Os não adeptos dos lenços de papel provavelmente sentirão certo repúdio à primeira vez que assistirem “Tudo o que o céu permite”, filme dirigido por Douglas Sirk em meados dos anos 50. Caso se permitam uma análise mais profunda, entretanto, perceberão a linha tênue que torna esse típico melodrama de pós-Segunda Guerra digno de todos os elogios que recebeu. Sirk consegue, de forma paradoxal, criticar severamente os costumes da sociedade americana através de suas metáforas sutis, refutando, dessa maneira, tanto a visão errônea dos críticos da época – que pensavam ser essa apenas mais uma produção destinada a levar às lágrimas uma lotada sala de cinema – quanto o preconceito dos que, ainda hoje, vêem o melodrama como um gênero kitsch precedente aos folhetins água com açúcar que invadem nosso horário nobre.
A história de Cary (Jane Wyman) e Ron (Rock Hudson) é mais uma representação do inesgotável mito do amor impossível: o casal protagonista enfrenta as controvérsias de um meio social hipócrita e bastante seletivo. Sirk oferece logo na primeira cena uma prévia do embate tema da película, quando opõe em um mesmo quadro a frivolidade na qual Cary está circunscrita – através do diálogo com a amiga Sara Warren (Agnes Moorehead) sobre os compromissos sociais que a cercam – à sua adormecida condição passional, que se mostra timidamente no flerte vedado com o seu jardineiro. Tem-se início, então, uma das maiores obras-primas sirkianas.
Filmado em tecnicolor, o longa-metragem é uma explosão de cores que inspiraram cineastas como o aclamado Pedro Almodóvar. As tonalidades são cuidadosamente pensadas para adequarem-se à mensagem pretendida pelo diretor numa evidente tipologia barroca, que pode ser percebida desde os contrastes claro/escuro até a escolha de tons azuis, vermelhos e amarelos. O barroquismo também está presente na disposição dos objetos em cena. O excesso de artefatos, entretanto, embora beire o exagero, não é ameaça a harmonia de sua mise-en-scène, que conta ainda com uma arrebatadora utilização de luz e figurino.
Tal perfeccionismo não foi em vão. Sirk parece mesmo tencionar que sua estética sobreponha-se ao parco enredo que lhe foi entregue pela Universal International Pictures. Cary é uma pacata dona-de-casa de meia idade, viúva e mãe de dois filhos que cursam universidade. Ron é um rústico agrônomo que vive o espírito livre e bucólico de Thoreau. O romance surge para auxiliar Cary no descobrimento de sua identidade, ofuscada pela posição de mãe e esposa suburbana. Os encontros com Ron surtem, claramente, mais efeito do que qualquer leitura de livro de auto-ajuda.
A renovação e reinvenção de Cary é representada através da reforma no moinho onde eles trocam o primeiro beijo. Assim como a construção, Cary vai gradualmente recobrando seu vigor. O processo, todavia, é interrompido pela intervenção da comunidade, a grande antagonista da trama. Os julgamentos cruéis de sua moral mesquinha conseguem minguar gradativamente as forças da heroína, que, exausta, cede à pressão social e rompe com Ron.
O rompimento é condição para uma das cenas mais astutas do drama. Após abdicar de seu romance, Cary ganha de presente de Natal do filho, Ned (William Reynolds), um aparelho de tevê, prova culminante da qualidade de mulher solitária a que estava destinada. O grande toque, então, fica a cargo do conúbio câmera/distribuição de adereço e a imagem de Cary é refletida na televisão numa metonímia de continente/conteúdo. Nesse ponto, pode-se observar, ainda, uma crítica a iminente indústria de aparelhos de tevê, grande responsável pelo esvaziamento de público em cinemas de todo o mundo.
Tudo que o céu permite não é daqueles filmes geradores de epifanias. As situações de densidade são pouco exploradas e os conflitos psicológicos detêm-se à superficialidade. O telespectador, não obstante, permanece cativo à obra até o último momento, quando é desfeito o suspense em relação ao esperado final feliz e Cary finalmente se permite descobrir o céu. Um desfecho dentro dos padrões, porém não menos entusiástico por isso. Ali, naquela casa caricatural, um futuro vislumbrado através de um vidreiro.
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