sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Uma Faca no American Way of Life" por Wesley da Silva Prado


Quando se assiste a um filme como “Tudo que o Céu Permite”, bate certa tristeza de saber que a humanidade mudou muito pouco. O ano em que Douglas Sirk concebeu sua obra foi 1955, mas bem que poderia ter sido filmado do mesmo jeito nos nossos dias. O romance socialmente impossível entre uma viúva rica e um jardineiro pobre – e ainda por cima mais novo – poderia se passar em qualquer época e ainda assim manteria o peso de sua crítica. Tudo muito bem disfarçado pela esfera do melodrama, gênero no qual Sirk é reconhecidamente um mestre. O American Way of Life é fustigado à ponta de faca e Sirk não tem vergonha de vê-lo sangrar.

Cary Scott (Jane Wyman), a viúva rica, começa a se envolver com Ron Kirby (Rock Hudson) e em meio a planos de viver um grande amor numa casinha no campo – um moinho que Ron carinhosamente restaura e transforma no lar perfeito, tudo muito certinho, com lareira e tudo – sofre com a intolerância de seus amigos e de seus dois filhos (já bem crescidinhos), que acham absurda a idéia de Cary casar com um homem bem mais jovem e pobretão. Na verdade, até esperam que ela se case novamente mas nunca com um homem como Ron (inclusive há um pretendente... um senhor bem mais velho que ela!). Sirk começa a fustigar daí.

Todo o círculo social de Cary é composto por “pessoas de bem”, ricas (seja por esforço ou por herança) e fúteis. Tais como Mona Plash (Jacqueline deWitt), uma mulher fina e intrometida, que não passa de uma cobra deselegante, cheia de veneno; e Sarah Warren (Agnes Moorehead), a melhor amiga de Cary, que mesmo com toda a boa intenção do mundo, só corrobora os preconceitos do meio que participam.

Cary não pode nem mesmo contar com o apoio dos filhos Kay (Gloria Talbot) e Ned (William Reinolds), que assim como os outros, não aceitam que ela se case com um brutamontes. A visão dos filhos é um reforço da imagem familiar típica americana dos anos 50, na qual a mulher se sacrifica pela família e honra a memória do marido morto curtindo a solidão que lhe resta. Kay e Ned são incapazes de entender que tudo que Cary deseja é ser feliz. O ápice dessa incompreensão surge na clássica cena da televisão, onde Sirk afunda de vez a faca: para não perder o amor dos filhos, Cary sacrifica sua felicidade com Ron, esperando manter a família unida. Mas descobre que nada adiantou, pois eles vão embora construir suas vidas (Kay vai se casar e Ned se alista no exército). Tudo que sobra para Cary é o presente de Natal de seu filho: uma televisão novinha, onde ela vai poder ver o mundo inteiro dentro daquelas poucas polegadas. O close no aparelho, refletindo a imagem de Cary, “presa” na tela, é de uma inteligência que faz falta no cinema contemporâneo. Kay e Ned não entendem que sua mãe não quer simplesmente assistir a vida: ela quer gozá-la. As cores dessa cena são majestosas, assim como a da conversa entre Cary e Kay, após o fim do namoro desta. A luz que vaza pela janela multicolorida, tornando o quarto um arco-íris, mostra bem a difusão de sentimentos entre as duas mulheres. Tudo graças ao Technicolor, novidade na época, e que Sirk usa com maestria para atingir seus objetivos.

Aliás, uma das figuras mais interessantes no filme é a jovem Kay. Gloria Talbot esbanja simpatia no papel da culta e romântica filha de Cary. Quem conseguiria dizer para a própria mãe, com absoluta naturalidade, que sua viuvez é bem melhor que a das mulheres do Egito Antigo? Sempre tirando os óculos antes de citar seu conhecimento enciclopédico, Kay é também uma figura sensível, capaz de cair aos prantos quando seu namoro termina – bem diferente do esperado de sua pose de garota racional. Uma espécie de feminismo latente a cerca.

E por falar em atuações, Rock Hudson deve ter freqüentado as mesmas aulas de interpretação que Steven Seagall e Ricardo Macchi (ele mesmo, o cigano Igor), porque sua canastrice chega a níveis bem altos nesse filme. Numa de suas piores cenas, ele “chora” pela separação de Cary, providencialmente de costas para a câmera. Mas talvez isso nem seja um defeito tão grande, pois a figura de Ron fica bem delimitada pela canastrice de Hudson. Não seria a mesma coisa se ele não tivesse a postura de machão irresistível, sempre com a razão.

No mais, Sirk consegue o que queria, mesmo que disfarçando muito bem com lágrimas, intrigas, separações e final feliz, e o que sobra ao fim do filme é um sonho morto, uma sociedade fadada ao fracasso pelo seu próprio cinismo e intolerância. Mas que vai continuar sorrindo, bem vestida e servindo um enorme peru no Natal, mesmo quando os ratos já tiverem invadido a casa. É, a humanidade mudou muito pouco mesmo.

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