sexta-feira, 24 de abril de 2009

"A leveza em torno da Muralha de Jericó" por Nathalia da Conceição Pereira


Quando, em 1934, Clark Gable recebeu da MGM a "punição" de atuar num filme da Columbia (uma das produtoras mais chinfrins da época), provavelmente não imaginava que estrelaria uma obra-prima, digna da proeza de ser o primeiro filme a receber cinco Oscars, nas suas principais categorias (Filme, Direção, Ator, Atriz e Roteiro adaptado). Era "Aconteceu Naquela Noite", comédia que iniciou o estilo Screwball Comedy - normalmente traduzido como Comédia Maluca - que são aquelas tramas cheias de reviravoltas, situações mirabolantes e desfechos inesperados.


Inesperados em meados dos anos trinta. Afinal, com o tempo, a fórmula dessas comédias contagiou as produções norte-americanas e, até hoje, moças ricas e esnobes conhecem bonitões pobres e aparentemente sem coração e, depois de trocar muitas farpas e desaforos, se apaixonam e mudam suas atitudes para provar ao público que são personagens muito mais densos do que aparentavam ser.


É assim no filme de Capra, que mostra a busca de Ellie Andrews (Claudette Colbert) pelo "Triunfo do amor" num dos primeiros road movies da história. Ela é uma jovem mimada pelo pai e recém-casada com King Westley, um piloto playboy, reprovado pelo velho Andrews. No início da trama, Ellie decide fugir das "amarras" paternas, faz birra, greve de fome, grita com todo mundo, pula do iate da família e nada em direção ao futuro que projeta pra si. Com essa sinopse, aparentemente superficial, e dois protagonistas envolvidos no filme a contragosto, a comédia estourou nos Estados Unidos. Não só pelo ótimo resultado da combinação Clark e Claudette - ou melhor, Ellie e Peter - mas também pela novidade que o filme apresentava com a força de seus diálogos, ao mesmo tempo leves e engraçadíssimos.


Quando a embonecada Ellie conhece Peter Warren (Clark), um jornalista desempregado, em um ônibus para Nova Iorque a trama começa a se desenrolar de uma forma tão agradável, que se torna insuspeitado que os dois atores estariam ali com má vontade. Talvez o duelo de "egos colossais" (tanto das estrelas, quanto dos personagens) tenha contribuído para que o filme fluísse tão naturalmente e que cativasse os espectadores a ponto de maravilhar gerações por 75 anos.


O encontro pouco dócil de Ellie e Peter acontece logo no começo da viagem, eles disputam o último assento do ônibus como se fosse uma batalha travada pela dignidade e acabam dividindo o lugar – e olhares atravessados – pelo resto do caminho. Com o convívio forçado, os dois logo percebem que podem se beneficiar com uma aliança. Apesar de toda sua coragem e esperteza, a herdeira é insegura e precisa de proteção, a escolta de Warren é oferecida, então, em troca de uma valiosa matéria exclusiva sobre a fuga da mocinha para o amor. É claro que essa união interesseira é recheada de implicâncias por parte de ambos. A Muralha de Jericó, que separa a cama dos protagonistas nos hotéis de beira de estrada, favorece elegantes alusões sexuais, testemunha a evolução da relação do excêntrico casal, e ainda representa a distância existente entre os mundos dos dois. E tudo isso, construído por um fino lençol e um barbante.

Em contraste com essa leveza amalucada, há sutis retratos da realidade social, elemento comum nas tramas caprianas. Dentro do ônibus – onde boa parte da história é contada - por exemplo, estão presentes diversas representações de cidadãos americanos afetados pela crise econômica, desde a mulher que passa fome enquanto procura melhores condições de vida, ao desempregado beberrão, que com muito jogo de cintura, consegue enfrentar as dificuldades que encontra pelo caminho. Observando tudo isso, orgulhosa e egocêntrica, está a jovem rica, que, aos poucos vai tentando se adaptar a uma vida mais simples e, inclusive, descobrindo coisas boas nela.

O filme é repleto de cenas marcantes, que viraram clássicas e foram bastante reinterpretadas nos anos seguintes. Na mais importante de todas, acontece o hilário momento em que Ellie Andrews, com toda sua pose de sabichona, ensina Warren a pedir carona sem usar nenhuma das técnicas caricatas do rapaz. Com êxito, ela prova de uma vez por todas que pernas podem ser melhores do que polegares. Outro bom momento é o que Gable, com seu jeito apressado e cheio de si, come cenouras cruas, como se fossem deliciosas. O resultado da cena ficou tão legal, que serviu de inspiração ao criador do desenho Pernalonga, fã declarado do filme. O cartunista também afirmou ter pegado emprestado para sua criação o jeito canastrão de Oscar Shapeley (interpretado por Roscoe Karns), um dos passageiros do ônibus Miami - Nova Iorque, que rouba a cena quando tenta paquerar Ellie – a dona classuda que dá respostas atravessadas - no auge de seu pedantismo.

Quando, finalmente, os heróis estão concluindo a viagem, o romance entre os dois vai ficando mais explícito, até o ponto em que, Ellie - visivelmente mais madura e segura de seus sentimentos - ultrapassa o lençol entre eles e se declara para Peter, que, pela primeira vez, não consegue reagir. No outro dia, ao se atrapalhar tentando conseguir dinheiro para fugir com sua amada, Warren se desencontra de Andrews, numa cena engraçada e desesperadora. Ela acaba voltando para casa, escoltada pelo pai e por Westley. Então, conformada em ver seus planos falharem, a mocinha decide reafirmar o casamento com o piloto oportunista, e é aí que aumenta a importância de seu pai na trama. O magnata conhece Peter e descobre que ele é o homem perfeito para sua filha, então, se empenha a convencê-la a desistir do casamento, o detalhe é que ele faz isso em pleno caminho do altar. Finalmente, Ellie se convence do estrago que está prestes a fazer e, na hora do sim, foge em busca do verdadeiro triunfo do amor. O divórcio é tratado como algo absolutamente simples – em plenos anos 30 – e as trombetas tocam para a queda da Muralha de Jericó. Depois disso, não tem como não assistir aos créditos com um sorriso abobalhado no rosto.

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