme bom".
    Outro dia descobri uma inusitada citação ao filme num episódio dos Simpsons:http://alanaagra.blogspot.com/2008/08/olhos-de-ressaca.html

    Ah: belo blog, ótimos textos!

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