terça-feira, 7 de abril de 2009

"Aconteceu naquela noite" por Davi Lira de Melo



“Aconteceu naquela noite”, uma produção americana de 1934 é uma autêntica representante de um curioso tipo de comédia, a “screwball” (algo como “amalucada”). Na verdade foi a partir de “Aconteceu...” que este gênero de comédia ganhou mais popularidade e relevância.

Nas “screwball´s comedy” é possível perceber quão intensas as cenas se desenvolvem durante o enredo das imagens. Esse tipo de comédia, largamente trabalhado por Capra nas décadas seguintes à Grande Depressão, busca a partir desse ritmo frenético de ação das personagens uma aproximação mais evidente com o espectador, promovendo inclusive um maior senso de interatividade entre ele. Isso porque, o filme e a audiência conseguem se envolver num tempo único, num ritmo característico.

Com “Aconteceu...” esse “tempo” está no centro de toda a movimentação da estória, visto que para muitos ele é considerado o primeiro “road movie” de uma série que se seguiu pós-década de 40. O tempo do filme, assim, vai se desdobrando em um intenso percurso que é desenvolvido pelos emblemáticos atores Clark Gable e Claudette Colber da Flórida à Nova York, durante os tempos de recessão americana.

Gable assume o papel de um melindroso jornalista (Peter Warne), enquanto Claudette Colber (Ellie Andrews) invoca a personagem de uma autêntica filha mimada de um magnata de Mahattan (Walter Connolly).

O envolvimento mais direto entre esses três principais personagens se dá a partir dos primeiros minutos de película. À cena da demissão no jornal de Peter, soma-se a brusca e repentina fuga de Ellie no iate de seu pai, Walter, depois de uma briga entre eles, ocasionada por mimos românticos da personagem.

Ela, que em um primeiro momento tenta impor ao seu pai, à contragosto, o casamento com um piloto de avião; e o pai que busca destruir qualquer possibilidade de aproximação com esse “farsante”.

É com essa discussão e posterior fuga que Ellie se envolve com o jornalista Warne.
Após o primeiro desenrrolar da estória, Peter e Ellie já estão num mesmo ônibus. Ela buscando o encontro com seu pretendente, em Nova York. Ele, ainda sem rumo definido, depois de despedido, ou melhor, depois de despedir-se do seu trabalho.

Inicialmente ao encontro dos dois principais personagens, soma-se uma série de conflitos pessoais ocasionados pela própria natureza de cada personalidade.
Mas é a partir do momento que o jornalista percebe que a “complicada” senhorita que estava ao seu lado, é a filha fugitiva e/ou raptada de um magnata de Wall Street, que ele pressente um possível furo jornalístico, como desdobramento desse caso.

Nesse momento, Ellie não percebe as intenções do jornalista, e ela não vê que ele busca acompanhar a sua trajetória até Nova York, para publicar a estória com seu “grand finale”.
Nessa altura do filme, com estreitamento mais evidente dos personagens, é possível perceber as nuances de cada tipo social: algo que a “screwball” traz consigo. Classes sociais distintas envolvidas num mesmo plano, onde personalidades aristocráticas se envolvem com tipos liberais, ou de classe média, também propiciam um plano de fundo no desenrolar de uma comédia “amalucada”.

Em “Aconteceu naquela noite” o sarcasmo e o jogo de interesse explícito do jornalista dá lugar, com o passar do enredo, à um personagem cada vez mais disciplinador, humilde, e que representa cada vez mais um papel de ajustador da reprovável conduta da descontextualizada personagem de Claudette Colbert; e esse personagem é o Gable.

Descontextualizada, porque não se deve esquecer que vivia-se a época das conseqüências da crise de 29. É por isso que o filme traz várias referências à Grande Depressão: seja o menino faminto no ônibus, seja a própria cena da demissão do jornalista, ou a cena de ladrões e mendigos.
É dessa forma, um tanto que “apropriada” que Frank Capra busca não estar totalmente desintonizado com a audiência que lhe reverenciava. Assim, é justificado o envolvimento que a “alta burguesia” tem junto ao “baixo clero”.

A mescla e o envolvimento de classes, principalmente observado durante a jornada dos personagens de Gable e Colbert a hotéis baratos de beira de esquina, ao envolvimento com marujos presentes no mesmo ônibus, sugere um verdadeiro processo de socialização plebéia da personagem Ellie.

E essa é a fórmula central da história que faz produzir os maiores níveis de humor na trama. É nesse confronto permanente entre a riqueza ostentatória e o prosaísmo popular que a personalidade dos dois vai se transformando.

Outro ponto também possível de se observar é o cuidado e a delicadeza que a mulher era tratada naquela época. No entanto, pela análise da época e pela importância da família, de então, fez falta a ausência de referências à figura materna da personagem central. Visto que, com informações mais definidoras de sua mãe, seria possível buscar um maior entendimento, ou até compreensão de Ellie.

“Aconteceu naquela noite” foi um filme que apesar dos inúmeros problemas que tiveram a equipe de produção, atingiu uma popularidade e prestigio entre as principais entidades técnicas de então. Vale lembrar que ele arrebatou importantes estatuetas naquele ano.
E grande parte desse prestígio e popularidade se deu, justamente, pelo ineditismo do autor em trazer uma comédia, que tinha um timing bastante intenso, e cheio de fatos que a enriqueciam e atraiam a atenção do espectador, que estava cansado de personagens caricaturais e com foco 100% do tempo em si mesmo. É, com “Aconteceu...” se percebeu que era possível fazer comédias de uma outra forma.

A reviravolta do casal chega acontecer de forma até natural. Se antes, eles não conseguiam sequer trocar uma palavra, sem resvalar intransigência e arrogância, a partir das inúmeras aventuras que os dois vivem nessa jornada, a forma de se relacionarem se transforma a olhos nus.

A cena do grito, no pântano, a aproximação de Peter no celeiro, e posteriormente de Ellie, no quarto de hotel, em meio à “muralha de Jericó” (divisória de lençol que reparte o quarto em dois) faz com que o destino dos dois, antes bem definido fique comprometido.
Isso porque, a ele não interessava tanto a reportagem bombástica, e a ela o encontro com seu pretendente já havia ficado em 2º plano.

Finalmente o amor compulsivo dela, busca quebrar com o conservadorismo contido de Peter, no entanto, num primeiro momento ela não logra tal objetivo. A muralha enfaticamente ainda é bem presente.


Com o desfecho da película, Capra, como um bom contador de história busca uma tensão final, que só faz enriquecer o road movie, mas que não rompe com o destino fiel da história: o amor prevalece e finalmente as muralhas já não mais existem.

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