quinta-feira, 30 de abril de 2009

"Entre a cinefilia e o manifesto" por Hugo Viana


Jean-Paul Belmondo representava, nos anos sessenta, a emergência transgressora da juventude que amadureceu em tempos de guerra. Em Acossado (1960), no papel de Michel, ele rouba carros, atira num policial e fica com a personagem de Jean Seberg. Um anti-herói romântico que “vive perigosamente até o fim”, como antecipa um cartaz durante a projeção. É a pessoa ideal para exprimir a irreverência despreocupada de Godard e atacar a velha guarda do cinema francês, ao dizer que o ator Maurice Chevalier é “o mais puto de todos os franceses”. O rosto de Belmondo, algo entre a simpática desarmonia estética da fisionomia de Jean-Pierre Léaud e a mistura épica entre charme e cinismo de Clark Gable, ilustra a dicotomia presente em Pierrot le Fou (1965), de Godard – a vontade de explorar o novo e de reverenciar o clássico.

Em determinado momento do filme, sem nenhum motivo aparente, Marianne (Anna Karina) começa a cantar para Ferdinand (Jean-Paul Belmondo). A beleza gratuita desse ato é um elogio melódico aos musicais americanos, que tinham nas canções-surpresa desvios calculados na narrativa. Em seguida, a representação muda de ritmo e encena um thriller policial. A câmera revela que há, no apartamento dela, um sujeito deitado de costas, com uma tesoura enfiada no pescoço, e algumas caixas de metralhadoras ao fundo. Do musical ao suspense, do road-movie romântico ao “sozinhos-na-ilha-deserta”: ao ser interpelado por Marianne, durante uma fuga, Ferdinand gira o volante e joga o carro no mar. Ferdinand não foge em linha reta e Godard não repete fórmulas narrativas.

O filme de Godard corre por desvios inesperados. Vai e volta, muda e improvisa, pensa e tem seriedade o suficiente para rir de si mesmo. Pega atalhos por referências culturais diversas, sendo o cinema a base mais óbvia e necessária. Da literatura de Balzac a histórias em quadrinhos, de pinturas de Renoir a filmes de Nicholas Ray. “Você deixou a empregada ir ao cinema de novo? É a terceira vez nessa semana”, reclama a mulher de Ferdinand. “Claro que deixei. Está passando Johnny Guitar, é bom para a educação dela”, diz Ferdinand, recita Belmondo e explica Godard. História da arte, cinema clássico, música pop. Godard mistura tudo numa sequência de imagens que é tanto reflexão sobre como construir um discurso cinematográfico livre da austeridade dos filmes de estúdio quanto uma declaração de amor ao cinema como expressão artística.

Analisar Pierrot le Fou a partir de conceitos fílmicos conservadores, que discutem a narrativa sob o olhar cansado da lógica e da linearidade, impede a fruição pelo viés assumido de filme-cinéfilo que aparece em cada cena. Ao mesmo tempo em que narra um longa-metragem que reverencia o cinema clássico, Godard aponta novas possibilidades cinematográficas. Linguagem revolucionária para discurso inovador. O corte é quase uma entidade palpável. Se normalmente a ligação entre um plano e outro seria mascarada por raccords, com a falsa sensação de continuidade, em Pierrot le Fou ele está na cena, ao lado de Belmondo e Anna Karina. A parte em que Ferdinand e Marianne escapam da casa dela é um belo exemplo. É uma sequência desconexa de planos, que tem os momentos banais suprimidos e as explicações jogadas fora. A compreensão vem do ritmo e do sentimento que compõe as imagens.

Ou então quando o casal encena uma peça de teatro para arrancar dinheiro dos turistas (ou “escravos modernos”, como define Godard). Ferdinand se veste como um oficial americano, Marianne como uma chinesa. É quando o filme assume posicionamento político, já que eles representam a Guerra do Vietnã. Enquanto a mão de Ferdinand simula um avião, e fósforos metaforizam bombas, o som externo acompanha a ideia. Quando há o “confronto” entre os dois personagens – “o sobrinho de Tio Sam contra a sobrinha do Tio Ho”, explica Godard, numa cartela – diante dos gritos de Ferdinand, o diretor coloca uma imagem do tigre-marca do posto Esso, e barulhos de balas quando aparece o nome “Esso”. Nesse instante, a montagem política lembra as experiências de Eisenstein, de formatar um discurso ideológico através do choque de imagens.

Forma e conteúdo se tornam passíveis de reordenações, debates e argumentações lúdicas que refletem a inquietação da Nouvelle Vague. Inquietação que formulou críticas a certos filmes franceses e aos dinossauros que se enraizaram lá. Inquietações que estavam também nos elogios/homenagens ao cinema de autor praticado por alguns dentro de Hollywood.

A homenagem mais evidente ao cinema americano aparece ainda no primeiro ato. Belmondo/Ferdinand não é mais um jovem que “vive perigosamente até o fim”. Está casado com uma moça rica, trabalhava até pouco tempo como produtor de TV e vai a festas burguesas, onde se conversa através de slogans publicitários. Lá ele encontra Samuel Fuller, diretor americano proscrito, autor de filmes vibrantes sobre pedofilia, insanidade e questões sociais e políticas nos EUA. Fuller diz para Ferdinand o que é cinema: “Um campo de batalha. Amor, ódio, ação, violência, morte – numa palavra: emoção!”. É exatamente “emoção” que define o efeito dos filmes de Fuller e Godard.

"Pintada em um quadro" por Clarice Carvalho


Uma mulher capaz de deixar os homens obcecados, viciados, loucos. A femme fatale, proveniente da mitologia, da literatura ocidental e do cinema noir, tem essas características.

A representação da mulher avassaladora que alucina os homens deixa os sentimentos dos espectadores eufóricos; os homens tornam-se desejosos por viver paixões arrasadoras e as mulheres anseiam por dominar e provocar a loucura masculina. Como produto industrial com alto valor agregado que visava ao lucro, o cinema noir encontrou na efetivação desse tema que facilmente conquista o público um trunfo para as grandes produções hollywoodianas.

As femmes fatales do cinema noir expressaram com magnificência seu caráter mortal. No primeiro filme noir, “O Falcão Maltês”, de 1941, Mary Astor representa a mentirosa Brigid O'Shaughnessy que envolve um detetive para conquistar seus objetivos. Em “Pacto de Sangue”, 1941, Barbara Stanwyck no papel de Phyllis manipula um agente de seguros para ajudá-la no assassinato do seu marido.

Otto Preminger, produtor e diretor austríaco, representou em “Laura”, de 1944, uma polêmica femme fatale do filme noir. Uma produção da 20th Century Fox traz no elenco Gene Tierney, interpretando Laura Hunt, e os três homens que a rodeiam: Dana Andrews, o detetive Mark McPherson; Clifton Webb, o amigo Waldo Lydecker e Vincent Price, como Shelby Carpenter.

A fórmula clássica do cinema noir, que apresenta um crime como circunstância para o encontro de um casal e a revelação de seu amor, foi inovado em “Laura”. A protogonista fica ausente ao longo do filme e sua imagem é construída a partir da descrição dos personagens. O caráter fatal de Laura é logo demonstrado em uma reflexão de Waldo Lydecker: “Eu nunca esquecerei do final de semana em que Laura morreu. (...) Eu me senti como se fosse o último homem que restou em Nova York.” Aí está presente a obsessão e romantismo dele pela bela mulher.

Descobrir o assassino de Laura, então, torna a missão do detetive Mark McPherson. Essa busca o levará ao segundo homem que a rodeia, Shelby Carpenter. O casamento entre eles e alguns fatores questionáveis de Shelby o torna principal suspeito.

O belo quadro de Laura acrescido das memórias eufóricas de Waldo sobre ela acrescenta à história mais um admirado e apaixonado homem; Mark McPherson. Seu papel de detetive recebe influências de sua paixão que, durante a primeira parte, é irreal. A curiosidade da personalidade de McPherson está no seu joguinho incessante, que irrita todos os personagens que o envolve.

A primeira parte do filme conduz o espectador a supor a existência de um assassino de Laura, no entanto, a aparição dela, esta duvidosa quanto a ter sido sonho do detetive, redimensiona toda a história. As questões ressurgem: houve um assassinato? Quem foi a vítima? Quem matou? O assassino sabia que não era Laura? As dúvidas criam na segunda parte uma atmosfera de suspense e revelações.

A ótica pessimista e cética do assassinato e a frieza do criminoso são intensificados pelo aspecto crucial do cinema noir; a iluminação e o contraste preto e branco. A sombra de Waldo na escadaria do prédio de Laura no momento da descoberta do assassino pelo detetive é um dos exemplos de como esse recurso foi explorado.

A característica de anti-heroína no cinema noir ocorre devido ao caráter culposo das femmes fatales, da sua manipulação e execução dos crimes. No entanto, em “Laura” esse conceito é reformulado e ela se torna uma anti-heroína indireta; seus atos nada influem para o crime, mas sim a sedução e paixão provocada nos homens.

A mulher forte e intensa do cinema noir é expressa em “Laura” apenas na primeira parte do filme. As cenas relacionadas aos pensamentos de Waldo demonstram Laura como uma mulher jovem, determinada e inteligente. Sua obstinação o conquistou. Entretanto, observa-se nas cenas da segunda parte, em que Laura é real, uma certa inocência e passividade na figura de uma beleza juvenil. Tudo se transforma; seu olhar profundo do quadro torna um olhar ingênuo, sua capacidade de selecionar seus amores é convertida em uma paixão momentânea de dias. Seu caráter fatal encontra-se apenas na imaginação de Waldo.

domingo, 26 de abril de 2009

"A crítica nas entrelinhas do excesso" por Hugo Viana




No filme Bom Dia (1959), o diretor japonês Yasujiro Ozu argumentou que a disseminação da TV instituiria um país de 100 milhões de idiotas. Quatro anos antes, Douglas Sirk, trabalhando no cerne da indústria do entretenimento, Hollywood, depois de fugir da ascensão nazista, construiu uma imagem que representa um lado mais ousado dessa mesma idéia. Para Sirk, além de idiotizadas pela televisão, como disse Ozu, as pessoas estariam se isolando do mundo, deixando de criar vínculos afetivos para experimentar uma vida inerte diante da televisão. Essa imagem aparece perto do fim de Tudo que o Céu Permite (1955), película na qual Sirk escancara a vacuidade do dia-a-dia da burguesia norte-americana, ao mesmo tempo em que conta uma historinha de amor cheia de exaltação à vida e de conflitos dramáticos exagerados.

O enquadramento em questão exibe a figura refletida da protagonista, Cary (Jane Wyman), uma viúva rica de meia-idade, presa na tela do aparelho, logo depois que a moça termina o romance com o jovem, pobre e bonitão, Ron (Rock Hudson), já que não tem força para quebrar as regras de conduta de uma sociedade que segrega pessoas baseadas no berço. É uma construção visual que condensa, num único plano, uma reflexão crítica contra a rápida conquista social da televisão, que despontava na época como meio de comunicação dominante. Isso tudo é projetado junto da fala do vendedor, que diz que Cary “terá toda a companhia que quiser; drama, comédia, a vida desfilará ao alcance de sua mão”. O rosto de Cary, ao ouvir essas palavras, demonstra que ela não quer essa vida artificial. A mulher, no auge da sua meia-idade, quer mesmo é voltar ao amor fulgurante com Ron.

É interessante perceber que essa visão crítica da sociedade norte-americana veio de um alemão. Esse fato se torna curioso ao analisar que boa parte dos cineastas que perscrutavam a sociedade norte-americana, nos filmes dos anos 1940 e 50, vinha da Europa. É como se o olhar estrangeiro de diretores como Otto Preminger, Billy Wilder e Ernst Lubitsch, despido da condescendência natural de alguém que se propõe a analisar o próprio país, tornasse o processo de apreender e reconstruir cidades e pensamentos tipicamente americanos, através de uma narrativa fílmica, mais focado em discutir as contradições que compunham o american way of life do que repetir mecanicamente símbolos gastos. Nesse sentido, os trabalhos de Sirk, melodramas que, na superfície, pareciam vazios, ou simplesmente romances prazerosos, chacoalhavam a indolência da burguesia norte-americana.

O teor melodramático de Tudo que o Céu Permite, martelado por todas as escolhas de Sirk, seja na estética carregada de cores ou na narrativa abarrotada de tragédias, serve como uma das bases para as várias repetições e reordenações que o subgênero conheceria no avanço do discurso cinematográfico e, ironicamente, televisivo. Vinte anos mais tarde, Fassbinder, outro autor alemão, incorporaria e atualizaria essas questões às suas obras e ao seu tempo, fazendo filmes tão instigantes quanto os de Sirk. Cinqüenta anos depois, vários canais de TV utilizariam esses recursos melodramáticos em subprodutos sem aspiração crítica ou pretensão artística – apenas como programas entorpecentes, inibidores da formação analítica da sociedade. O melodrama não é uma fonte de problemas, ou sinônimo de falta de criatividade. Ele se adapta à índole do discurso no qual é enquadrado.

No filme de Sirk, a música, as emoções à flor da pele e os eventos trágicos constituem um excesso que intensifica o ponto central do filme: investigar como a projeção pública de um relacionamento de pessoas de origens diferentes pode trazer à tona o lado mesquinho dos moradores de uma cidade. Enquanto na superfície é uma película convencional sobre as agruras de um amor impossível, o subtexto analisa como a os habitantes daquela cidadezinha, que bem poderia ser qualquer cidadezinha, reagem quando são apresentados a relacionamentos onde há contraste social e etário. O par romântico do filme de Sirk ilustra essa idéia, por serem representantes dos extremos sociais.

O sentimento que os dois compartilham é estabelecido através de uma bela metáfora, logo no começo do filme. Ron explica, numa conversa de duplo sentido, no jardim colorido de Cary, que determinada árvore só cresce perto de uma casa onde há amor. Ele corta um pedaço e coloca nas mãos dela. Dessa última imagem, registrando as folhas douradas e o rosto de Cary tomado por um silêncio efusivo, e ao som de música melodiosa, Sirk faz uma fusão para esse mesmo ramo dourado que Ron sacou da árvore, agora dentro de um jarro, no quarto da protagonista. A elipse comenta, de um jeito sutil, a evolução dos sentimentos de Cary.

Ela precisa escolher entre uma vida de festas opulentas e acompanhantes viúvos com pé na cova, “o único solteiro da cidade”, como comentam as fofoqueiras da classe alta, e a oportunidade de um relacionamento diferente de tudo o que ela experimentou até aquele momento. Esse choque na vida de Cary é representado através de uma fotografia carregada de cores, transitando principalmente por tons opostos, do azul ao dourado. É dessa forma que Sirk enfatiza que universos distintos entram em guerra. O diálogo precário entre Cary e seus filhos, o abraço apaixonado diante de um futuro complicado, tudo é representado a partir de imagens cuja cor dominante e as sombras mudam ao longo da duração da cena, dependendo do desenvolvimento dos conflitos. A própria construção temática das sequências complementa a idéia de oposição. Cary vai a festas da classe alta e veste sorrisos falsos diante das amigas fofoqueiras. Ron ama a natureza, e seus sorrisos nas reuniões com amigos são autênticos.

Nesses dois acontecimentos, a profundidade de campo permite ao olhar do espectador transitar pelos enquadramentos, com personagens conversando em primeiro plano e, ao fundo, outros dançando. Essa técnica intensifica o sentimento de realidade diegética e situa o espectador diante de múltiplos momentos significativos, para apreender as minúcias que diferenciam cada grupo.

Alguns detalhes são escandalosos, como o salão luxuoso, adornado com quadros, flores e lustres, ao som de música clássica, da reunião da festa dos ricos, em oposição à reunião na casa dos amigos de Ron, cuja mesa de jantar, núcleo convencional de qualquer encontro social, não passa de uma improvisação, com justaposição de tábuas de madeira. Outras características são mais sutis, mas igualmente sintomáticas. Quase todos os enquadramentos na festa dos amigos de Ron incluem o céu, já que a casa possui janelas imensas. Nos cenários das festas chiques não há entrada de luz e o local parece sempre claustrofóbico, abafado por conversas que giram em torno de dinheiro e sucesso. É a partir dessa construção discursiva simples na aparência, mas consciente sobre o que pretende comunicar, que Douglas Sirk utilizou a estridência do melodrama para registrar suas ponderações sobre as mazelas da sociedade onde ele se inseriu.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Uma Faca no American Way of Life" por Wesley da Silva Prado


Quando se assiste a um filme como “Tudo que o Céu Permite”, bate certa tristeza de saber que a humanidade mudou muito pouco. O ano em que Douglas Sirk concebeu sua obra foi 1955, mas bem que poderia ter sido filmado do mesmo jeito nos nossos dias. O romance socialmente impossível entre uma viúva rica e um jardineiro pobre – e ainda por cima mais novo – poderia se passar em qualquer época e ainda assim manteria o peso de sua crítica. Tudo muito bem disfarçado pela esfera do melodrama, gênero no qual Sirk é reconhecidamente um mestre. O American Way of Life é fustigado à ponta de faca e Sirk não tem vergonha de vê-lo sangrar.

Cary Scott (Jane Wyman), a viúva rica, começa a se envolver com Ron Kirby (Rock Hudson) e em meio a planos de viver um grande amor numa casinha no campo – um moinho que Ron carinhosamente restaura e transforma no lar perfeito, tudo muito certinho, com lareira e tudo – sofre com a intolerância de seus amigos e de seus dois filhos (já bem crescidinhos), que acham absurda a idéia de Cary casar com um homem bem mais jovem e pobretão. Na verdade, até esperam que ela se case novamente mas nunca com um homem como Ron (inclusive há um pretendente... um senhor bem mais velho que ela!). Sirk começa a fustigar daí.

Todo o círculo social de Cary é composto por “pessoas de bem”, ricas (seja por esforço ou por herança) e fúteis. Tais como Mona Plash (Jacqueline deWitt), uma mulher fina e intrometida, que não passa de uma cobra deselegante, cheia de veneno; e Sarah Warren (Agnes Moorehead), a melhor amiga de Cary, que mesmo com toda a boa intenção do mundo, só corrobora os preconceitos do meio que participam.

Cary não pode nem mesmo contar com o apoio dos filhos Kay (Gloria Talbot) e Ned (William Reinolds), que assim como os outros, não aceitam que ela se case com um brutamontes. A visão dos filhos é um reforço da imagem familiar típica americana dos anos 50, na qual a mulher se sacrifica pela família e honra a memória do marido morto curtindo a solidão que lhe resta. Kay e Ned são incapazes de entender que tudo que Cary deseja é ser feliz. O ápice dessa incompreensão surge na clássica cena da televisão, onde Sirk afunda de vez a faca: para não perder o amor dos filhos, Cary sacrifica sua felicidade com Ron, esperando manter a família unida. Mas descobre que nada adiantou, pois eles vão embora construir suas vidas (Kay vai se casar e Ned se alista no exército). Tudo que sobra para Cary é o presente de Natal de seu filho: uma televisão novinha, onde ela vai poder ver o mundo inteiro dentro daquelas poucas polegadas. O close no aparelho, refletindo a imagem de Cary, “presa” na tela, é de uma inteligência que faz falta no cinema contemporâneo. Kay e Ned não entendem que sua mãe não quer simplesmente assistir a vida: ela quer gozá-la. As cores dessa cena são majestosas, assim como a da conversa entre Cary e Kay, após o fim do namoro desta. A luz que vaza pela janela multicolorida, tornando o quarto um arco-íris, mostra bem a difusão de sentimentos entre as duas mulheres. Tudo graças ao Technicolor, novidade na época, e que Sirk usa com maestria para atingir seus objetivos.

Aliás, uma das figuras mais interessantes no filme é a jovem Kay. Gloria Talbot esbanja simpatia no papel da culta e romântica filha de Cary. Quem conseguiria dizer para a própria mãe, com absoluta naturalidade, que sua viuvez é bem melhor que a das mulheres do Egito Antigo? Sempre tirando os óculos antes de citar seu conhecimento enciclopédico, Kay é também uma figura sensível, capaz de cair aos prantos quando seu namoro termina – bem diferente do esperado de sua pose de garota racional. Uma espécie de feminismo latente a cerca.

E por falar em atuações, Rock Hudson deve ter freqüentado as mesmas aulas de interpretação que Steven Seagall e Ricardo Macchi (ele mesmo, o cigano Igor), porque sua canastrice chega a níveis bem altos nesse filme. Numa de suas piores cenas, ele “chora” pela separação de Cary, providencialmente de costas para a câmera. Mas talvez isso nem seja um defeito tão grande, pois a figura de Ron fica bem delimitada pela canastrice de Hudson. Não seria a mesma coisa se ele não tivesse a postura de machão irresistível, sempre com a razão.

No mais, Sirk consegue o que queria, mesmo que disfarçando muito bem com lágrimas, intrigas, separações e final feliz, e o que sobra ao fim do filme é um sonho morto, uma sociedade fadada ao fracasso pelo seu próprio cinismo e intolerância. Mas que vai continuar sorrindo, bem vestida e servindo um enorme peru no Natal, mesmo quando os ratos já tiverem invadido a casa. É, a humanidade mudou muito pouco mesmo.

"A leveza em torno da Muralha de Jericó" por Nathalia da Conceição Pereira


Quando, em 1934, Clark Gable recebeu da MGM a "punição" de atuar num filme da Columbia (uma das produtoras mais chinfrins da época), provavelmente não imaginava que estrelaria uma obra-prima, digna da proeza de ser o primeiro filme a receber cinco Oscars, nas suas principais categorias (Filme, Direção, Ator, Atriz e Roteiro adaptado). Era "Aconteceu Naquela Noite", comédia que iniciou o estilo Screwball Comedy - normalmente traduzido como Comédia Maluca - que são aquelas tramas cheias de reviravoltas, situações mirabolantes e desfechos inesperados.


Inesperados em meados dos anos trinta. Afinal, com o tempo, a fórmula dessas comédias contagiou as produções norte-americanas e, até hoje, moças ricas e esnobes conhecem bonitões pobres e aparentemente sem coração e, depois de trocar muitas farpas e desaforos, se apaixonam e mudam suas atitudes para provar ao público que são personagens muito mais densos do que aparentavam ser.


É assim no filme de Capra, que mostra a busca de Ellie Andrews (Claudette Colbert) pelo "Triunfo do amor" num dos primeiros road movies da história. Ela é uma jovem mimada pelo pai e recém-casada com King Westley, um piloto playboy, reprovado pelo velho Andrews. No início da trama, Ellie decide fugir das "amarras" paternas, faz birra, greve de fome, grita com todo mundo, pula do iate da família e nada em direção ao futuro que projeta pra si. Com essa sinopse, aparentemente superficial, e dois protagonistas envolvidos no filme a contragosto, a comédia estourou nos Estados Unidos. Não só pelo ótimo resultado da combinação Clark e Claudette - ou melhor, Ellie e Peter - mas também pela novidade que o filme apresentava com a força de seus diálogos, ao mesmo tempo leves e engraçadíssimos.


Quando a embonecada Ellie conhece Peter Warren (Clark), um jornalista desempregado, em um ônibus para Nova Iorque a trama começa a se desenrolar de uma forma tão agradável, que se torna insuspeitado que os dois atores estariam ali com má vontade. Talvez o duelo de "egos colossais" (tanto das estrelas, quanto dos personagens) tenha contribuído para que o filme fluísse tão naturalmente e que cativasse os espectadores a ponto de maravilhar gerações por 75 anos.


O encontro pouco dócil de Ellie e Peter acontece logo no começo da viagem, eles disputam o último assento do ônibus como se fosse uma batalha travada pela dignidade e acabam dividindo o lugar – e olhares atravessados – pelo resto do caminho. Com o convívio forçado, os dois logo percebem que podem se beneficiar com uma aliança. Apesar de toda sua coragem e esperteza, a herdeira é insegura e precisa de proteção, a escolta de Warren é oferecida, então, em troca de uma valiosa matéria exclusiva sobre a fuga da mocinha para o amor. É claro que essa união interesseira é recheada de implicâncias por parte de ambos. A Muralha de Jericó, que separa a cama dos protagonistas nos hotéis de beira de estrada, favorece elegantes alusões sexuais, testemunha a evolução da relação do excêntrico casal, e ainda representa a distância existente entre os mundos dos dois. E tudo isso, construído por um fino lençol e um barbante.

Em contraste com essa leveza amalucada, há sutis retratos da realidade social, elemento comum nas tramas caprianas. Dentro do ônibus – onde boa parte da história é contada - por exemplo, estão presentes diversas representações de cidadãos americanos afetados pela crise econômica, desde a mulher que passa fome enquanto procura melhores condições de vida, ao desempregado beberrão, que com muito jogo de cintura, consegue enfrentar as dificuldades que encontra pelo caminho. Observando tudo isso, orgulhosa e egocêntrica, está a jovem rica, que, aos poucos vai tentando se adaptar a uma vida mais simples e, inclusive, descobrindo coisas boas nela.

O filme é repleto de cenas marcantes, que viraram clássicas e foram bastante reinterpretadas nos anos seguintes. Na mais importante de todas, acontece o hilário momento em que Ellie Andrews, com toda sua pose de sabichona, ensina Warren a pedir carona sem usar nenhuma das técnicas caricatas do rapaz. Com êxito, ela prova de uma vez por todas que pernas podem ser melhores do que polegares. Outro bom momento é o que Gable, com seu jeito apressado e cheio de si, come cenouras cruas, como se fossem deliciosas. O resultado da cena ficou tão legal, que serviu de inspiração ao criador do desenho Pernalonga, fã declarado do filme. O cartunista também afirmou ter pegado emprestado para sua criação o jeito canastrão de Oscar Shapeley (interpretado por Roscoe Karns), um dos passageiros do ônibus Miami - Nova Iorque, que rouba a cena quando tenta paquerar Ellie – a dona classuda que dá respostas atravessadas - no auge de seu pedantismo.

Quando, finalmente, os heróis estão concluindo a viagem, o romance entre os dois vai ficando mais explícito, até o ponto em que, Ellie - visivelmente mais madura e segura de seus sentimentos - ultrapassa o lençol entre eles e se declara para Peter, que, pela primeira vez, não consegue reagir. No outro dia, ao se atrapalhar tentando conseguir dinheiro para fugir com sua amada, Warren se desencontra de Andrews, numa cena engraçada e desesperadora. Ela acaba voltando para casa, escoltada pelo pai e por Westley. Então, conformada em ver seus planos falharem, a mocinha decide reafirmar o casamento com o piloto oportunista, e é aí que aumenta a importância de seu pai na trama. O magnata conhece Peter e descobre que ele é o homem perfeito para sua filha, então, se empenha a convencê-la a desistir do casamento, o detalhe é que ele faz isso em pleno caminho do altar. Finalmente, Ellie se convence do estrago que está prestes a fazer e, na hora do sim, foge em busca do verdadeiro triunfo do amor. O divórcio é tratado como algo absolutamente simples – em plenos anos 30 – e as trombetas tocam para a queda da Muralha de Jericó. Depois disso, não tem como não assistir aos créditos com um sorriso abobalhado no rosto.

"Cores e sonhos feitos de Godard" por Gianni Paula dos Anjos de Melo


Não é a história, somente em si, que faz o filme. Nesse caso, bastaria ler a novela Obsession, do norte-americano Lionel White, texto que deu origem à “Pierrot, Le fou”. Mas aí, pela força da escolha, você perderia de viajar em um road-movie que transita entre o sonho e a crise, o pop e o erudito: veredas da Nouvelle Vague.

O francês Godard, nome demarcador de uma época cinematográfica, muito antes de fazer filmes políticos en son Groupe Dziga Vertov, já fazia filmes politicamente: lirismo de discurso próprio. Nos idos dos anos 60, precisamente 1965, o diretor pinta na tela do cinema a história de certo Ferdinand que, cansado, desprovido de unidade, sem aragem de sossego, resolve abandonar mulher, filha e reuniões burguesinhas, para viver desassossego pleno. Desassossego pleno tem nome que ressoa arte e ares de deusa Vênus: Marianne de Renoir. É no reencontro do caso antigo que Ferdinand se envolve com histórias de armas, dinheiro e fuga: por loucura ou paixão - o que, trocando em miúdos, dá exatamente na mesma.


Não querendo pecar por reducionismo, é preciso deixar claro que Godard não só pinta na tela: ele compõe, recita, borda, esculpe, customiza, cinzela. Convida à sua construção ficcional as figuras de Renoir, Velásquez, Van Gogh para se acomodarem ao lado do Pop Art e da Turma do Pé de Níquel. Fragmentos que vem de cada tempo compor uma mesma expressividade: colcha de retalhos. Colcha de retalhos repleta de cores de encanto, para Almodóvar nenhum botar defeito. Nem Frida Kahlo.


O que autoriza o diretor francês ao intenso do passeio cinematográfico é a noção de que antes dele ser do filme, o filme é dele. Vislumbrar a narrativa como artesanato, à palma da mão, isso é avant-garde. E assim como Ferdinand desvia a rota da estrada e adentra o mar imponente, Godard dispensa linha reta para contar sua história, pois quando se anda sempre em frente não se pode chegar muito longe.


É um pouco desconcertante quando o protagonista pergunta, no início do filme, “O que exatamente é o cinema?”. Pois que resposta você daria para Jean-Luc Godard? Ou até mesmo pra Ferdinand, personagem que de dentro da obra, reconhece sua condição de representação, e dialoga com a platéia, ainda que, alguns minutos antes, Marianne tenha dito que a simulação da morte dos dois precisava parecer real, pois aquilo não era um filme. “Pierrot, Le fou” é e não é um filme, como na lógica hegeliana de suprassumir: negando e assumindo sua condição de filme, mas ao mesmo tempo se elevando: se apropriando com rigor do verbo e sendo em si o sonho em concretude. E se Godard já sabia que nós somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós, o construído não podia ser mais do mesmo, “Pierrot, Le Fou” é um elogio à forma.


Exercício maravilhoso é também poder captar um vasto campo literário não apenas em uma menção direta como a feita à Baudelaire, mas, principalmente, nos cantinhos escondidos do suporte audiovisual. Para mim, são tesourinhos. Quando, na tela, a narração se apresentou em dueto, falas em off revezadas, automaticamente fui transportada para a história de outro grande. É em um conto brasileiro, datado muito próximo, 1966, que dois personagens se confundem enquanto sua história se desenrola. Neste conto, a própria personagem osmaniana diz: é porque nos amamos. Estamos confundidos, cada um é si próprio e também é o outro. Marianne e Ferdinand se amavam? Não tenho a medida dessa resposta. O que sei é que se confundiam na vivência, sendo extensão irremediável dos sentidos um do outro. Enquanto a bela trazia em si propriedade de quem vive a vida, o seu companheiro Ferdinand possuía o predicado daqueles que muito mais contemplam a vida enquanto o tempo escorre aos litros.


Faz-se ainda necessário exaltar Marianne como lugar de complexidade do filme. A construção feminina, em “Pierrot, Le Fou”, é um encantamento absoluto, oscilação entre o barroco e o minimalista em uma personagem que dissimula, mas convence por levantar o estandarte de quem acredita que sagrado é o que se sente. O maior mistério de Marianne é, talvez, a sua transparência e a fidelidade a si mesma, à história que ela vive por merecimento.


O amor precisa ser reinventado. Rimbaud que escreveu. Ferdinand disse. Marianne sabia. Godard sabia mais ainda. E, ao passo que ele, diretor, reinventava o amor, reinventava também a mulher, reinventava a palavra, reinventava os planos de imagem, reinventava a narrativa. Reinventava Ferdinand, que, a essa altura, já é Pierrot. Reinventava o Godard, reinventava o cinema, reinventava a representação e te apontava a direção para que se reinventasse o real. É assim, “Pierrot, Le fou”, reinvenção até da tragédia, pois com tudo acabado, em desatino de desespero, caímos de ceder à idéia que a vida pode ser triste, mas é sempre bela.

terça-feira, 21 de abril de 2009

"Aconteceu naquela noite" por Thaís Maioli



(Aconteceu naquela noite, Frank Capra, Estados Unidos, 1934).



Um filme de roteiro simples, porém bem estruturado, com personagens que conseguem promover o riso através de diálogos fáceis, mas ao mesmo tempo imbricados de conteúdo. Essas, definitivamente, são características que podem ser atribuídas a Aconteceu naquela noite de Frank Capra. Uma película que contribuiu não apenas para a notoriedade do gênero screwball commedy, mas também para o repertório de road-movies.


Ser considerada a primeira produção de road-movies da história do cinema, concedeu ao filme de Frank Capra um caráter inovador. Em uma época em que o deslocamento de cenários não possuía um grande suporte tecnológico, conseguir suplantar essa inoperância de espaços físicos, constituiu uma forte contribuição para as construções cinematográficas posteriores. Além disso, a utilização de vários cenários promoveu certo dinamismo na narrativa da película, resultando em uma maior conexão entre o expectador e a história contada.

O dinamismo em "Aconteceu naquela noite" também se deve ao enredo do filme e ao gênero em que está inserido – screwball comedy. A fuga de Ellie Andrews (Claudette Colbert), para encontrar com King Westley (Jameson Thomas), com quem se casara secretamente, é permeada por várias situações inusitadas. Desde a procura de seu pai, um multimilionário que coloca fotos de sua filha em vários jornais da cidade, até a companhia do jornalista Peter Warren (Clark Cable) que resolveu ajudar Ellie, para em troca, publicar a sua história em busca do amor. Nessa trajetória, a srta. Andrews e o jornalista Peter passam por um processo de conhecimento em que acabam se apaixonando um pelo outro. O enredo angaria ainda mais movimentação com os encontros e desencontros típicos da comédia romântica e a trama passa a apreender a atenção de seus expectadores pela agilidade da narrativa e pelas conversas inteligentes entre os personagens.

O caráter inovador atribuído ao filme não reside somente na estrutura (road-movie) em que foi construído, mas também na composição de algumas cenas que depois foram bastante utilizadas em outras produções. A cena em que Claudette Colbert mostra as pernas para conseguir uma carona é um exemplo disso. Além de realçar a perspicácia de Ellie, esse momento do filme também demonstra certa ingenuidade de Peter que concebia a sua companheira de viagem como sendo frágil e detentora de pouca experiência de mundo. Essa cena também desponta ares contemporâneos ao filme, ao apontar já em 1934, a perspectiva de uma mulher que embora se mostre frágil em algumas circunstâncias, não deixa por isso de ser determinada e consciente das suas aptidões.

A criação de personagens bem trabalhados e bem aceitos pelo público também merece elogios à produção de Frank Capra. O diretor soube mesclar, de forma hábil, características opostas em uma mesma figura, permitindo que os personagens embora possuíssem traços reprováveis em sua personalidade, também agregassem qualidades que se sobrepusessem aos defeitos. Dessa forma, sujeitos que em sua essência se afigurariam como vilões, caíram no gosto do público devido as suas imperfeições típicas da realidade. Ellie Andrews e Peter Warren são exemplos disso. A filha de Alexander Andrews é mimada, mas a isso é dada uma justificativa: ela é o reflexo da educação de seus pais. Além disso, Ellie conquista o público pela mudança no seu modo de agir ao longo da sua trajetória ao lado de Peter. Já o jornalista, embora nas primeiras cenas se mostre irresponsável, ao ponto de perder o seu emprego por estar sempre bêbado, cativa os expectadores com a sua preocupação com Ellie. A princípio essa preocupação é em virtude de Peter a enxergar como uma matéria rentável, mas posteriormente se transforma em uma preocupação fruto de sua afeição e paixão por Ellie.

A popularidade dos personagens também deve ser creditada ao processo de identificação do público em geral com os interpretados. Embora Ellie pertencesse a uma classe econômica mais favorecida, havia semelhanças em seus hábitos com de outras classes sociais. Cenas em que Ellie e Peter percebem que possuem costumes comuns, como por exemplo, molhar o biscoito no café e a alusão à brincadeira de cavalinho, permitem que os expectadores se vejam nas ações dos dois. Além disso, o medo de que algo ruim tivesse acontecido com sua filha fez com que Alexander Andrews procurasse o verdadeiro amor de Ellie, antes que ela se casasse com King. Essa preocupação paternal em relação à felicidade dos filhos não é exclusiva do pai de Ellie, mas sim, característica de grande parte dos pais, independentemente do seu poder aquisitivo.


Em resposta à grande recepção do público e à boa aceitação da crítica cinematográfica, Aconteceu naquela noite ganhou os cinco principais prêmios do Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor roteirista e melhores ator e atriz. Confirmando, assim, a qualidade do filme produzido por Frank Capra.

"Tudo que o kitsch permite" por Yuri Assis


Assim que assisti a Tudo Que O Céu Permite, a primeira observação que fiz foi a respeito da semelhança estética com filmes de Almodóvar, no que há de mais gritante e exuberante nas produções do diretor espanhol.

Não foi nenhuma surpresa descobrir que as cores de Almodóvar eram cores sirkianas. Por causa disso, pus-me a pensar no uso do elemento kitsch na composição do filme. Clarice Lispector diria em Água Viva que 'aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus'. Assim talvez aconteça com a cafonice, que na mão de deuses como Caetano Veloso ou Quentin Tarantino, transforma-se e ajuda a tecer grandes obras de arte.

Observações estéticas à parte, Tudo Que O Céu Permite trata-se de um melodrama que traz a diferença social para um caso de amor. Se fosse um livro, talvez se situasse entre o Romantismo e o Realismo, pois ao mesmo tempo em que tem o enredo central ancorado em uma relação amorosa, analisa as frivolidades da sociedade e confronta o desejo do indivíduo com seus laços com as instituições.

Trocando em miúdos, Cary Scott (Jane Wyman), protagonista do filme, é uma viúva de meia-idade cujos filhos estão prestes a serem donos de seus narizes. Sua vida limita-se a festinhas em um clube freqüentado pela alta roda da sociedade. Aqui, vale ressaltar que Sirk não economiza no uso de tipos ao retratar o estrato social mais chique, todos interessados em aparências, status e em falar da vida alheia.

Em meio a tanta mediocridade, Cary encontra Ron Kirby (Rock Hudson), que até então era apenas um jardineiro podando as árvores. Acontece que eles se apaixonam e o conflito se estabelece. Ron leva Cary para sua casa, um ambiente completamente diferente do clube, no qual ela se sente acolhida e recupera seu ânimo há tanto perdido. É claro que Sirk aproveita o momento para evidenciar o contraste entre ambos os lugares, começando pelo desgastadíssimo embate entre campo (casa de Ron) e cidade (casa de Cary). Nada mais kitsch, obviamente.

Como nem tudo são flores, Cary acaba tendo que voltar para a alta sociedade. Ainda encantada com o mundo de Ron, ela decide levar adiante seu romance, a ponto de pretender integrá-lo aos costumes de seu grupo social. Nem é preciso dizer que seu intento dá errado e que ela se vê na iminência de tomar uma decisão entre a vida que está levando e a vida que quer levar.

Além disso, sua família torna-se outro empecilho. Sua filha – estudante de psicologia que preza pela análise fria, mas que no fim das contas revela um coração mole, pois afinal ainda estamos num melodrama –, que a princípio se mostra racional e decide dar todo o apoio à mãe, acaba cedendo aos apelos do mundo e ao sentimento de pertencer a um grupo. Já o filho, representante da figura paterna, não pretende deixar um pobretão tomar o lugar de seu querido falecido. Cary, portanto, novamente ajuizada, decide afastar-se de Ron em nome do lar.

Seus filhinhos, contudo, já estão se emancipando e dando cabo de suas próprias vidas. Daí, Cary percebe que ficará a sós com a televisão que ganhou de presente de Natal. Eis aqui um ponto alto do filme que o aproxima da vida moderna: o simulacro como compensação para todo o esforço feito para se manter na linha da sociedade, do Estado, da família, da normalidade plena, entre outros.

O fantástico de Tudo Que O Céu Permite é o uso do desgaste para estabelecer uma história que tem traços de novidade. Por paradoxal que seja, o kitsch entra para inaugurar questões que assumem um nível filosófico. Apesar do enredo previsível e rendido ao estilo melodramático, Sirk encontra no desenrolar da história brechas para fazer transcender aquilo cujo significado se esvaziou.

Fatores estéticos e narrativos renderam uma produção audiovisual que não se encaixa estritamente em nenhuma classificação. O resultado é um longa-metragem que consegue ultrapassar o âmbito puramente comercial sem deixar de ser sucesso de bilheteria e vendagem.

"O jogo do marido afogado" por Pedro Neves


O jogo consiste em matar por afogamento todos os maridos das jogadoras chamadas Cissie Colpitts, sendo as próprias mulheres as que devem cometer os assassinatos, na ordem em que foram contraídos os matrimônios. Depois de cada execução, a Cissie Colpitts recém-viúva deve chamar o legista e convencê-lo a falsificar a causa de morte. O legista, por sua vez, levará a Cissie para um campo pré-determinado e tentará obrigá-la a aceitar sua proposta de casamento, enquanto seu filho procura mariposas. Os outros jogadores devem, após cada morte, se reunir sob a caixa d água e procurar maneiras de incriminar as Cissies perante a polícia. O jogo termina quando todos os números de 1 a 100 forem encontrados, na ordem correta e nos objetos mais diversos.

É esse o jogo que Peter Greenaway põe em cena em Afogando em Números. O espectador também pode participar, procurando os números mencionados ou nomeando as referências a pinturas barrocas salpicadas na tela. Uma brincadeira mais estimulante talvez seja a de encontrar um sentido para toda a loucura (metódica, é claro) apresentada. Mas esse jogo pode revelar-se frustrante. Por exemplo: será que, a julgar pelas recriações de naturezas mortas holandesas, repletas de frutas maduras e insetos em desordem, Afogando em Números retoma a tradição dos vanitas barrocos, sendo portanto uma meditação sobre a fugacidade dos prazeres terrenos e a iminência constante da morte? É possível, mas o tom jocoso do filme desencoraja qualquer reflexão que se leve a sério demais. Afogando em Números parece não ser mais que uma brincadeira, e as imagens e situações propostas têm um fim exclusivamente lúdico.

Liberados da obrigação de encontrar um “sentido” (ou uma moral), podemos então nos concentrar no que realmente importa: a mise-en-scène vibrante e o senso de humor mórbido de Greenaway. Formado em Artes, o diretor inglês estudou pintura mural por três anos antes de voltar-se para o cinema. Seu interesse por pintura é evidente em todos os seus filmes; cada plano é construído como um tableau vivant onde pessoas, móveis e uma infinidade de objetos cuidadosamente posicionados se fundem em composições simétricas e estudadas. O cinema de Greenaway preza pelo artifício.

O universo de referências do diretor é decididamente o da alta cultura. Além da preocupação com a pintura européia dos séculos XVI e XVII e com temas relacionados à história da arte e à Bíblia (especificamente a história de Sansão e Dalila, neste filme), a música, composta pelo colaborador frequente Michael Nyman, é inteiramente baseada no movimento lento da Sinfonia Concertante de Mozart. Afogando em Números, entretanto, está longe de ser um filme sisudo. Greenaway tem um senso de humor peculiar, entre o nonsense e a comédia negra. O contraste entre a gravidade dos acontecimentos (se trata de um filme sobre assassinato, afinal) e o ridículo dos diálogos provoca risos desconfortáveis. Outros momentos são simplesmente absurdos, como os corredores 70 e 71 Van Dyke, que frequentam enterros e festas sempre com suas roupas de corrida, ou a cena em que a Cissie 3 e seu marido atropelam duas vacas com suas bicicletas. Os números de 1 a 100 que aparecem na tela nos lugares mais improváveis são gags visuais recorrentes.

Alguns espectadores podem se perguntar o porquê dessa extravagância cinematográfica. Mas isso equivaleria a se perguntar o porquê da arte, cuja prerrogativa é exatamente a gratuidade. Greenaway nos mostra um sistema fechado em si mesmo e de difícil acesso. O segredo para desfrutá-lo é mergulhar com um espírito lúdico e olhos bem abertos, disposto a se encantar com imagens poderosas e ideias disparatadas. O excesso de estímulos sensoriais pode até afogar os menos dispostos, mas é difícil imaginar uma forma mais estética de morrer.

sábado, 18 de abril de 2009

"Obra de arte à paisana" por Ingrid Maiany


Os não adeptos dos lenços de papel provavelmente sentirão certo repúdio à primeira vez que assistirem “Tudo o que o céu permite”, filme dirigido por Douglas Sirk em meados dos anos 50. Caso se permitam uma análise mais profunda, entretanto, perceberão a linha tênue que torna esse típico melodrama de pós-Segunda Guerra digno de todos os elogios que recebeu. Sirk consegue, de forma paradoxal, criticar severamente os costumes da sociedade americana através de suas metáforas sutis, refutando, dessa maneira, tanto a visão errônea dos críticos da época – que pensavam ser essa apenas mais uma produção destinada a levar às lágrimas uma lotada sala de cinema – quanto o preconceito dos que, ainda hoje, vêem o melodrama como um gênero kitsch precedente aos folhetins água com açúcar que invadem nosso horário nobre.


A história de Cary (Jane Wyman) e Ron (Rock Hudson) é mais uma representação do inesgotável mito do amor impossível: o casal protagonista enfrenta as controvérsias de um meio social hipócrita e bastante seletivo. Sirk oferece logo na primeira cena uma prévia do embate tema da película, quando opõe em um mesmo quadro a frivolidade na qual Cary está circunscrita – através do diálogo com a amiga Sara Warren (Agnes Moorehead) sobre os compromissos sociais que a cercam – à sua adormecida condição passional, que se mostra timidamente no flerte vedado com o seu jardineiro. Tem-se início, então, uma das maiores obras-primas sirkianas.

Filmado em tecnicolor, o longa-metragem é uma explosão de cores que inspiraram cineastas como o aclamado Pedro Almodóvar. As tonalidades são cuidadosamente pensadas para adequarem-se à mensagem pretendida pelo diretor numa evidente tipologia barroca, que pode ser percebida desde os contrastes claro/escuro até a escolha de tons azuis, vermelhos e amarelos. O barroquismo também está presente na disposição dos objetos em cena. O excesso de artefatos, entretanto, embora beire o exagero, não é ameaça a harmonia de sua mise-en-scène, que conta ainda com uma arrebatadora utilização de luz e figurino.


Tal perfeccionismo não foi em vão. Sirk parece mesmo tencionar que sua estética sobreponha-se ao parco enredo que lhe foi entregue pela Universal International Pictures. Cary é uma pacata dona-de-casa de meia idade, viúva e mãe de dois filhos que cursam universidade. Ron é um rústico agrônomo que vive o espírito livre e bucólico de Thoreau. O romance surge para auxiliar Cary no descobrimento de sua identidade, ofuscada pela posição de mãe e esposa suburbana. Os encontros com Ron surtem, claramente, mais efeito do que qualquer leitura de livro de auto-ajuda.

A renovação e reinvenção de Cary é representada através da reforma no moinho onde eles trocam o primeiro beijo. Assim como a construção, Cary vai gradualmente recobrando seu vigor. O processo, todavia, é interrompido pela intervenção da comunidade, a grande antagonista da trama. Os julgamentos cruéis de sua moral mesquinha conseguem minguar gradativamente as forças da heroína, que, exausta, cede à pressão social e rompe com Ron.

O rompimento é condição para uma das cenas mais astutas do drama. Após abdicar de seu romance, Cary ganha de presente de Natal do filho, Ned (William Reynolds), um aparelho de tevê, prova culminante da qualidade de mulher solitária a que estava destinada. O grande toque, então, fica a cargo do conúbio câmera/distribuição de adereço e a imagem de Cary é refletida na televisão numa metonímia de continente/conteúdo. Nesse ponto, pode-se observar, ainda, uma crítica a iminente indústria de aparelhos de tevê, grande responsável pelo esvaziamento de público em cinemas de todo o mundo.

Tudo que o céu permite não é daqueles filmes geradores de epifanias. As situações de densidade são pouco exploradas e os conflitos psicológicos detêm-se à superficialidade. O telespectador, não obstante, permanece cativo à obra até o último momento, quando é desfeito o suspense em relação ao esperado final feliz e Cary finalmente se permite descobrir o céu. Um desfecho dentro dos padrões, porém não menos entusiástico por isso. Ali, naquela casa caricatural, um futuro vislumbrado através de um vidreiro.

"Entre o clichê e o profundo" por Aaron Athias


Cinema é um negócio lucrativo. E ao longo de toda história cinematográfica, muitos diretores (felizmente não todos) buscaram sempre repetir as fórmulas dos grandes sucessos de bilheteria. Com Douglas Sirk não foi diferente. A Universal International Pictures quis continuar com o casal “chama-público” Jane Wyman e Rock Hudson do seu último filme “Obsessão magnífica” (1954) e entregou o roteiro de “Tudo que o céu permite” para Sirk. De início, ele o achou “um pouco impossível”, mas conseguiu modificá-lo e usar o grande orçamento que lhe foi oferecido para filmar jeito que quis. Embora o filme não tenha agradado muito a crítica da época, ele teve grande aceitação na audiência.

Cary Scott (Jane Wyman) é uma viúva que vive confortavelmente e tem dois filhos que passam a maior parte do tempo em suas respectivas universidades, longe da mãe. Sua vida social se limita às festas do clube local na qual todos de sua classe social e idade se encontram numa espécie de rito forçado. Mergulhada no tédio profundo que é sua rotina, e, de certa forma conformada, Cary se considera incapaz de casar de novo. Mas já no início (início mesmo, primeira cena) observa-se um nítido interesse de Cary por Ron Kirby (Rock Hudson) seu jardineiro.

Quando a paixão é desvelada no primeiro beijo entre os dois no antigo moinho, e posteriormente no pedido de casamento de Ron, o que deveria ser um alívio para a Cary, que finalmente reencontrou um caminho na sua vida, se torna o começo de uma jornada de enfrentamento. O dirão de uma viúva rica que se casará com seu jardineiro metade de sua idade? Ao aceitar o pedido de Ron, Cary verá a outra face da sociedade, a face escondida que se mostra através do preconceito, enraizada na cultura e nos jardins impecáveis das casas de sua rua. Ou nas palavras de Sara (Agnes Moorehead), sua melhor amiga, “são nessas situações que trazem à tona o lado detestável da natureza humana”. A desaprovação é refletida por parte de praticamente todos que circulam e rodeiam a vida de Cary, incluindo (e principalmente) seus filhos que não toleram a idéia de que ela vá se casar com alguém da estirpe de Ron.

A trama se desenrola, e a pressão exercida pelos filhos se intensifica a tal ponto que Ned (um dos filhos) ameaça Cary de abandoná-la. O que demonstra ser o estopim para Cary, é o momento em que Kay, sua filha, chega em casa aos prantos devido a gozações e insinuações que levantaram referentes a Cary e Ron. Cary cede. A felicidade dos filhos dela vem em primeiro lugar, mesmo que isso signifique sacrificar a sua própria. A relação com Ron é interrompida e tudo parece voltar à “normalidade”.

Após ter reconciliado com os filhos, é Natal e Cary está em casa com sua família. A cena talvez mais curiosa, e de maior expressão do filme é quando Ned dá de presente para sua mãe uma televisão. Cary, que anteriormente no filme já havia explicitado que televisões eram para donas-de-casa entediadas, se vê então diante da sua televisão. Símbolo da monotonia da vida caseira, símbolo da vida que ela teria ao abdicar de Ron. Não demora para que ela perceba o erro e vá finalmente ao encontro de Ron. O fim é óbvio e o amor triunfa.

Tudo que o céu permite é acima de tudo muito fotográfico. Cada gesto, objeto, cada posição dos personagens na cena, cada detalhe da cena parecem ter sido minuciosamente preparado com antecedência (e muito provavelmente o foi) para gerar uma composição fotográfica muito bem construída. Além do mais, a saturação de cor promovida pela Technicolor só enfatiza o clima meloso e romântico com o exagero dos tons de vermelho, laranja e azul. É esse na verdade o grande chamativo do filme. As cores irreais que aparecem logo na entrada (a panorâmica da cidade de Stoningham) em plena estação de outono já vislumbram o espectador de primeira da mesma maneira que “O Mágico de Oz” de 1939.

O filme de Sirk é aparentemente mais um filme de amor entre classes sociais, mas não, é também um filme de revisão de valores, ou melhor, de conversão de valores. Cary não vê futuro na vida que leva, marcada pelo tédio e pela frivolidade. Ela se apaixona não somente pelo homem Ron, mas pela sua simplicidade e pelo seu modo de vida pacato, longe dos olhos julgadores da cidade. De imediato Cary não consegue visualizar-se nos padrões de vida de Ron, mas há esperança. Se Mick e Alida Anderson conseguiram superar a vida marcada pelo supérfluo e adotaram também a simplicidade, por que Cary não seria capaz? Sirk transforma uma história predominante social em uma historia de transformação pessoal. A luta de Cary é, ao mesmo tempo, uma luta externa e interna, uma luta pelo direito de amar quem ela quiser perante a sociedade e uma luta pelo direito de ser o que quiser, dona de sua vida e livre das interferências.

Por tudo que foi dito acima, um poderia pensar que o filme possui um grande viés moral por romper com as barreiras e os pensamentos vigentes da sociedade da década de 1950 ou simplesmente ser um melodrama bastante sentimental com um final previsível. O filme não deixa de ser um pouco as duas coisas. É claro que a segunda é bastante mais visível devido à trilha sonora e atuação dos personagens, mas que Sirk conseguiu criticar a superficialidade das relações em uma classe social, disso (pelo menos hoje em dia) ninguém tira o crédito. Acontece que Sirk era, de certo modo, um pouco subversivo para a sua época sim. Sabe-se que, originalmente, ele quis que o filme terminasse com a queda de Ron do pequeno penhasco no momento em que ele reconhece Cary, deixando em aberto se Ron sobreviveria ou não. O produtor Ross Hunter achou esse fim muito “depressivo” e “perturbador” para a audiência e, portanto o final foi modificado para que houvesse um desfecho feliz e convencional. No final das contas, Tudo que o Céu Permite acaba tendo seu aspecto crítico inserido. De forma sucinta, mas implícito. Não é porque o filme é um sucesso de bilheteria por apelar ao clichê que não podemos tirar uma cena, um detalhe, ou um diálogo profundo em toda sua produção.

"A felicidade segundo Fassbinder" por Thaís Maioli


“A felicidade nem sempre é divertida”. Os sonhos quando não têm de conviver com a solidão, o preconceito, as pressões sociais e, sobretudo, com o medo, precisam disputar lugar com todas essas intempéries para terem a possibilidade de serem alcançados. Essa é a perspectiva de felicidade concebida por Fassbinder em “O medo devora a alma” (1974). Uma ideia de contentamento que se distingue da idealizada pelo senso comum por não se moldar no entretenimento constante, mas por se mostrar, à despeito da pouca receptividade do ambiente, algo tangível.


Para representar esta diferente concepção de felicidade, o diretor cria um romance espelhado em suas experiências individuais. O relacionamento amoroso da senhora alemã, Emmi (Brigitte Mira), com um muçulmano vinte anos mais novo, Ali (El Hedi ben Salem) consegue expor as dificuldades advindas do preconceito e das cobranças sociais, bem como o medo de ser segregado por persistir lutando contra os padrões da sociedade. Esse roteiro muito bem construído por Fassbinder pode ser considerado, guardada as proporções, uma projeção da sua relação homoafetiva com El Hedi ben Salem.


Além de retratar os obstáculos que devem ser vencidos durante a busca pela felicidade, o autor também evidencia a recompensa por se manter perseverante e incorruptível às “imposições sociais”. A oportunidade de viver um amor puro. Um amor que encontra no outro o consolo e o apoio, que se sobrepõe ao orgulho, que é destituído do sentimento de posse e que não surge ao primeiro olhar, mas que evolui. É assim que é construída a relação de Emmi e Ali. A princípio originada por semelhanças, como a necessidade de ambos de serem escutados e compreendidos, mas posteriormente reforçada pelo respeito às diferenças.


O amor de Emmi e Ali não se parece com as paixões, comumente narradas hoje em dia, em que se enfatiza a descoberta do sentimento através de um primeiro olhar. Ou ainda com aquele amor que desde o princípio era forte. O relacionamento plantado pelos dois não se assemelha a nada disso, uma vez que se sustenta na idéia de progressão. Essa característica pode encontrar a sua metáfora na evolução da dança dos personagens. Na primeira cena, no bar, eles mantiveram certa distância um do outro e respeitaram formalidades de compasso e de diálogo. No segundo momento, já noivos, dançaram abraçados, revelando a conquista de maior intimidade. Por fim, na terceira dança, desculparam-se pelos erros cometidos e se reconciliaram, marcando na força a expressão facial e nos gestos a principal razão para o entendimento.


Fassbinder também reproduz neste filme o ocultamento do preconceito quando posto diante dos interesses pessoais. Todos aqueles que antes se mostraram contra o casamento Emmi e Ali, passaram a apoiá-los quando necessitaram de algum favor ou vislumbraram perpetuar algum benefício próprio. As vizinhas, o comerciante, as colegas de trabalho e o seu próprio filho são exemplos disso.


Alguns assuntos explorados em O medo devora a alma já haviam sido abordados em “Tudo que o céu permite” (1955), de Douglas Sirk. A semelhança, no que diz respeito à história desses dois filmes, revela a importância de recrudescer discussões recorrentes sob uma outra contextualização. As cobranças de comportamento exigidas à Cary por seus amigos e filhos, recaíram também sobre Emmi. Além disso, as duas personagens tinham as suas vidas preenchidas pela solidão antes de encontrar o amor. No caso de Emmi, a solidão foi ainda mais acentuada, pois, embora morasse perto de seus filhos, cada um estava mais preocupado com a sua própria vida. As diferenças de visão de mundo e cultura entre os envolvidos no romance também foram tratadas pelas duas tramas. Em “Tudo que o céu permite”, Cary e Ron possuíam distintas prioridades e formas de lidar com as pressões sociais. Em “O medo devora a alma”, houve um enfoque na diferença cultural.


Por fim, o filme reforça a concepção comum de felicidade na cena em que Emmi e Ali estão sentados à frente de um restaurante. Ao filmar por alguns instantes o casal de mãos dadas, imagina-se que eles conseguiram vencer todo o preconceito que residia sobre a sua relação e que naquele momento, estavam em paz. Entretanto, quando a câmera se aproxima dos dois personagens, é possível constatar que Emmi alcançou a “felicidade que nem sempre é promotora da diversão”. Uma felicidade incompleta na perspectiva idealizada já que comporta amor e medo ao mesmo tempo.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

"Para aqueles que nunca amaram" por Paulo Faltay


“Sensata loucura, sufocante amargura, vivificante doçura”, “dor que desatina sem doer”, “descanso na loucura”, são inúmeros os clichês, frases feitas e tentativas de definir o amor. No entanto, de todas as construções históricas, filosóficas e literárias sobre esse sentimento de vínculo emocional, nenhuma parece ser mais precisa do que o conceito que lhe condiciona ao signo da irracionalidade. É por não estar subjugado pela razão que o amor desperta as mais profundas angústias e receios. Sendo assim tão difícil para as pessoas, em especial para quem nunca amou, entendê-lo. O amor não foi feito para ser compreendido, mas sim sentido.

Na cena final de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall), Alvy Singer, personagem de Woody Allen, conta a seguinte piada: “Doutor, meu irmão é maluco. Acha que é uma galinha. No que o médico pergunta: Porque que não o interna? E ele responde: “Até internaria, mas preciso dos ovos.” Alvy então conclui : “É mais ou menos o que sinto sobre relacionamentos. São totalmente irracionais, loucos e absurdos. Mas nós vamos aguentando por que precisamos dos ovos.”

Em Tudo o Que o Céu Permite, clássico do melodrama, o diretor alemão Douglas Sirk narra a história de Cary (Jane Wyman), uma viúva de meia-idade resignada a passar o resto da vida exercendo o papel social designado às mulheres como ela: cuidar da casa e da família e se contentar com o companheirismo de outro viúvo mais velho. Cary, no entanto, também precisa dos ovos. E ela os encontra, não em uma galinha imaginária, mas no crescente interesse pelas piceas do jardineiro Ron, personagem de Rock Hudson.

Porém, não dá para se fazer uma omelete sem quebrar os ovos. O relacionamento entre os dois logo esbarra em inúmeros obstáculos impostos pela sociedade. A relação afetiva de Cary e Ron é de imediato alvo de maledicências das fofoqueiras suburbanas e o jardineiro é discriminado pelos filhos e pelo círculo de amizades da viúva por sua posição social e pela diferença de idade.

O enfrentamento às convenções é o campo em que o amor melodramático floresce com maior robustez, e os filmes de Sirk apresentam uma contumaz crítica à burguesia. Porém, em Tudo o que o Céu Permite, o diretor trata de forma unidimensional os conflitos sociais e humanos, o que acaba por reduzir a história de amor entre os protagonistas. O preconceito de classe é perceptível na recepção a Ron quando ele acompanha Cary a uma festa da alta sociedade, enquanto os amigos dele não estranham seu envolvimento com uma mulher mais rica, e nem se importam com o fato dela ser mais velha. É criado um contraste evidente entre os vícios e a hipocrisia do ambiente refinado, em contraposição a um espaço livre, acolhedor e alegre do campo.

Mas parece ser errado apontar uma luta de classes. Existe, de fato, um resgate de ideais românticos burgueses em contraposição a uma sociedade conservadora e aristocrática. Os amigos “proletários” de Ron são, na verdade, burgueses esclarecidos sobre o valor das coisas simples da vida, ele próprio encarna a clássica figura do self-made-man americano, e, por fim, Cary apenas decide assumir seu relacionamento após encontrar no seu médico, parte do seu círculo social, uma legitimação necessária para viver o seu amor com o jardineiro.

A princípio, a abordagem favorece ao personagem de Hudson, que mantém uma postura altiva em permanecer fiel a si mesmo (lição que muitas mulheres pós-feministas só entenderiam depois de algumas temporadas de Sex and the City). Entretanto, se a narrativa do filme se configurar em uma trajetória de busca do paraíso pela renúncia às convenções, Cary assume papel de destaque e Ron é diminuído a mero escape de uma vida destinada a ser medíocre.
Essa leitura pode agradar a alguns, em especial às feministas, mas tira o poder da abordagem romântica. O amor não obedece à razão, mas aqui tem uma finalidade narrativa que vai além do simples vínculo afetivo. O sentimento perde um pouco de suas cores saturadas, sendo reduzido a mais um elemento em um simplório maniqueísmo preto-e-branco.

O que em nada combina com o exagero e certa aura kitsch que compõem a cuidadosa direção de arte e revela uma estudada e meticulosa mise-en-scène. Cada cena parece ter sido pensada para constituir uma alegoria visual rica em cores, texturas e significados. Cada objeto é parte significante da narrativa. Desde o uso da luz no belíssimo plano do vitral do moinho, quando os rostos de Hudson e Cary permanecem na sombra em meio à insegurança dos personagens sobre o futuro do relacionamento, até a incomunicabilidade entre mãe e filho apontada pelo enquadramento que focaliza os personagens separados pela tela de um móvel. Essa preocupação estética atinge o ponto máximo na clássica e melancólica cena em que o reflexo da personagem de Wyman surge na televisão recém-comprada pelo filho, simbolizando a previsibilidade de uma vivência limitada ao enquadramento.

Crítica social, abordagem feminista, releituras sociológicas e apuro visual enriquecem a obra sirkiana, mas se revelam questões menores. A vivacidade e a força dos filmes do diretor repousam no puro ato de contar belíssimas histórias de amor. O melodrama, enquanto gênero pode ser datado, prova disso é a estética retrô adotada em Longe do Paraíso, releitura/homenagem de Todd Haynes a Tudo que o Céu Permite. Interessante notar que o filme de Haynes está afinado ao zeitgeist cínico em relação ao amor: os personagens de Julianne Moore e Dennis Haysbert não têm direito sequer a um ambíguo final feliz. Bom, Freddie Mercury e David Bowie já cantavam que o amor é uma palavra fora de moda.


Porém, em um tempo em que os mais céticos reduzem o amor às reações químicas no cérebro, tratado quase como uma neurose, o grande legado do melodrama sirkiano consiste no ensinamento aos amantes, aos cínicos e aos críticos de que filmes de amor não só podem, como devem, ser simplesmente ridículos filmes de amor. Afinal, mesmo que você nunca tenha amado, algum dia também irá precisar dos ovos.

terça-feira, 7 de abril de 2009

“Um melodrama de denúncia” por Maria Olivia Souza


À primeira vista, “Tudo que o céu permite” (1955), do diretor alemão Douglas Sirk, pode parecer mais um daqueles melodramas voltados para o público feminino norte-americano, ansioso pelo próximo tearjerker arrebatador (filmes feitos “pra chorar”). Os estúdios Universal procuraram repetir a fórmula que havia dado certo no filme “Sublime Obsessão (‘Magnificent Obsession’, 1954)”, ao unir os atores Rock Hudson - galã incontestável da época, responsável por arrancar suspiros de mocinhas dos cinco aos quinhentos anos – e da ganhadora do Oscar, Jane Wyman. Correspondia bem à velha fórmula hollywoodiana, uma dupla sintonizada, Hudson interpretando o papel de um dos protagonistas e uma história aparentemente clichê que com certeza iria agradar grande parte do público e da crítica da época.

O filme conta a história de Cary, viúva da classe média alta norte-americana, que passa a maior parte do seu tempo participando ativamente da vida social do country club da cidade, ouvindo as fofocas de suas colegas ou escapando às investidas do inconveniente Harvey. Tudo isso muda quando o jardineiro de sua casa, Ron Kirby, começa a cortejá-la. A história já é conhecida: ambos se apaixonam perdidamente e Cary finalmente sente o vazio de sua vida ser preenchido por um novo amor. As duas realidades se chocam quando Ron pede-a que se mude para sua casa, para que possam então viver juntos. Ron havia largado a profissão de jardineiro para se dedicar ao plantio de árvores na fazenda herdada da família. A partir de então todo o drama se desenrola: pela diferença de classes e idades, ela não sabe se está preparada para contar aos dois filhos – e não sabe se poderá contar com eles –, e ao seu ciclo de “amigos”, abrindo mão de tudo em troca da felicidade de um novo amor.

Aí está o toque da genialidade de Sirk. O meio no qual Cary se insere, representa claramente a mentalidade da sociedade burguesa norte-americana vigente. Sirk teve liberdade para produzir o seu filme, porém, com o que lhe estava disponível. A censura não permitia que tão duras críticas pudessem partir de um filme que, muito provavelmente, seria um sucesso de público. Por isso Sirk se utiliza de diversas metáforas para inseri-las. A mais marcante delas com certeza se trata da brilhante seqüencia na qual Cary está na sala de estar em casa desabafando com Kay, sua filha. Está extremamente infeliz, pois havia terminado com Ron para agradar aos filhos e amigos que consideravam inadmissível o fato de uma mulher de sua idade e de sua “classe” se relacionar com um homem mais jovem e mais pobre. Seu filho surge em casa trazendo um presente de reconciliação: uma televisão, afirmando que ali se encontrava uma “janela para o mundo” e uma companhia, agora que ambos os filhos estavam indo embora de casa, deixando-a sozinha. A câmera então se aproxima da TV, mostrando o reflexo de Cary, sozinha, sentada ao sofá, numa analogia clara à solidão e ao seu estado de espírito, aprisionado diante das aparências. Ora, década de 50. Sabendo que a televisão estava apenas começando a se instalar nos lares das famílias norte-americanas, foi uma atitude extremamente ousada da parte de Sirk ao inseri-la representando a solidão e o vazio da classe média, a superficialidade dos relacionamentos, a ausência de sentimentos permeando as relações humanas. Há uma leve relação com Almodóvar (fã declarado do diretor) durante o filme, provavelmente pelo uso excessivo das cores quentes – decorrente da tecnologia technicolor, marca registrada dos filmes de Sirk – e de suas críticas sociais.

“Tudo que o céu permite” foi bastante elogiado pela crítica da época, sendo considerado um excelente melodrama, com a boa e velha previsibilidade de parte dos filmes hollywoodianos da década de 50. Porém, com o passar dos anos e com as diferentes fases da crítica cinematográfica, foram analisados diferentes aspectos de sua natureza. Entre eles, o duro ataque à moral hipócrita estadunidense que, entre tantos preconceitos, ridicularizava os relacionamentos amorosos entre pessoas de classes sociais diferentes (e com uma considerável diferença de idade, como é o caso de nossos protagonistas). Ao mesmo tempo, Sirk abrange em seu discurso todas as “minorias” que de uma forma ou de outra se identificaram com o dilema de Cary: negros, muçulmanos, homossexuais e (principalmente, por que não?) as mulheres.

"Aconteceu naquela noite" por Davi Lira de Melo



“Aconteceu naquela noite”, uma produção americana de 1934 é uma autêntica representante de um curioso tipo de comédia, a “screwball” (algo como “amalucada”). Na verdade foi a partir de “Aconteceu...” que este gênero de comédia ganhou mais popularidade e relevância.

Nas “screwball´s comedy” é possível perceber quão intensas as cenas se desenvolvem durante o enredo das imagens. Esse tipo de comédia, largamente trabalhado por Capra nas décadas seguintes à Grande Depressão, busca a partir desse ritmo frenético de ação das personagens uma aproximação mais evidente com o espectador, promovendo inclusive um maior senso de interatividade entre ele. Isso porque, o filme e a audiência conseguem se envolver num tempo único, num ritmo característico.

Com “Aconteceu...” esse “tempo” está no centro de toda a movimentação da estória, visto que para muitos ele é considerado o primeiro “road movie” de uma série que se seguiu pós-década de 40. O tempo do filme, assim, vai se desdobrando em um intenso percurso que é desenvolvido pelos emblemáticos atores Clark Gable e Claudette Colber da Flórida à Nova York, durante os tempos de recessão americana.

Gable assume o papel de um melindroso jornalista (Peter Warne), enquanto Claudette Colber (Ellie Andrews) invoca a personagem de uma autêntica filha mimada de um magnata de Mahattan (Walter Connolly).

O envolvimento mais direto entre esses três principais personagens se dá a partir dos primeiros minutos de película. À cena da demissão no jornal de Peter, soma-se a brusca e repentina fuga de Ellie no iate de seu pai, Walter, depois de uma briga entre eles, ocasionada por mimos românticos da personagem.

Ela, que em um primeiro momento tenta impor ao seu pai, à contragosto, o casamento com um piloto de avião; e o pai que busca destruir qualquer possibilidade de aproximação com esse “farsante”.

É com essa discussão e posterior fuga que Ellie se envolve com o jornalista Warne.
Após o primeiro desenrrolar da estória, Peter e Ellie já estão num mesmo ônibus. Ela buscando o encontro com seu pretendente, em Nova York. Ele, ainda sem rumo definido, depois de despedido, ou melhor, depois de despedir-se do seu trabalho.

Inicialmente ao encontro dos dois principais personagens, soma-se uma série de conflitos pessoais ocasionados pela própria natureza de cada personalidade.
Mas é a partir do momento que o jornalista percebe que a “complicada” senhorita que estava ao seu lado, é a filha fugitiva e/ou raptada de um magnata de Wall Street, que ele pressente um possível furo jornalístico, como desdobramento desse caso.

Nesse momento, Ellie não percebe as intenções do jornalista, e ela não vê que ele busca acompanhar a sua trajetória até Nova York, para publicar a estória com seu “grand finale”.
Nessa altura do filme, com estreitamento mais evidente dos personagens, é possível perceber as nuances de cada tipo social: algo que a “screwball” traz consigo. Classes sociais distintas envolvidas num mesmo plano, onde personalidades aristocráticas se envolvem com tipos liberais, ou de classe média, também propiciam um plano de fundo no desenrolar de uma comédia “amalucada”.

Em “Aconteceu naquela noite” o sarcasmo e o jogo de interesse explícito do jornalista dá lugar, com o passar do enredo, à um personagem cada vez mais disciplinador, humilde, e que representa cada vez mais um papel de ajustador da reprovável conduta da descontextualizada personagem de Claudette Colbert; e esse personagem é o Gable.

Descontextualizada, porque não se deve esquecer que vivia-se a época das conseqüências da crise de 29. É por isso que o filme traz várias referências à Grande Depressão: seja o menino faminto no ônibus, seja a própria cena da demissão do jornalista, ou a cena de ladrões e mendigos.
É dessa forma, um tanto que “apropriada” que Frank Capra busca não estar totalmente desintonizado com a audiência que lhe reverenciava. Assim, é justificado o envolvimento que a “alta burguesia” tem junto ao “baixo clero”.

A mescla e o envolvimento de classes, principalmente observado durante a jornada dos personagens de Gable e Colbert a hotéis baratos de beira de esquina, ao envolvimento com marujos presentes no mesmo ônibus, sugere um verdadeiro processo de socialização plebéia da personagem Ellie.

E essa é a fórmula central da história que faz produzir os maiores níveis de humor na trama. É nesse confronto permanente entre a riqueza ostentatória e o prosaísmo popular que a personalidade dos dois vai se transformando.

Outro ponto também possível de se observar é o cuidado e a delicadeza que a mulher era tratada naquela época. No entanto, pela análise da época e pela importância da família, de então, fez falta a ausência de referências à figura materna da personagem central. Visto que, com informações mais definidoras de sua mãe, seria possível buscar um maior entendimento, ou até compreensão de Ellie.

“Aconteceu naquela noite” foi um filme que apesar dos inúmeros problemas que tiveram a equipe de produção, atingiu uma popularidade e prestigio entre as principais entidades técnicas de então. Vale lembrar que ele arrebatou importantes estatuetas naquele ano.
E grande parte desse prestígio e popularidade se deu, justamente, pelo ineditismo do autor em trazer uma comédia, que tinha um timing bastante intenso, e cheio de fatos que a enriqueciam e atraiam a atenção do espectador, que estava cansado de personagens caricaturais e com foco 100% do tempo em si mesmo. É, com “Aconteceu...” se percebeu que era possível fazer comédias de uma outra forma.

A reviravolta do casal chega acontecer de forma até natural. Se antes, eles não conseguiam sequer trocar uma palavra, sem resvalar intransigência e arrogância, a partir das inúmeras aventuras que os dois vivem nessa jornada, a forma de se relacionarem se transforma a olhos nus.

A cena do grito, no pântano, a aproximação de Peter no celeiro, e posteriormente de Ellie, no quarto de hotel, em meio à “muralha de Jericó” (divisória de lençol que reparte o quarto em dois) faz com que o destino dos dois, antes bem definido fique comprometido.
Isso porque, a ele não interessava tanto a reportagem bombástica, e a ela o encontro com seu pretendente já havia ficado em 2º plano.

Finalmente o amor compulsivo dela, busca quebrar com o conservadorismo contido de Peter, no entanto, num primeiro momento ela não logra tal objetivo. A muralha enfaticamente ainda é bem presente.


Com o desfecho da película, Capra, como um bom contador de história busca uma tensão final, que só faz enriquecer o road movie, mas que não rompe com o destino fiel da história: o amor prevalece e finalmente as muralhas já não mais existem.

"Crime e amor em ausência" por Roberta Cardoso Morais


Para compor o clima de um noir, a estética é fundamental. Não se pode separar o estilo da forma. O estilo aparece nos Estados Unidos, principalmente na década de 40, após a grande depressão de 30. O alto contraste das suas imagens tonifica a temática pessimista, oriunda da depressão. É por ela também que crescem as histórias, passadas nos grandes centros urbanos, nos bares, hotéis, mas não há muita moral guiando as relações. Laura é um filme carregado. Assassinato, relações de interesse, paixão.


Waldo Lydecker (Clifton Webb) começa narrando o filme, típico de um filme noir, narra a falta que sente de Laura (Gene Tierney), sempre num tom muito ácido, firme. O detetive Mark Mcpherson (Dana Andrews) fora incubido de solucionar o assassinato de Laura, começa a investigar Lydecker, Shelby Carpenter (Vicent Price) e Ann Treadwell (Judith Anderson). Shelby estava noivo de Laura, mas mantinha relações com sua tia, Ann. Ann é uma senhora, pouco preocupada com certos valores, vê em Shelby um reflexo de si mesma, além de ser ele um jovem muito atraente. Não se incomoda em dar dinheiro a Shelby, para que ele fique com ela. Laura passa metade do filme sem realmente aparecer, exceto pela sua pintura na sala de seu apartamento e pelos flashbacks de Lydecker e Carpenter.


Laura é uma publicitária bem sucedida que empregou Carpenter e se apaixonou por ele e mantém uma relação dúbia com Waldo. Eles são amigos, mas não se sabe até onde são só amigos. Waldo é claramente obcecado por Laura e faz de tudo para atrapalhar seus possíveis romances. Shelby não usufrui dos prestígios que Waldo possui, e é pisado por ele sempre que há oportunidade. Não é do ‘tipo convencional’ como ele mesmo diz, e até então, é o principal suspeito da morte de Laura. Principalmente quando, na verdade, a assassinada não era Laura, e sim uma modelo apaixonada por Shelby.


Acontece de a personalidade mais constante na trama ser o assassino. Talvez por isso Waldo fale com tanta firmeza, sabia o que tinha feito e até onde poderia jogar a culpa para os outros. Os demais sabiam não ser culpados, mas tinham ‘outras culpas’, menores, sempre desconfiados (resultado da grande depressão, as pessoas deixavam de ser preocupar em seguir caminhos corretos, e de uma maneira ou de outra, tinham contas obscuras a declarar).


Como é típico do ambiente noir, as personagens femininas fazem as histórias girarem em torno de si. Laura, apesar de ausente a maior parte do filme, é a grande força movedora da trama. Até o detetive se vê apaixonado pela pintura de uma morta. Ann e Shelby se unem por interesse e defesa de si mesmos. Mcpherson soluciona o caso, mas não tem tempo de prender Lydecker. O final do filme é bastante poético. Ouve-se a voz de Lydecker no rádio, falando sobre a eternidade do amor. Ele está prestes a atirar em Laura. Mas Mcpherson e seus companheiros a salvam, e ele é atingido. Na troca de tiros, o relógio que ele havia dado a Laura também é destruído, acabando o ciclo de Waldo Lydecker.


As sombras no filme o deixam ainda mais carregado e subjetivo. Até mesmo nas cenas diurnas, as sombras se fazem presente. Várias vezes os personagens são mostrados através de espelhos, lhes dando mais subjetividade. A movimentação de câmera nos passa a impressão de que o espectador se faz presente no filme como um espião. Sempre sabendo algo mais que algum dos personagens. Isso também contribui para aumentar a tensão do filme, e intensificar a desconfiança geral.


É importante lembrar que, hoje sendo considerado um estilo, os filmes noir não seguiam uma regra determinada. Tinham forte influência do expressionismo alemão, e tinham muita influência na literatura neo-realista francesa. Fora um ciclo, apenas possível por causa da impressão que deixou a depressão de 30 na mente das pessoas. Através do tempo, o noir foi reinventado, mas sem perder muito suas características, em filmes com temática de crime e femme fatales, como em "Los Angeles: cidade proibida".

domingo, 5 de abril de 2009

"O mistério de Sirk" por Pedro Neves


A crítica, assim como a arte, está sujeita a modas. Surgem novas formas de olhar, caem velhos paradigmas, e de repente obras que representavam o melhor de uma época, o máximo em refinamento e estilo, parecem irremediavelmente datadas, enquanto o lixo, sob uma luz mais favorável, assume a aparência de obra-prima.

Foi assim com Douglas Sirk. Alemão que imigrou para os Estados Unidos para escapar do nazismo, fez seu nome com uma série de melodramas dirigidos para os estúdios Universal entre 1952 e 1958. E que melodramas: histórias de inveja, ganância e paixões maiores que a vida, filmadas com cores saturadas até o limite do possível e trilha sonora transbordando sacarina. Apesar do sucesso de bilheteria, os críticos torciam o nariz para o trabalho de Sirk; acusavam-no de exagerar no uso de clichês, de falta de veracidade, de excesso de sentimentalismo, enfim, de criar kitsch, e não arte. Mas o tempo passa, o mundo gira, o mundo é uma bola.

A partir dos anos 70, inspirados pelas novas correntes acadêmicas focadas em estudos de gênero e sexualidade, críticos e estudiosos do cinema reavaliaram o legado de Douglas Sirk. E o alemão emergiu como um mestre da ironia, um subversor das regras férreas de Hollywood, um sofisticado poeta da imagem. Tolos e preguiçosos foram os críticos dos anos 50, que não enxergaram as demolidoras críticas sociais escondidas sob os violinos e Technicolor.

Mas afinal, quem está certo? Ao assistir Tudo o que o céu permite, várias coisas chamaram minha atenção: as cores magníficas (principalmente o vermelho incandescente dos cabelos e lábios de Jane Wyman), a mise-en-scène primorosa, os enquadramentos brilhantes, sim, mas também a trilha sonora invasiva, a péssima atuação de Rock Hudson, a resolução fácil dos conflitos e a sensação geral de ridículo. Encontrei-me do lado errado da História.

Tudo que o céu permite conta a história de Cary, viúva de meia idade com dois filhos universitários que se apaixona por Ron, seu jovem jardineiro. Os primeiros encontros entre os dois, carregados de tensão sexual reprimida e diálogos sobre Piceas prateadas (as árvores preferidas de Ron), são obras-primas da comédia não-intencional. A canastrice de Rock Hudson, galã-de-novela-mexicana mode on, faz de cada frase uma insinuação, e as cenas parecem saídas de um filme pornô para mulheres.

Inevitavelmente, Cary e Ron se apaixonam, mas para viver esse amor vão precisar aguentar o preconceito de todo o círculo social de Cary. O contraste entre o mundo rígido de Cary e a liberdade e espontaneidade do universo de Ron é ilustrado por duas festas: Ron leva a viúva para um jantar informal na casa de amigos, onde todos os convidados (imigrantes estereotipados inclusive) cantam, dançam e se divertem. Thoreau (escritor símbolo do espírito americano, independente e ligado à natureza) é citado; uma amiga de Ron garante que ele nunca leu o livro em questão, mas “o vive”. Na festa em que Cary apresenta Ron para seus amigos, os vizinhos se deliciam com o escândalo e a festa termina em briga e no ostracismo do casal. Para completar, os próprios filhos não aceitam os planos de matrimônio da mãe e ameaçam abandoná-la.

Cary não suporta a pressão e rompe com Ron, para logo perceber que ninguém de fato se preocupa com a sua felicidade. Sua solidão é percebida com toda a agudez ao ganhar de presente dos filhos uma televisão para manter-lhe companhia – uma pálida substituta da vida à qual Cary renunciou. Essa sem dúvida é a cena mais sublime do filme, e uma prova da ousadia de Sirk – utilizar o cinema mais escapista para criticar a passividade dos consumidores da indústria do entretenimento, e através de um grande estúdio condenar a fábrica de ilusões que é Hollywood. Sirk tampouco poupa a moralidade vigente, que reprime a sexualidade feminina e não admite às viúvas outros “consolos” que não o entretenimento sadio da TV e o afeto e companheirismo de um idoso.

Por causa de suas críticas ao conformismo americano Sirk muitas vezes é visto como um subversor. Mas essa visão só pode decorrer de uma imagem estereotipada dos anos 50 como a década da repressão. Outros filmes contemporâneos desmentem essa imagem; veja, por exemplo, A Caldeira do Diabo, que basicamente advoga pela educação sexual nas escolas, tem uma heroína adolescente que toma a iniciativa com um rapaz e conta com uma garota que engravida do padrasto como uma das protagonistas.

Outros críticos enxergam ironia em Sirk: o exagero das cores e da trilha sonora, a atuação estilizada e as composições estudadas seriam mecanismos de distanciamento – o diretor já havia encenado Brecht na Alemanha. As limitações de trabalhar em um sistema de estúdios obrigavam-no a acatar decisões indesejadas, mas ele inseria sua visão de mundo nas entrelinhas, como no final feliz com um toque de tragédia de TQCP. Mas não seriam a ironia e o distanciamento contrários à definição de Fassbinder de Sirk como o mais terno dos diretores? Não se consideramos que mesmo diretores pós-modernos como Almodóvar e Baz Luhrman, que abusam de referências kitsch e de um senso de humor corrosivo, filmam com sinceridade e paixão genuína. É possível ser crítico e autoconsciente e mesmo assim se entregar ao melodrama.

O que me parece realmente revolucionário em Sirk, entretanto, é colocar a mulher madura no centro. Cary não é incrivelmente bela nem especial; ela é uma dona de casa de classe média como as milhares que escapavam da rotina nas salas de cinema. Sirk oferece fantasia, realização de desejos e a possibilidade de identificação a um público que Hollywood tem por costume ignorar. Até a unidimensionalidade de Rock Hudson pode fazer sentido se enxergada por esse prisma: Cary é a personagem do filme, Ron está ali apenas para servir de objeto sexual e afetivo.

Minha insatisfação com TQCP permanece, entretanto. Tantos sentimentos e reputações em jogo, bem que poderíamos ser presenteados com um pouco mais de intriga, com uma resolução menos óbvia e rápida. Como objeto de estudo acadêmico Sirk se revela fascinante, um autor misterioso quanto a suas intenções e que pode facilmente ser confundido com apenas mais um artesão anódino a serviço de um grande estúdio. Mas se é por sutileza psicológica, retratos em profundidade de personagens e situações que o leitor procura, sugiro que busque em outro lugar. O que TQCP nos mostra é uma imitação da vida mais intensa que a vida mesma, mas certamente menos rica.