domingo, 26 de abril de 2009

"A crítica nas entrelinhas do excesso" por Hugo Viana




No filme Bom Dia (1959), o diretor japonês Yasujiro Ozu argumentou que a disseminação da TV instituiria um país de 100 milhões de idiotas. Quatro anos antes, Douglas Sirk, trabalhando no cerne da indústria do entretenimento, Hollywood, depois de fugir da ascensão nazista, construiu uma imagem que representa um lado mais ousado dessa mesma idéia. Para Sirk, além de idiotizadas pela televisão, como disse Ozu, as pessoas estariam se isolando do mundo, deixando de criar vínculos afetivos para experimentar uma vida inerte diante da televisão. Essa imagem aparece perto do fim de Tudo que o Céu Permite (1955), película na qual Sirk escancara a vacuidade do dia-a-dia da burguesia norte-americana, ao mesmo tempo em que conta uma historinha de amor cheia de exaltação à vida e de conflitos dramáticos exagerados.

O enquadramento em questão exibe a figura refletida da protagonista, Cary (Jane Wyman), uma viúva rica de meia-idade, presa na tela do aparelho, logo depois que a moça termina o romance com o jovem, pobre e bonitão, Ron (Rock Hudson), já que não tem força para quebrar as regras de conduta de uma sociedade que segrega pessoas baseadas no berço. É uma construção visual que condensa, num único plano, uma reflexão crítica contra a rápida conquista social da televisão, que despontava na época como meio de comunicação dominante. Isso tudo é projetado junto da fala do vendedor, que diz que Cary “terá toda a companhia que quiser; drama, comédia, a vida desfilará ao alcance de sua mão”. O rosto de Cary, ao ouvir essas palavras, demonstra que ela não quer essa vida artificial. A mulher, no auge da sua meia-idade, quer mesmo é voltar ao amor fulgurante com Ron.

É interessante perceber que essa visão crítica da sociedade norte-americana veio de um alemão. Esse fato se torna curioso ao analisar que boa parte dos cineastas que perscrutavam a sociedade norte-americana, nos filmes dos anos 1940 e 50, vinha da Europa. É como se o olhar estrangeiro de diretores como Otto Preminger, Billy Wilder e Ernst Lubitsch, despido da condescendência natural de alguém que se propõe a analisar o próprio país, tornasse o processo de apreender e reconstruir cidades e pensamentos tipicamente americanos, através de uma narrativa fílmica, mais focado em discutir as contradições que compunham o american way of life do que repetir mecanicamente símbolos gastos. Nesse sentido, os trabalhos de Sirk, melodramas que, na superfície, pareciam vazios, ou simplesmente romances prazerosos, chacoalhavam a indolência da burguesia norte-americana.

O teor melodramático de Tudo que o Céu Permite, martelado por todas as escolhas de Sirk, seja na estética carregada de cores ou na narrativa abarrotada de tragédias, serve como uma das bases para as várias repetições e reordenações que o subgênero conheceria no avanço do discurso cinematográfico e, ironicamente, televisivo. Vinte anos mais tarde, Fassbinder, outro autor alemão, incorporaria e atualizaria essas questões às suas obras e ao seu tempo, fazendo filmes tão instigantes quanto os de Sirk. Cinqüenta anos depois, vários canais de TV utilizariam esses recursos melodramáticos em subprodutos sem aspiração crítica ou pretensão artística – apenas como programas entorpecentes, inibidores da formação analítica da sociedade. O melodrama não é uma fonte de problemas, ou sinônimo de falta de criatividade. Ele se adapta à índole do discurso no qual é enquadrado.

No filme de Sirk, a música, as emoções à flor da pele e os eventos trágicos constituem um excesso que intensifica o ponto central do filme: investigar como a projeção pública de um relacionamento de pessoas de origens diferentes pode trazer à tona o lado mesquinho dos moradores de uma cidade. Enquanto na superfície é uma película convencional sobre as agruras de um amor impossível, o subtexto analisa como a os habitantes daquela cidadezinha, que bem poderia ser qualquer cidadezinha, reagem quando são apresentados a relacionamentos onde há contraste social e etário. O par romântico do filme de Sirk ilustra essa idéia, por serem representantes dos extremos sociais.

O sentimento que os dois compartilham é estabelecido através de uma bela metáfora, logo no começo do filme. Ron explica, numa conversa de duplo sentido, no jardim colorido de Cary, que determinada árvore só cresce perto de uma casa onde há amor. Ele corta um pedaço e coloca nas mãos dela. Dessa última imagem, registrando as folhas douradas e o rosto de Cary tomado por um silêncio efusivo, e ao som de música melodiosa, Sirk faz uma fusão para esse mesmo ramo dourado que Ron sacou da árvore, agora dentro de um jarro, no quarto da protagonista. A elipse comenta, de um jeito sutil, a evolução dos sentimentos de Cary.

Ela precisa escolher entre uma vida de festas opulentas e acompanhantes viúvos com pé na cova, “o único solteiro da cidade”, como comentam as fofoqueiras da classe alta, e a oportunidade de um relacionamento diferente de tudo o que ela experimentou até aquele momento. Esse choque na vida de Cary é representado através de uma fotografia carregada de cores, transitando principalmente por tons opostos, do azul ao dourado. É dessa forma que Sirk enfatiza que universos distintos entram em guerra. O diálogo precário entre Cary e seus filhos, o abraço apaixonado diante de um futuro complicado, tudo é representado a partir de imagens cuja cor dominante e as sombras mudam ao longo da duração da cena, dependendo do desenvolvimento dos conflitos. A própria construção temática das sequências complementa a idéia de oposição. Cary vai a festas da classe alta e veste sorrisos falsos diante das amigas fofoqueiras. Ron ama a natureza, e seus sorrisos nas reuniões com amigos são autênticos.

Nesses dois acontecimentos, a profundidade de campo permite ao olhar do espectador transitar pelos enquadramentos, com personagens conversando em primeiro plano e, ao fundo, outros dançando. Essa técnica intensifica o sentimento de realidade diegética e situa o espectador diante de múltiplos momentos significativos, para apreender as minúcias que diferenciam cada grupo.

Alguns detalhes são escandalosos, como o salão luxuoso, adornado com quadros, flores e lustres, ao som de música clássica, da reunião da festa dos ricos, em oposição à reunião na casa dos amigos de Ron, cuja mesa de jantar, núcleo convencional de qualquer encontro social, não passa de uma improvisação, com justaposição de tábuas de madeira. Outras características são mais sutis, mas igualmente sintomáticas. Quase todos os enquadramentos na festa dos amigos de Ron incluem o céu, já que a casa possui janelas imensas. Nos cenários das festas chiques não há entrada de luz e o local parece sempre claustrofóbico, abafado por conversas que giram em torno de dinheiro e sucesso. É a partir dessa construção discursiva simples na aparência, mas consciente sobre o que pretende comunicar, que Douglas Sirk utilizou a estridência do melodrama para registrar suas ponderações sobre as mazelas da sociedade onde ele se inseriu.

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