sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Cores e sonhos feitos de Godard" por Gianni Paula dos Anjos de Melo


Não é a história, somente em si, que faz o filme. Nesse caso, bastaria ler a novela Obsession, do norte-americano Lionel White, texto que deu origem à “Pierrot, Le fou”. Mas aí, pela força da escolha, você perderia de viajar em um road-movie que transita entre o sonho e a crise, o pop e o erudito: veredas da Nouvelle Vague.

O francês Godard, nome demarcador de uma época cinematográfica, muito antes de fazer filmes políticos en son Groupe Dziga Vertov, já fazia filmes politicamente: lirismo de discurso próprio. Nos idos dos anos 60, precisamente 1965, o diretor pinta na tela do cinema a história de certo Ferdinand que, cansado, desprovido de unidade, sem aragem de sossego, resolve abandonar mulher, filha e reuniões burguesinhas, para viver desassossego pleno. Desassossego pleno tem nome que ressoa arte e ares de deusa Vênus: Marianne de Renoir. É no reencontro do caso antigo que Ferdinand se envolve com histórias de armas, dinheiro e fuga: por loucura ou paixão - o que, trocando em miúdos, dá exatamente na mesma.


Não querendo pecar por reducionismo, é preciso deixar claro que Godard não só pinta na tela: ele compõe, recita, borda, esculpe, customiza, cinzela. Convida à sua construção ficcional as figuras de Renoir, Velásquez, Van Gogh para se acomodarem ao lado do Pop Art e da Turma do Pé de Níquel. Fragmentos que vem de cada tempo compor uma mesma expressividade: colcha de retalhos. Colcha de retalhos repleta de cores de encanto, para Almodóvar nenhum botar defeito. Nem Frida Kahlo.


O que autoriza o diretor francês ao intenso do passeio cinematográfico é a noção de que antes dele ser do filme, o filme é dele. Vislumbrar a narrativa como artesanato, à palma da mão, isso é avant-garde. E assim como Ferdinand desvia a rota da estrada e adentra o mar imponente, Godard dispensa linha reta para contar sua história, pois quando se anda sempre em frente não se pode chegar muito longe.


É um pouco desconcertante quando o protagonista pergunta, no início do filme, “O que exatamente é o cinema?”. Pois que resposta você daria para Jean-Luc Godard? Ou até mesmo pra Ferdinand, personagem que de dentro da obra, reconhece sua condição de representação, e dialoga com a platéia, ainda que, alguns minutos antes, Marianne tenha dito que a simulação da morte dos dois precisava parecer real, pois aquilo não era um filme. “Pierrot, Le fou” é e não é um filme, como na lógica hegeliana de suprassumir: negando e assumindo sua condição de filme, mas ao mesmo tempo se elevando: se apropriando com rigor do verbo e sendo em si o sonho em concretude. E se Godard já sabia que nós somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós, o construído não podia ser mais do mesmo, “Pierrot, Le Fou” é um elogio à forma.


Exercício maravilhoso é também poder captar um vasto campo literário não apenas em uma menção direta como a feita à Baudelaire, mas, principalmente, nos cantinhos escondidos do suporte audiovisual. Para mim, são tesourinhos. Quando, na tela, a narração se apresentou em dueto, falas em off revezadas, automaticamente fui transportada para a história de outro grande. É em um conto brasileiro, datado muito próximo, 1966, que dois personagens se confundem enquanto sua história se desenrola. Neste conto, a própria personagem osmaniana diz: é porque nos amamos. Estamos confundidos, cada um é si próprio e também é o outro. Marianne e Ferdinand se amavam? Não tenho a medida dessa resposta. O que sei é que se confundiam na vivência, sendo extensão irremediável dos sentidos um do outro. Enquanto a bela trazia em si propriedade de quem vive a vida, o seu companheiro Ferdinand possuía o predicado daqueles que muito mais contemplam a vida enquanto o tempo escorre aos litros.


Faz-se ainda necessário exaltar Marianne como lugar de complexidade do filme. A construção feminina, em “Pierrot, Le Fou”, é um encantamento absoluto, oscilação entre o barroco e o minimalista em uma personagem que dissimula, mas convence por levantar o estandarte de quem acredita que sagrado é o que se sente. O maior mistério de Marianne é, talvez, a sua transparência e a fidelidade a si mesma, à história que ela vive por merecimento.


O amor precisa ser reinventado. Rimbaud que escreveu. Ferdinand disse. Marianne sabia. Godard sabia mais ainda. E, ao passo que ele, diretor, reinventava o amor, reinventava também a mulher, reinventava a palavra, reinventava os planos de imagem, reinventava a narrativa. Reinventava Ferdinand, que, a essa altura, já é Pierrot. Reinventava o Godard, reinventava o cinema, reinventava a representação e te apontava a direção para que se reinventasse o real. É assim, “Pierrot, Le fou”, reinvenção até da tragédia, pois com tudo acabado, em desatino de desespero, caímos de ceder à idéia que a vida pode ser triste, mas é sempre bela.

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