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sábado, 15 de novembro de 2014

"A Chinesa", por Júlio Pereira


Ocorreu, recentemente, uma ressignificação interessante de Riocorrente, do paulista Paulo Sacramento, perante as manifestações iniciadas em junho de 2013 no Brasil. O filme foi realizado antes da erupção política nas ruas, mas, por ser lançado posteriormente, acabou estabelecendo uma ponte involuntária com acontecimentos reais. Por outro lado, podemos compreender a obra por outra ótica (bem mais instigante, diga-se): como um anúncio do que estaria por vir, ou seja, um pequeno retrato dum sentimento de revolta presente nos brasileiros anterior às chamadas jornadas de junho (nome problemático tendo visto que as manifestações não se cessaram) – e, claro, existe uma relação muito direta entre essa sensação de mal-estar com a explosão política no Brasil. Essa divagação serviu, de fato, apenas para poder falar um pouco sobre a força adquirida por A Chinesa, de Jean-Luc Godard, ao tentar enquadrar o filme num contexto político maior na França. Leia-se: prelúdio capturado em película do que seria o Maio de 68, cujo estopim foi, inclusive, a demissão de Henry Langlois, diretor da cinemateca francesa, por André Mauraux, então ministro da cultura.

Falamos duma obra fundamentalmente romântica, retrato honesto dum tempo onde a ideia da revolução sendo feita nas urnas, muito presente em certa esquerda contemporânea, se empalidecia diante do fervor revolucionário presente entre os jovens franceses. E é muito importante destacar o fato dos personagens de A Chinesa serem todos militantes da juventude, afronta direta a uma esquerda mais velha absolutamente institucionalizada, pouco preparada para a efervescência de ideias à esquerda pairando entre os mais novos. No âmago disso, existe o apreço forte pelas ideias maoistas, num período já desiludido com a URSS. O Livro Vermelho se impõe na obra menos como elemento figurativo de ideias do que representante de um desejo radical entre os personagens, ou seja, força motriz de todo o debate do filme.

Aliás, essa sinceridade, uma fé clara do próprio Godard, nos ideais de Mao Tse-Tung, celebração pura da Revolução Cultural na China, obstruem qualquer possibilidade de revisionismo, tendo vista que nós sabemos todos os excessos cometidos – embora muitos não-provados – pelo governo socialista de Mao – perdurado até hoje, mas com uma esquizofrenia grotesca: um dos capitalismos econômicos mais cruéis do mundo. Um período pré-descortinamento, em que os franceses, assim como os militantes comunistas do resto do mundo, não sabiam tão bem a barbárie por trás da utopia (como define Silvio Tendler em seu afetuoso documentário). Em suma: A Chinesa adquire o status (neste sentido específico, pois o filme é muito maior do que qualquer enquadramento genérico) de registro duma juventude extremamente engajada. Por outro lado, Godard foge do simplismo ao admitir o perigo duma falta de tática revolucionária elaborada, assim como o caráter pequeno-burguês, contraditório, imperfeito mas esperançoso, dos militantes franceses dos anos sessenta. Assim, o desfecho acaba aludindo também ao que seria o Maio de 68, reconhecendo a revolta como apenas o primeiro passo pequeno dum projeto político maior.

Godard promove seu panorama político, inserido no começo de sua fase estética mais radical, através duma linguagem pop constituída por colagens, hinos sobre Mao (cômicos pelo modo como são postos), encenações de importantes acontecimentos históricos – como a Guerra do Vietnã. Amálgama de elementos cinematográficos guiados por uma montagem de preceitos eisensteinianos, do choque mesmo, desencontro do áudio com a imagem para te extrair do universo diegético da obra. Acaba chovendo no molhado, inclusive, ficar comentando esses traços formais godardianos, ou seja, a quebra de toda a narrativa clássica hollywoodiana, rompimento com a impressão de realidade - alienante por natureza. Mas são constituidoras, e por isso fundamentais para a análise, de toda a linguagem anárquica, necessária para a expressão da pólvora prestes a pegar fogo de A Chinesa. (Acho curioso observar como o estilo de atuação bretchiniano empregado por Godard acaba sendo muito mais radical e estranho do que duas resistências – muito bem sucedidas – ao star-system norte-americano: a coralidade do neorealismo italiano e o coletivismo do supracitado Eisenstein.)


Ou talvez A Chinesa me toque tanto por retomar um sentimento pouco presente em nossa era desiludidada com as utopias, em que as ideias precisam voltar a ser perigosas – como dizia nos muros de Paris. Talvez por me lembrar um pouco das mesas de bar com amigos militantes discutindo sobre Bakunin e Marx – em pleno dois mil e quatorze, há pessoa dispostas a isso, acredite. Talvez por evocar imagens do poético molotov sendo arremessado nas forças repressoras do Estado. Afinal, por me deixar com aquela remota esperança de que um dia as coisas podem mudar radicalmente. E enquanto houver pessoas dispostas a assistir e discutir Godard, terei a certeza de que nem tudo está perdido.

‘À bout de souffle’ e a estética da Nouvelle Vague, por André Maia


Escrever algumas poucas linhas sobre ‘À bout de souffle’ de Jean-Luc Godard não é tarefa fácil, tampouco pode ser uma atividade despretensiosa, tamanha a importância e o significado desse filme para a história cinematográfica francesa e mundial inaugurada nos anos sessenta do século passado com a chamada Nouvelle Vague.

‘À bout de souffle’, no Brasil traduzido por ‘Acossado’, foi o primeiro longa-metragem dirigido por Godard. O ano, 1959. Um dos marcos iniciais do movimento de renovação do cinema francês conhecido como ‘Nouvelle Vague’. Percebido pela crítica na época como um verdadeiro manifesto estético, ‘Acossado’ remete claramente às características desse novo momento de se fazer cinema na França. Momento esse com traços definidos e singulares, e que podem ser elucidados resumidamente aqui, dentro das limitações proporcionadas pelo objetivo deste texto que é o de, tão somente, fazer um breve comentário sobre o filme.

Como uma primeira característica da estética desse movimento e muito bem efetivada em ‘Acossado’ é a opção de tirar o cinema dos estúdios. A ficção cinematográfica ganha as ruas, ou seja, existe uma valorização dos cenários naturais. ‘Acossado’ apresenta a Paris de 1959 – o Hotel Suède, a Champs-Élysées, o Café La Pergola em Saint Germain de Près, a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. O filme pode ser visto como um autêntico postal da Paris de Godard.

Essa escolha de cenários naturais, as ruas e os cafés e qualquer espaço de acesso público, torna o filme de Godard bastante autoral, uma vez que as filmagens ocorrem, não por acaso, em lugares bastante familiares para o cineasta. Essa característica acentua a dimensão autobiográfica da obra.
Podemos comentar sobre a montagem agora. É lugar comum entre os críticos de cinema que Godard é seguramente o mais inovador no que diz respeito à exploração do novo em termos de expressão cinematográfica na Nouvelle Vague. Godard revolucionou a montagem em ‘Acossado’. Regras de composição clássica abolidas, plano sequência retilíneo, plano sequência circular. Elementos visíveis em ‘Acossado’

que o distingue pela ruptura técnica. ‘Acossado’ marcou a história da montagem fílmica quanto à estrutura interna das sequências, a forma de encadeamento dos planos, os saltos de imagens.
Outra característica bastante acentuada em ‘Acossado’ e que tem relação direta com a montagem e a filmagem em lugar natural é a presença dos ruídos do real. Buzinas e freios e motores de automóveis, sirenes de polícia, além do registro sonoro dos meios de comunicação significativos na época tais como o rádio e as chamadas telefônicas.

Godard, com ‘Acossado’, efetiva uma verdadeira revolução da prática da montagem no cinema.
Para a história do cinema, ‘Acossado’ é considerado um filme fundador de um estilo, de uma corrente. Um filme que reinventa a forma de filmar. É, também, considerado um manifesto na arte cinematográfica no que se refere aos aspectos estético, econômico e técnico. É a obra-prima da Nouvelle Vague.

Por fim, ‘Acossado’ representa o maior sucesso comercial de Jean-Luc Godard. Seu primeiro longa-metragem e um dos filmes mais ilustrativos da estética da Nouvelle Vague, obtendo um lugar excepcional na história do cinema. Este é um filme que representa não só o fim de uma determinada época no cinema, mas, sobretudo, o ponto de partida do cinema moderno dos anos 1960. Uma afirmação do propósito, do manifesto e do programa da Nouvelle Vague.

"Acossado", por Sâmara Carvalho



O primeiro filme de Godard representa uma grande quebra de paradigmas com o cinema convencional norte-americano. As marcas de diferentes movimentos de câmera, montagem com jump-cuts e um roteiro livre fazem o filme causar um estranhamento no espectador até nos dias de hoje - o que torna a proposta do filme ainda bastante atual.

Em Acossado, assistimos à história de Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), delinquente que, em uma de suas fugas, acaba por atirar em um policial e, por isso, passa a ser perseguido durante o filme. Nesse meio tempo, Michel encontra uma mulher de seu passado, Patricia (Jean Seberg), uma jornalista americana que está vivendo na França.

Logo nos minutos iniciais da narrativa, o personagem Michel quebra o espaço de campo do filme e se dirige diretamente ao público. Esse é um dos muitos artifícios utilizados no filme para fazer o espectador criar consciência de seu lugar de observador da história, evidenciando que aquilo que está sendo visto não corresponde a realidade – coisa que o cinema americano insiste em esconder. Os jump-cuts, como o da cena em que o casal passeia de carro pela cidade, são a ratificação disso.

Além disso, o filme foi produzido sem delimitações de roteiro (tudo que Godard tinha eram algumas anotações), deixando um espaço grande para intervenções dos próprios atores nas falas e atos dos personagens, o que contribui para o ar de revolução formalista que paira sobre a obra. Mas, ao mesmo tempo em que a forma se distancia do cinema clássico, o conteúdo se aproxima em alguns momentos. Isso é bem marcado pelas referências feitas ao longo do filme, como a Romeu e Julieta e a Renoir.

O romance de Michel e Patrícia, no entanto, é construído com base em questões existencialista – algo muito recorrente na cinegrafia de Godard. A cena em que os dois estão no quarto escancara isso para o espectador: a mulher se encontra em um dilema entre o aprisionamento de se entregar ao amor ou o seu desejo vívido por liberdade. Essa cena é marcada por diálogos poéticos e fortes, onde frases impactantes fazem a mente do espectador ir ainda além do que o filme propõe, como quando Patrícia faz reflexões sobre a sua liberdade e sua infelicidade: "Não sei se sou infeliz porque não sou livre ou se não sou livre porque sou infeliz". Michel, em contrapartida, mesmo fugido da polícia, sabe que está preso ao seu sentimento por ela. Tanto que, no fim do filme, é esse amor que vai sentenciá-lo.

Durante todo o filme, vemos que Patrícia tem o controle da situação. Isso fica bem claro quando ela decide denunciá-lo para a polícia – optando, assim, pela sua liberdade. Mas mesmo tendo feito sua escolha, ela não consegue se desprender do amor que tem por Michel e vai contar que fez a denúncia. Talvez por um desejo secreto de que ele fuja. Mas ele continua ali, mesmo tendo a oportunidade de fugir. E é aí onde o filme termina: Michel, descoberto pela polícia, é baleado e morto.
A última cena do filme revela muito sobre os personagens. Durante o filme, vemos Michel passando o polegar ao redor dos lábios – hábito que foi repetido por ele diversas vezes. Ao vê-lo morto, Patrícia – em mais uma interação direta de personagens com o espectador – olha para diretamente para câmera e repete o gesto sempre feito pelo parceiro. Ao fim das contas, isso evidencia o quanto de Michel existe nela. E ainda mais: mostra que, mesmo em sua liberdade, ela ainda está e estará presa ao seu amor.

"Uma mulher é uma mulher", por Juliana Soares Lima


"Original, jovem, audacioso e impertinente, sacodindo as normas do filme de comédia clássico". Características suficientes para Uma Mulher é Uma Mulher ganhar o prêmio oficial do júri do 11° festival de Berlim. Para não ficar atrás, graciosamente enquadrada pelas lentes apaixonadas de Godard, com quem se casara no mesmo ano, Anna Karina leva no mesmo festival o prêmio de melhor atriz, "pelas qualidades raras em atrizes iniciantes". Sua beleza, juventude e leveza, além da expressão da liberação sexual na personificação de Angela, são características marcantes na atriz em início de carreira.
Falando em liberação sexual, a personagem principal é a representação de todas as mulheres e de sua busca pelo papel na sociedade. E Godard contrapõe o tempo todo a liberação feminina com sua fragilidade: Angela faz strip-tease em um cabaret, namora com Émile mas  é a paixão de Alfred, amigo do seu namorado. Enquanto afirma sua independência ao insistir na ideia de ter um filho mesmo com a oposição firme de Émile, discute com ele sobre a beleza ou a feiura de uma mulher que chora, afirma que "nada é mais bonito do que uma mulher que chora" e que as mulheres modernas que tentam imitar os homens são idiotas por não chorarem. Decidida a ter seu bebê, e por ideia do próprio Émile, tenta ter seu filho com o terceiro membro deste triângulo amoroso. As incertezas e a indecisão de Angela diante desse triângulo nutre de comicidade todo o desenrolar do filme.
A complexidade da idiossincrasia de Angela segue em paralelo com a complexidade da montagem do jovem diretor, o filme trata-se de uma verdadeira revolução de conteúdo e forma. O som é atração a parte na obra de Godard, tirando sempre o espectador do lugar comum: a trilha sonora descontinuada, os cortes abruptos da música e o som que interrompe falas são mais marcantes aqui do que nunca. Além disso a própria encenação se dá de forma inovadora quando de repente Angela se vira para o espectador e dá uma piscadela, por exemplo, ou promove junto com seu namorado na cozinha de sua casa uma encenação direcionada aos espectadores.
O filme também pode também ser lido como uma homenagem ao musical americano. Descrito por ele mesmo como um "musical neo-realista", tornando ainda mais complexo o conjunto do filme, por tatar-se de um verdadeiro sincretismo ao juntar em um só termo um gênero essencialmente Hollywoodiano com um movimento totalmente anti-americano. "Cinéma/ Comédie/Musical" aparecem em letras garrafais no início do filme. Em uma das sequências Angela diz: "Eu gostaria de estar num musical com Cyd Charisse e Gene Kelly!". Além disso, a própria quebra da realidade exemplificada anteriormente relaciona-se diretamente com a quebra de realidade utilizada nas cenas do filme do gênero musical.

Em Uma Mulher é Uma Mulher, Godard transforma a história aparentemente simples de uma stripper num filme riquíssimo, graças à maneira com que explora a individualidade da personagem principal e graças ao seu jeito único de brincar com os diálogos, com a encenação e com a montagem.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

"Acossado", por George Santos


O que resta de Acossado nos dias de hoje? O que ele comunica a um público contemporâneo – quando jump cuts aparecem em quase mandatoriamente todo comercial de TV; quando seus protagonistas estão há algum tempo mortos ou no crepúsculo de suas carreiras; quando comédias contrapondo americanos e europeus são mais do mesmo; e quando é mais provável que a mistura de um enredo solto envolvendo gângsteres, uma atitude “esperta” e um compendium de citações de alta e paracultura seja atribuída a Quentin Tarantino do que a seu predecessor , Jean-Luc Godard?

 Surpreendentemente, para um iconoclasta artístico cuja evolução foi tão rápida e ambiciosa, Acossado é uma estréia humilde. Há algo parecido com um enredo de thriller, que é completado por uma traição, perseguição policial e um tiroteio ao fim. Há uma trilha sonora de Jazz com uma veia de filme noir encantadora, porém convencional. Há a verborragia , quase em forma de rap, perturbador e ligeiramente ofensivo, que sai dos diálogos incessantes de Belmondo, porém mesmo assim não chega a contradizer a tradição de Chandler de conversa de detetive durão “good cop bad cop”.

 Contudo, até hoje os prazeres sutis e formais de acossado não foram plenamente reconhecidos pelo público geral. Seja por acidente ou de propósito, o estilo de filmagem apressado, de baixo orçamento, de Godard produziu inovações marcantes.

Evitar a gravação de som direto e optar por fazer tudo relacionado ao áudio na pós produção, não apenas levaram uma velocidade à Orson Welles e a uma maneira inventiva de transmitir diálogos como também abriram caminho para uma mixagem radical na qual não se percebe a diferença entre o som diegético e o som imposto pelo cineasta. Da mesma forma , filmar em ambientes fechados e pouco espaçosos levou a uma nova forma de contemplação cinematográfica: o “estudo visual”, no qual uma sequencia de pontos de vista apenas ligeiramente diferentes oferece um mosaico dos muitos humores e aspectos dessas estrelas de presença extraordinária.

 No entanto, é como uma história de amor moderna que Acossado retém seu imersivo charme para os membros de outras e novas gerações. Esses anti-heróis tratam o amor como um jogo e suas próprias atitudes como máscaras descartáveis. Estão presos entre os valores tradicionais que rejeitam e as maneiras do futuro que ainda não se materializou . Soa bem atual..

domingo, 26 de setembro de 2010

"Acossado", por Ramon Dias Ferreira



A subversão sempre foi parte integrante da arte. Como um círculo vicioso, os movimentos e escolas artísticas são fadados a deparar-se, logo após seu ápice, com questionamentos que colocarão à prova sua estética e significação, para assim reinventarem-se ou abraçarem o seu ocaso. Este é um movimento natural no qual se torna possível a evolução, e coloco aqui a palavra “evolução” não no sentido restrito de aprimoramento, mas sim de surgimento de novos caminhos que, apesar de muitas vezes opostos ao seu predecessor, contribuem para o enriquecimento de sua expressão. E é nesta conjuntura de crise e recriação que se encontra a importância de Acossado.

Após o cume do star-system americano, o cinema europeu irrompe como uma resposta ao modelo hollywoodiano, que no contexto do pós Segunda-Guerra, parecia não fazer mais tanto sentido. Emerge então o neo-realismo na Itália, assim como a Nouvelle Vague francesa, que agora pensavam o cinema como uma expressão mais próxima do ser humano, e serviriam de influência para movimentos mais periféricos, como os Cinemas Novos. Mas além de uma transformação temática, a Nouvelle Vague possuiu também uma característica de revisão da própria linguagem cinematográfica. Os cineclubes e a Cahiers du Cinema já demonstravam o caráter cinéfilo surgido na França entre as décadas de 50 e 60, e foram pilares fundamentais para as discussões que precediam o nascimento da “nova onda” francesa. Surgia a teoria do autor, que retirava o diretor do seu lugar de um mero técnico e o colocava como um artista de fato, capaz de refletir em suas obras estilos próprios e singulares. E dentre estes autores, o que talvez mais tenha experimentado foi Jean-Luc Godard. Já em sua estréia com Acossado, o cineasta proporcionou inovações estéticas que rompiam com os padrões clássicos e revisavam a “gramática” do cinema. Apesar de ainda influenciado pelo cinema americano (a temática gângster, a trilha sonora noir), Godard incorporou tais aspectos a uma forma experimental que ao mesmo tempo negava o próprio modelo que o havia inspirado. Enquanto os americanos diziam “filme apenas em um eixo de 180 graus”, “mantenha a continuidade espaço/temporal”, ou ainda “é impensável o olhar para a câmera”, Godard brincava com essas convenções, em um ato antropofágico que foi muito presente nos anos 60: a assimilação da cultura tradicional para sua consequente subversão.

Contudo, Godard não recriou a gramática, mas sim adaptou-a. Ou melhor, organizou-a de maneiras diferentes. Todas as ferramentas que caracterizam a linguagem cinematográfica estão presentes: os planos abertos, médios e close-ups, os travellings e pans, entretanto, ajustados de uma maneira distinta. Um dos exemplos mais famosos dessa nova “práxis” criada por Godard foram os jump-cuts: cortes rápidos e secos que excluíam o “tempo morto” dentro das cenas. Esse recurso causou forte estranhamento na época, pois apesar dos cortes, os planos mantinham os mesmos cenários, ângulos de câmera e posição de atores dos planos anteriores, algo impensável para os moldes tradicionais. Mas a despeito desse cinema evidenciar o seu caráter enquanto artifício, ocasionando um distanciamento com o público, há os que defendem que essa reinvenção aponte para uma experiência fílmica mais intensa. Em sua idéia de continuidade intensificada, David Bordwell argumenta que desde meados da década de 60, os cineastas desenvolvem um maior repertório de recursos narrativos, num processo gradual que visa uma intensificação na percepção do espectador. Desse modo, pode-se fazer um paralelo entre Godard e outro cineasta de grandeza “inversamente proporcional”: D. W. Griffith. Enquanto Griffith é considerado o responsável pela organização sistemática dos recursos estilísticos que caracterizam a narrativa clássica, Godard foi aquele que “desconstruiu” esses recursos e os re-arranjou de maneiras distintas. O que mudou então não foi o princípio na estrutura narrativa, mas as ferramentas que a constroem.

Completando o círculo citado no início do texto, a Nouvelle Vague perecia à medida que a década chegava ao fim. O mundo havia se transformado, e as questões problematizadas por esses cineastas já não eram mais tão vanguardistas. Emergia nos Estados Unidos a “New Hollywood”, incorporando em suas obras muitas das inovações propostas pelos franceses, assim como estes incorporaram conceitos americanos. Hoje, pode-se perceber claramente o impacto da Nouvelle Vague no cinema de Tarantino ou Guy Ritchie, ou até mesmo no nacional Cidade de Deus. E é por esta fórmula, “vanguarda transforma a tradição, tradição assimila a vanguarda”, que a arte se pluraliza.

sábado, 25 de setembro de 2010

Bande à part, por Lucas Simões


Lucas vê "Bande à part".
Lucas destrói o teclado.
Anna Karina anda de bicicleta.
Lucas perde o foco.
Lucas fica "à bout de souffle".
http://www.youtube.com/watch?v=YVeex4GpQP4
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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"Bande à part”, por Ana Lúcia Diniz



“ Para os atrasados que agora chegam, oferecemos umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: três semanas antes. Um monte de grana. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica” Essa frase, dita pelo narrador no início do filme, pode servir como um resumo da história que é contada em “Bande à part” (1964), de Jean-Luc Godard.

Parece simples, não é? De fato, o filme segue uma narrativa linear e não oferece grandes dificuldades de compreensão, principalmente se comparado a outras obras mais herméticas e pretensiosas do diretor. No entanto, se a frase dita pelo narrador pode servir para resumir a trama, não sintetiza , paradoxalmente, o filme. Não se trata aqui de uma escassez de palavras, é possível, seguindo a mesma ideia contida na frase , citar inúmeras outras: Dois rapazes. Três amigos. Odile, Frantz e Arthur. Um roubo. Um triângulo. A França... E ,por mais que essas palavras ajudem a completar o resumo da trama, não chegam nem perto de definir a experiência de assistir a este filme. É necessário vê-lo, é indispensável senti-lo.

Se, por um lado, a história é uma espécie de homenagem aos clássicos de gângster que Godard tanto gostava, por outro, como típica produção de um período de ruptura e redefinição que é a Nouvelle Vague, o filme também tem um caráter experimental e inovador em diversos aspectos. Em “Acossado” (1959) - outro filme de Godard aproximadamente da mesma época - o experimentalismo é enfatizado fundamentalmente no plano da imagem; tem-se, portanto, uma montagem inovadora, a exemplo da cena da perseguição de carro em que se utiliza pela primeira vez uma técnica chamada de “jump cut”: quando cortes consecutivos na imagem conseguem acelerar o ritmo da trama e paralelamente quebram a sensação de continuidade. Já em “Bande à part” o caráter experimental é perceptível principalmente no plano sonoro, talvez por isso se tenha a sensação de que as inovações nesse filme são mais sutis do que em “Acossado”.

Uma cena icônica - exemplo dessa ruptura - é quando os três personagens principais resolvem fazer um minuto de silêncio que é intensificado pela retirada total do som, inclusive dos ruídos do ambiente. Godard destrói , assim, o realismo e faz o silêncio transcender o plano ficcional. Outra cena em que a inovação se dá de maneira oposta mas também genial é quando Franz (Sami Frey) finge atirar em Arthur (Claude Brasseur), usando o dedo como revolver. Em vez da retirada, como na cena citada anteriormente , ocorre a inserção do som de um disparo, algo no mínimo ousado e que também questiona o conceito de realidade presente na trama.

É possível notar que, apesar de uma narrativa a princípio despretensiosa, “Bande à part” possui cenas que ficaram marcadas na história do cinema. Algumas delas serviram, inclusive, de inspiração a outros artistas. Bernardo Bertolucci em “Os Sonhadores” (2003) homenageia Godard quando os três protagonistas do seu filme ,Théo, Isabelle e Mathew, também correm pelo Louvre com o intuito de quebrar o record justamente conquistado pelo trio de Bande à part. Quentin Tarantino, além de colocá-lo como nome de sua produtora, é bastante influenciado por ele em “Pulp Fiction”(1994), pois a cena em que Uma Thurman dança com John Travolta é uma referência direta à do trio de Godard.

Essa cena em que os três personagens dançam no bar é influência não apenas para diretores de cinema, mas transcende ao ambiente da música e, inclusive, ao mundo televisivo. A banda Nouvelle Vague utilizou essa sequência como clipe da música “dance with me” e recentemente a série de televisão brasileira “ Aline” (2009) refilmou a cena ao som de “You Know I'm No Good” ( Amy Winehouse) com Pedro Neschling, Bernardo Marinho e Maria Flor incorporando o trio.

As cenas em “Bande à part” de fato encantam. A sensibilidade e delicadeza com que os personagens são filmados faz com que o espectador tenha prazer em observá-los nos mínimos detalhes. Anna Karina, esposa de Godard à época, que interpreta Odile, é filmada como se a câmera estivesse apaixonada por ela, seus olhos, no filme, aparecem realçados de tal maneira que é possível decifrar os sentimentos da personagem através deles.

Há quem diga que muitos filmes de Godard são verdadeiras aulas de cinema; em “Bande à part”, no entanto, em vez de aluno, o espectador se sente uma espécie de “cúmplice”. Cúmplice, claro, dos personagens no planejamento do roubo, mas – principalmente - cúmplice do diretor no ato de fazer cinema, descobrindo em sutilezas a metalinguagem que é recorrente nas obras de Godard e que torna esse filme encantador.

"Acossado" por Lucas Freire


“Uma pessoa sente-se tão só num set de filmagem,
como diante de uma página em branco”¹
Jean-Luc Godard


Se existe uma palavra que capta toda a essência do filme Acossado (1959) do então jovem diretor Jean-Luc Godard é essa: ruptura. Acossado rompe com diversas barreiras estilísticas, inova na estética, surpreende no roteiro, e tudo isso ocorre no início dos anos 60, década essa na qual o cinema clássico americano e o cinema conservador francês se encontravam profundamente consolidados no âmbito cultural e nas ditas indústrias cinematográficas.

No filme, acompanhamos a rotina de um típico deliquente francês, Michel, que não possui grandes pretensões, aparenta estar alheio à sociedade e vive de pequenos golpes. Porém, logo ao início da trama, a ação que transcorrerá todo o filme nos é mostrada: por causa do roubo de um carro, Michel (o feio-bonito-charmoso Jean Paul Belmondo) acaba baleando e matando um policial que o perseguia, a partir daí, o protagonista passa a fugir da polícia. Nesta fuga, Michel revê algumas garotas do seu passado até encontrar a belíssima Patrícia (interpretada pela Jean seberg), uma jovem garota americana que sobrevive escrevendo artigos e vendendo exemplares do New York Herald Tribune em plena Champs-Elysèe.

Lendo-se apenas a sinopse, é comum imaginar que Acossado seja apenas um filme de perseguição policial. Sua relevância não se encontra na simples história, mas sim na forma que foi produzido e elaborado todo o projeto cinematográfico. O filme transgride em todos os setores: desde a elaboração do roteiro, no qual François Truffaut (ainda amigos) concedeu a ideia a Godard, até a sua montagem.

Acossado não possuía de fato um roteiro, Godard tinha em mãos a ideia inicial e um amontoado de anotações. Eis então que ele decide ir para o set de filmagens sem um roteiro pronto, sem delimitações. Daí surge a primeira ruptura com os roteiros tipicamente americanos, nos quais tudo está explicitamente destrinchado, cada plano, cada fala, cada posicionamento está dentro dos limites do roteiro. Godard passa por cima de tudo isso e parte para as filmagens sem quaisquer amarras no roteiro. A livre inspiração era o ponto dominante.

Godard, na direção dos atores, mais uma vez opta pela liberdade de atuação. Contrariando novamente os ditos cânones do cinema americano, nos quais os atores são presos a marcas, posicionamentos, expressões faciais, controlando então cada pulso do artista, Jean-Luc Godard desenvolve um trabalho de atuação com Belmondo e Seberg que os permite fugir do texto livremente, deixando-os aptos a improvisar dentro das cenas.

Talvez na montagem tenha ocorrido a inovação mais notória para a sociedade da época. Godard utiliza os hoje famosos (graças aos videoclipes e filmes de ação) jump-cuts e o falso raccord que ainda hoje é visto como um erro cinematográfico. O jump-cut consiste no corte abrupto da cena durante uma ação do personagem. Quando nos grandes estúdios cinematográficos usavam a montagem de forma que não quebrasse de maneira alguma a continuidade da ação, Godard ignora tudo isso usando de jump-cut, como na famosa cena do carro, na qual Michel e Patrícia passeiam de carro por Paris, admirando diversas paisagens sequenciadas. O uso dessas técnicas na montagem tem um propósito claro. Godard nos quer evidenciar que aquilo que é visto no cinema não se trata da realidade, realidade essa que o cinema clássico vigente na época tentava passar para a sociedade. Esses artifícios de edição quebram com a ideia do cinema ilusionista tão difundido pelos grandes estúdios e disseminam uma nova ótica diante da edição cinematográfica.

Devido ao uso dos jump-cuts e da improvisação proposital dos atores, o filme todo possui um ritmo acelerado, dinâmico, bem característico dos filmes de perseguição. Somente em um momento essa velocidade da trama é quebrada: na cena em que os dois protagonistas, Michel e Patrícia, estão no quarto, fumando, divagando sobre histórias, idéias e questões da vida. Esta cena caracteriza bem a nova estética proposta por Godard. Nesta conversa, pode-se compreender o existencialismo presente no personagem Michel, e sua necessidade de se afirmar na sociedade (vide os momentos em que ele mente para si mesmo, criando histórias e fatos da sua própria vida). Em meio a tudo isso, citações explícitas de pintores e escritores clássicos confirmam um aspecto intertextual. É nesta cena então que Godard propõe uma fusão entre a pós-modernidade (jumps-cuts, improvisação, desprendimento com o roteiro) e o clássico(temática comum, valorização das artes clássicas).

Pode-se dizer que várias dessas inovações só ocorreram graças às precárias condições da produção, mas isso não tira de forma alguma os méritos de Godard e sua equipe. Muito pelo contrário, só evidenciam mais uma inovação: a capacidade de fazer filmes de qualidade sem seguir qualquer regimento clássico do cinema. Por esses e por muitos outros motivos, Acossado contribuiu e ainda contribui para a cinematografia mundial. Quanto a Goddard, eliminou barreiras estilísticas e criou diversas outras teorias que hoje servem de estudo para todo o mundo. Quanto a Acossado, deixou de ser apenas um filme para então compor um fato histórico do cinema mundial.

Bibliografia:
EBERT, Roger. (2005). Grandes filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, pp. 33-37.
TIRARD, Laurent. (2002). Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, PP. 239-252.

Webgrafia:
http://www.accirs.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=84:um-classico-para-sempre-moderno-acossado-1959&catid=39:revendo&Itemid=65¹

quarta-feira, 17 de junho de 2009

“O meu nome é Ferdinand” por Olivia Souza


Do grupo da Nouvelle vague, Jean-Luc Godard foi o mais militante. Comprometido até o osso com uma filosofia transgressora, procurava em seus filmes romper parâmetros estabelecidos através da experimentação, desconstruindo mitos da dramaturgia hollywoodiana, visando uma linguagem própria, não-linear, abarcando um mundo de referências em seus filmes. De todos eles, Pierrot le Fou – aqui traduzido como O Demônio das Onze Horas, foi um dos mais cultuados. Nele, podemos ver as características de um road-movie, diferente porém, misturando o thriller policial com o melodrama, o documentário e o musical, incluindo até mesmo elementos metalingüísticos.

Ferdinand Griffon (Jean Paul Belmondo) é um produtor de TV desempregado, vivendo uma vida tediosa de aparências com uma esposa chata, que quer a todo custo moldá-lo de acordo com as exigências de sua família. Ele não concorda com isso, mas aceita passivamente, de modo que chega a conclusão de que desconhece a si próprio. E no meio disso tudo surge Marianne Renoir (Anna Karina), um antigo amor que reaparece em sua vida de maneira inesperada. Convidado para uma festa na casa dos sogros, Ferdinand e sua esposa deixam os filhos aos cuidados de Marianne, que coincidentemente era sobrinha de seu cunhado.

Após perder a paciência durante a festa, Ferdinand volta pra casa, encontra Marianne e lhe oferece uma carona. No caminho relembram seu antigo relacionamento e se dão conta de que ainda são apaixonados, um pelo outro. Esse é o ponto de partida da história, o ponto em que Ferdinand buscará romper com a vida medíocre a qual é prisioneiro.

Assim como em Acossado ou Banda à Parte, Pierrot le Fou tem uma história basicamente simples, importando então a maneira de contá-la. Godard costumava dizer que suas histórias serviam apenas como pretexto para que ele pudesse inserir suas próprias idéias. Dessa forma, procurava atacar a ideologia predominante na linguagem cinematográfica, virar do avesso, confundir e questionar.

As referências são utilizadas para serem postas em contradição. Um exemplo muito claro disso no filme é o elemento do melodrama, já bastante conhecido pelo público e exaustivamente utilizado pela indústria norte-americana de cinema. Tentamos enxergar Ferdinand e Marianne como um casal apaixonado, mas Godard consegue desconstruir a idéia de amor romântico. Salvo alguns momentos poéticos, conseguimos vê-los mais como uma dupla de parceiros no crime do que qualquer outra coisa. Ambos são frios, não há juras de amor eterno, para eles tudo é incerto.

O papel do homem e da mulher é totalmente invertido dentro da narrativa. Enquanto Ferdinand passa a maior parte do tempo lendo, filosofando, escrevendo e questionando tudo – inclusive a si mesmo –, é Marianne quem toma a frente em várias situações, racionalizando as possíveis soluções. Seu apartamento está cheio de armas, é ela quem quebra a garrafa na cabeça do tio – pois Ferdinand desiste por falta de coragem. No final das contas, é ela quem o abandona.

Ferdinand é a própria incapacidade do protagonista em ser o herói. O personagem não tem um objetivo estabelecido, apenas se deixando levar pelas conseqüências das situações. Ele não sabe bem quem é e nem a o que veio, e também não toma nenhuma atitude visando uma possível tentativa de reencontro com o seu “eu verdadeiro”. A repetição exaustiva da frase “eu me chamo Ferdinand” (Je m’apelle Ferdinand) toda vez em que é chamado de Pierrot por Marianne é uma mostra desse desencontro consigo mesmo. Ao rejeitar ser chamado de Pierrot, Ferdinand mostra ainda estar preso à vida tediosa de produtor de TV e do casamento infeliz. Apesar disso, quer, sobretudo, que esse Ferdinand produtor de TV – e não o Pierrot louco – assuma os riscos de seu amor por Marianne. Acaba não sendo uma coisa ou outra.

As referências ao cinema, à literatura, à poesia e aos próprios símbolos do capitalismo são características do cinema godardiano e em Pierrot não é diferente. Ao gritar para o frentista “pôr um tigre” em seu carro, nos deparamos com a campanha publicitária dos combustíveis Esso, muito popular na época e que tinha um tigre como mascote. O truque do Gordo e o Magro, utilizado por Marianne para derrubar um dos frentistas, é mais uma dessas referências. Os 50 mil dólares queimados dentro do Peugeot representam um golpe simbólico à hegemonia norte-americana. As citações à Balzac, Baudelaire e Velásquez, inclusive o próprio sobrenome da protagonista (Marianne Renoir).

Fora esses elementos simbólicos há outras referências, muitas delas ligadas aos diferentes gêneros cinematográficos. As cenas de luta lembram as comédias-pastelão; as cômicas e constantes fugas e perseguições ao longo do filme são características do cinema mudo.

A divisão do filme em capítulos com a inserção de intertítulos – narrados em off pelo protagonista – é também característica do cinema mudo. A fragmentação da narrativa buscando uma fuga à linearidade dava uma idéia de unidade ao filme, que culminava com o último capítulo: a morte de Marianne e o suicídio de Ferdinand, fechando a história.

É essa ausência de compromisso com os conceitos pré-estabelecidos do cinema comercial – sua beleza plástica em detrimento à “feiúra” da condição humana – a principal característica dos cineastas da Nouvelle vague. Elementos que, jogados numa narrativa não-linear e fragmentada como a de Godard, acabam enfim nos fazendo questionar paradigmas – modelos sedimentados em nossas mentes – a respeito do “fazer cinematográfico”.

terça-feira, 16 de junho de 2009

"Cartão de visitas" por Wesley Prado


Considero-me uma vergonha como cinéfilo. Desconheço boa parte dos filmes ditos clássicos. Diretores, aqueles também clássicos, conheço da maioria apenas o nome, de tão idolatrados pela 7º Arte. Antonioni, Fellini, Truffaut, Bergman, ainda são um mistério para mim. Ao menos Godard já não é mais depois que vi “O Demônio das Onze Horas” (1965).

A abertura semelhante a um jogo de forca me chamou logo a atenção. Era como se Godard estivesse me dizendo “Você vai descobrir este filme aos poucos, com calma, como num jogo de forca”. Resolvi adotar o conselho.

O Pierrot do título original é Ferdinand, um sujeito meio abobalhado, cansado da futilidade da vida. Godard, ao mostrar esse cansaço, cria uma espécie de bizarra publicidade, ironizando o consumismo em vermelho, verde, azul e amarelo. “Para querer algo é preciso estar vivo”, diz Ferdinand. O choque existencialismo x individualismo abre a discussão e conduz a narrativa em diferentes tons ao longo do filme.

Ferdinand se envolve inusitadamente com uma jovem chamada Marianne. Enérgica e dominadora, ela o leva, como uma criança, numa fuga embasada no limite entre normalidade e absurdo. Godard exibe uma realidade-fantasia muito mais marcante que qualquer efeito especial de hoje.

Numa trilha sonora fragmentada, alternando silêncio e música, Ferdinand e Marianne vão levando uma vida de Bonnie e Clyde, fugindo e roubando para sobreviver, e continuar fugindo. Em meio a essa jornada francesa, Godard ainda encontra tempo para falar de Guerra Fria; com o mundo dividido e pessoas cansadas, através da metáfora da lua.

Cansados de tanto fugir, o casal encontra o paraíso, um pedaço esquecido da França que parece desligado das responsabilidades do mundo real. Mas essa vida onírica também cansa. Robinson Crusoé também queria sair de sua ilha. Marianne, a “My Girl Friday” nos cadernos de Ferdinand, não suporta mais tanta calmaria. Calmaria esta que oferece tudo o que Ferdinand precisa. Essa discordância é inevitável, já que ela é a necessidade de emoção, enquanto ele é a lógica da necessidade.

Nessa busca por emoção, Marianne arrasta seu Pierrot., Le Fou (O Louco), cuja maior necessidade é a presença dela em sua vida. Poucas vezes a expressão “a vida é um filme” foi tão bem desenhada no cinema como na relação desse casal, reforçada na brincadeira de Godard com o néon “Cinema Riviera” e “vie” (vida, em francês).

O cansaço abraça essa obra, especialmente na figura de Ferdinand. Aliás, vale dizer que o filme cansa um pouco a quem o assiste por seu ritmo cortado e sua atmosfera fora do real. Se a MTV existisse nos anos 60, Godard seria um dos pais do videoclipe com “O Demônio das Onze Horas”. Não tem como não imaginar uma batida pop na cena em que Marianne corta o ar com uma tesoura. Ainda assim, seria um clipe lento. Paradoxal, não? O excesso de planos abertos, paisagísticos, colabora com a sensação de lentidão. Talvez tudo isso seja culpa das idéias da Nouvelle Vague francesa. De qualquer modo, “O Demônio das Onze Horas” me foi um ótimo cartão de visitas sobre Godard. E quando um filme desperta a curiosidade por outros trabalhos de seu diretor, ainda mais quando se trata de Godard, isso só aumenta seu valor.

sábado, 13 de junho de 2009

"As sobrancelhas de Godard" por Paulo Faltay




A história não segue uma linearidade, é descontínua, formada por interrupções e curvas abruptas. Em meio à fuga empreendida por Ferdinand e Marianne em “Pierrot, le Fou”, após ser provocado pela personagem de Anna Karina, Ferdinand gira a direção do carro, escapando da estrada e conduzindo o automóvel ao encontro das águas de um rio. Para Godard, a máxima marxista vai além da História; a vida, o cinema e a sua narrativa também não obedecem a uma arbitrariedade linear, são estruturados por interrupções. Afinal, no próprio tema da evasão, que dá início ao filme e é presença recorrente nos filmes do diretor, como Acossado, Viver a Vida e Alphaville, está contida a ideia de abandono a fórmulas pré-concebidas de se viver/contar uma história.

Para Robert Stam, o uso de interrupções na narrativa é um dos mecanismos que ele conceitua como anti-ilusionistas. Com fundamentação teórica no teatro de Brecht, que inseria em suas peças elementos que explicitavam o próprio processo de produção das apresentações, essas técnicas seriam usadas para quebrar o espetáculo e a suspensão fantasiosa da realidade, e retirar o espectador da confortável posição de receptor. Esse efeito de distanciamento, chamado de Verfremdungseffekt pelo encenador, tornaria evidente à plateia que ela está diante de uma obra de ficção, quebrando, assim, a acomodação criada por uma ilusão diegética, e terminaria por provocar um exercício reflexivo sobre a narrativa.

Não por acaso, as obras de Godard são dos objetos de estudo mais caros ao crítico. E Pierrot, que Stam vai caracterizar como uma “suma das artes”, por suas inúmeras referências a diversas manifestações artísticas, também pode ser definido como suma dos artifícios autorreflexivos e anti-ilusionista no cinema. Logo no começo, é citado o pintor espanhol Diego Velázquez, conhecido por suas pinturas carregadas de autorreferência e jogos de espelho. A citação é, na verdade, um aviso do que viria a seguir.

Entre as diversas quebras da narrativa no filme, pode-se destacar a divisão não-cronológica dos capítulos que dividem o filme, a descontínua sequência de fuga do apartamento de Marianne, com planos fragmentados e temporalidade contraditória, além das autorreferências explícitas. Em uma passagem do filme, após Marianne sugerir que eles se divirtam em um hotel de classe, Belmondo vira a cabeça, se dirige à câmera e diz: “Tudo no que ela pensa é diversão”. Questionado por uma confusa Marianne, desejando saber com quem ele falava, o personagem de Belmondo responde: “a plateia”. Em outro momento, para confundir a polícia, o casal forja um acidente, no que Marianne pondera: “Tem quem parecer real. Isso não é um filme”. Por fim, em uma sequência canônica do cinema, Anna Karina chega a posicionar a tesoura em frente à câmera, em alusão clara ao corte de cena.

No entanto, mesmo reconhecendo, e louvando, o caráter reflexivo e as questões apresentadas em Pierrot, permaneço com uma inquietação em relação ao filme. E a resposta para a sensação pode ser encontrada no início da produção. Em meio à atmosfera superficial de uma reunião burguesa em que é intimado pela mulher a comparecer, Ferdinand se encontra, em mais um artifício autorreferente, com Samuel Füller. Ao ser perguntado sobre o que seria o cinema, o diretor responde: “um filme é um campo de batalha: amor, ódio, violência, ação, morte, - em uma palavra, emoção”! Meu incômodo é justamente esse: Pierrot não me desperta nenhum pequeno indício de emoção.

É tudo excessivo, afetado em demasia, e acaba por se revelar superficial. A irritante característica totalizante está presente na brincadeira com os gêneros cinematográficos, na abordagem política e nas referências artísticas. No misto de homenagem com paródia crítica, Pierrot desloca-se em praticamente todos os gêneros: de filme de gangster, road movie, sozinhos-em-uma-ilha-deserta, a uma pitada de comédia romântica com cenas musicais, que até me surpreende o fato de Marianne e Ferdinand não terem uma cena de encontro com Alpha 60. As abordagens mais políticas – a mediocridade da burguesia, os aviões com napalm da guerra do Vietnã, a ridicularização de signos capitalistas, a situação da política francesa, se mostram, na verdade, de pouca profundidade.

E tudo isso me soa ainda mais estéril na caracterização de “suma das artes”. As inúmeras citações – Jack London, Velázquez, Robert Browning, Balzac, Baudelaire, Picasso, histórias em quadrinhos – não parecem dizer nada, soando vazias e fruto de uma egotrip do repertório artístico do diretor. Infelizmente, não consigo fugir do lugar-comum de que esse exercício self-conscious não está a serviço de uma expressão puramente egóica. Essa sensação é ainda maior quando ele próprio se autorreferencia: no momento em que Jean Seberg aparece na tela do filme-dentro-do-filme, nos remetendo imediatamente a Acossado. E nesta brincadeira extremamente nerd, prefiro muito mais encontrar as inúmeras referências à Odisséia de Homero em Lost. É mais inusitado, e, por isso mesmo, mais divertido.

Pierrot se revela para mim nessa dualidade. Por um lado, ele se apresenta como uma obra rica em elementos que marcaram, mudaram e revigoraram o cinema e que permitem pensar o fazer cinematográfico. Por outro, é um filme que pouco me toca, chego mesmo a ter certa repulsa pelos seus excessos. Entretanto, assim como o diretor, também gosto de uma citação. Recorro então a Charles Bukowski.

Em seu livro Hollywood, coincidentemente marcado pela metalinguagem e autorreferência, o escritor relata o encontro do seu alter-ego com um certo cineasta francês, chamado Jon-Luc Modard. Da conversa, Bukowski conta: Jon-Luc continuava falando. Mostrava se dark e bancava o gênio. Talvez fosse um gênio. Eu não queria ficar ressentido com isso. Mas já tinham me haviam empurrado gênios durante todo o tempo de escola: Shakespeare, Tolstói, Ibsen, G.B. Shaw, Checov, todos esses chatos. (...) A bebida jorrava e Jon-Luc continuava falando. Tenho certeza que disse muitas coisas espantosas. Eu me concentrava apenas nas sobrancelhas dele...”.

Enxergo Godard dessa maneira também. Tenho convicção de que o diretor e seus filmes versam sobre coisas fantásticas e incitam discussões ricas, mas prendo a minha atenção apenas nas suas sobrancelhas. E elas são, no meu caso, a dança de Bande à Part, a adorável canastrice do rosto de Belmondo (e o inseparável cigarro no canto da boca) e, com destaque especial, a melancólica e sublime dança solitária de Nana em Viver a Vida. É só nisso que consigo me concentrar.

terça-feira, 5 de maio de 2009

"A Vida e o Cinema sob o Olhar Godardiano" por Ingrid Maiany


“Esse é um tempo de homens partidos”, disse Carlos Drummond de Andrade na segunda metade do século XX. Jean-Luc Godard o sabia bem. Seus filmes são verdadeiros quadros cubistas de colagens, repletos de atomizações que beiram o hermetismo. Causa, talvez, da polarização de opiniões acerca de seu trabalho, que, se costuma ser amado ou odiado, tem em “Pierrot, Le Fou” um de seus poucos consensos: gosto.
A inquietação começa no primeiro segundo. Ao som da música de Antoine Duhamel e Antonio Vivaldi, surge na tela em ordem alfabética o letreiro de abertura. Letra por letra, os créditos iniciais são um prenúncio da fragmentação desse indisciplinado road-movie, repleto de alegorias e transgressões. Alegorias que começam no irônico “melhor dos mundos” de Voltaire, estampado na banca de revistas, e desembocam num retrato da vida de Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmond), pintado através de uma análise de Velásquez, em que o espaço reina supremo e não há interrupção de choques ou sobressaltos.

Ora, gauche em um meio mesquinho de mulheres que recitam propagandas de produtos de beleza e homens que explanam sobre modelos de automóveis, Ferdinand abraça sua loucura antes que seja tarde demais. Loucura que bate à sua porta sob a forma de uma antiga paixão, Marianne de Renoir (Anna Karina). E, nas palavras de Oswaldo Montenegro, quem vai dizer ao coração que a paixão não é loucura? Por conta do sentimento que o entrelaça à Marianne, o louco Pierrot envolve-se numa trama de nós descontínuos sobre contrabando de armas, dinheiro sujo e mortes.

Pierrot, Le Fou é iconoclasta e marginal. Uma miscelânea de cinema mudo, comédia pastelão, thriller policial, musical, melodrama e documentário que questiona o que é o cinema, para depois contrapô-lo à vida. “Isso é a vida para você”, diz Ferdinand, “Isso não é um filme”, diz Marianne, ao passo que, mais à frente, ambos dialogam com a platéia. Como solucionar esse paradoxo godardiano? Talvez, assim como Clarice Lispector, Godard queira uma realidade inventada – ou reinventada, tal o amor. Vida e cinema são metalinguagens para o cineasta; se misturam, se completam, se confundem, do mesmo modo que as vozes de Marianne e Ferdinand narram juntas o filme. “Cinema é, em uma só palavra, emoção”, afirma o especialíssimo Fuller. Pois, emoção pura é também viver.

Godard é avesso às regras, no melhor estilo Nouvelle Vague. Faz uso de quebras de linearidade, prioriza idéias em detrimento à história, brinca com o destino das personagens, usa um protagonista sem objetivos claros, apresenta os figurantes para o espectador, prima pelo excêntrico e pitoresco. É autor de seu filme, livre e onipotente. Ferdinand e Marianne estão sempre se perguntando “E agora?”, “O que vou fazer?”, e, de súbito, abandona-se a linha reta da estrada para lançar um carro ao mar: “Posso fazer o que eu quiser”.

A trajetória cigana é permeada por citações indiretas de outros filmes de Godard, tais Acossado e Viver a Vida, bem como diretas de Balzac, Baudelaire, Conrad, Stevenson, JackLondon; Paris Match e Renoir; Pé Níquel e Picasso; ícones históricos como Leonov e White II; críticas a ESSO, a Coca-Cola, à Guerra do Vietnã e ao capitalismo americano; o Gordo e o Magro, Johnny Guitar e Robinson Crusoé; letreiros luminosos e divisões da história em capítulos. Sincretismo pop e clássico, pedacinhos de cultura que nos tornam homens duplos, quádruplos, múltiplos, passíveis ao sim. Sim que traz muita coisa ao mesmo tempo para Ferdinand e Marianne e que torna tudo tão complicado.

Os dois personagens são antagonistas, não se entendem, não se sabem mútua e reciprocamente. Marianne tem um quê da Capitu machadiana: olhos de ressaca, que dissimulam e transmitem verdade de forma simultânea; desejo de viver em plenitude; defesa do sentimento. Ela comanda, é ativa, planeja, executa, anseia, encanta. Ferdinand, por sua vez, é um contemplador, um homem de idéias e, assim como Bentinho, apático e inseguro. Se na obra do grande escritor brasileiro existe uma dúvida acerca da possível traição, na película de Godard a resposta que falta é sobre o amor entre os protagonistas. Marianne não fala sobre si mesma, Ferdinand é um ponto de interrogação sobre o Mediterrâneo. Eles não podem jurar amor eterno, visto serem fugazes. São “um amor sem amanhã.”

“Somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós”, ao findar-se o primeiro e único sonho de Marianne e Ferdinand, Pierrot, o Louco, entra em desespero e dinamita a própria cabeça. Mais uma vez filme e vida se interpõem num final triste, porém belo. Eles encontram a eternidade na única linha verdadeiramente reta do mundo, que, todavia, não passa de uma ilusão: é apenas o sol e o mar. “Terno e Cruel. Real e Surreal. Terrível e Divertido. Noturno e Diurno. Sólito e Insólito. Pierrot Le Fou”.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

"Entre a cinefilia e o manifesto" por Hugo Viana


Jean-Paul Belmondo representava, nos anos sessenta, a emergência transgressora da juventude que amadureceu em tempos de guerra. Em Acossado (1960), no papel de Michel, ele rouba carros, atira num policial e fica com a personagem de Jean Seberg. Um anti-herói romântico que “vive perigosamente até o fim”, como antecipa um cartaz durante a projeção. É a pessoa ideal para exprimir a irreverência despreocupada de Godard e atacar a velha guarda do cinema francês, ao dizer que o ator Maurice Chevalier é “o mais puto de todos os franceses”. O rosto de Belmondo, algo entre a simpática desarmonia estética da fisionomia de Jean-Pierre Léaud e a mistura épica entre charme e cinismo de Clark Gable, ilustra a dicotomia presente em Pierrot le Fou (1965), de Godard – a vontade de explorar o novo e de reverenciar o clássico.

Em determinado momento do filme, sem nenhum motivo aparente, Marianne (Anna Karina) começa a cantar para Ferdinand (Jean-Paul Belmondo). A beleza gratuita desse ato é um elogio melódico aos musicais americanos, que tinham nas canções-surpresa desvios calculados na narrativa. Em seguida, a representação muda de ritmo e encena um thriller policial. A câmera revela que há, no apartamento dela, um sujeito deitado de costas, com uma tesoura enfiada no pescoço, e algumas caixas de metralhadoras ao fundo. Do musical ao suspense, do road-movie romântico ao “sozinhos-na-ilha-deserta”: ao ser interpelado por Marianne, durante uma fuga, Ferdinand gira o volante e joga o carro no mar. Ferdinand não foge em linha reta e Godard não repete fórmulas narrativas.

O filme de Godard corre por desvios inesperados. Vai e volta, muda e improvisa, pensa e tem seriedade o suficiente para rir de si mesmo. Pega atalhos por referências culturais diversas, sendo o cinema a base mais óbvia e necessária. Da literatura de Balzac a histórias em quadrinhos, de pinturas de Renoir a filmes de Nicholas Ray. “Você deixou a empregada ir ao cinema de novo? É a terceira vez nessa semana”, reclama a mulher de Ferdinand. “Claro que deixei. Está passando Johnny Guitar, é bom para a educação dela”, diz Ferdinand, recita Belmondo e explica Godard. História da arte, cinema clássico, música pop. Godard mistura tudo numa sequência de imagens que é tanto reflexão sobre como construir um discurso cinematográfico livre da austeridade dos filmes de estúdio quanto uma declaração de amor ao cinema como expressão artística.

Analisar Pierrot le Fou a partir de conceitos fílmicos conservadores, que discutem a narrativa sob o olhar cansado da lógica e da linearidade, impede a fruição pelo viés assumido de filme-cinéfilo que aparece em cada cena. Ao mesmo tempo em que narra um longa-metragem que reverencia o cinema clássico, Godard aponta novas possibilidades cinematográficas. Linguagem revolucionária para discurso inovador. O corte é quase uma entidade palpável. Se normalmente a ligação entre um plano e outro seria mascarada por raccords, com a falsa sensação de continuidade, em Pierrot le Fou ele está na cena, ao lado de Belmondo e Anna Karina. A parte em que Ferdinand e Marianne escapam da casa dela é um belo exemplo. É uma sequência desconexa de planos, que tem os momentos banais suprimidos e as explicações jogadas fora. A compreensão vem do ritmo e do sentimento que compõe as imagens.

Ou então quando o casal encena uma peça de teatro para arrancar dinheiro dos turistas (ou “escravos modernos”, como define Godard). Ferdinand se veste como um oficial americano, Marianne como uma chinesa. É quando o filme assume posicionamento político, já que eles representam a Guerra do Vietnã. Enquanto a mão de Ferdinand simula um avião, e fósforos metaforizam bombas, o som externo acompanha a ideia. Quando há o “confronto” entre os dois personagens – “o sobrinho de Tio Sam contra a sobrinha do Tio Ho”, explica Godard, numa cartela – diante dos gritos de Ferdinand, o diretor coloca uma imagem do tigre-marca do posto Esso, e barulhos de balas quando aparece o nome “Esso”. Nesse instante, a montagem política lembra as experiências de Eisenstein, de formatar um discurso ideológico através do choque de imagens.

Forma e conteúdo se tornam passíveis de reordenações, debates e argumentações lúdicas que refletem a inquietação da Nouvelle Vague. Inquietação que formulou críticas a certos filmes franceses e aos dinossauros que se enraizaram lá. Inquietações que estavam também nos elogios/homenagens ao cinema de autor praticado por alguns dentro de Hollywood.

A homenagem mais evidente ao cinema americano aparece ainda no primeiro ato. Belmondo/Ferdinand não é mais um jovem que “vive perigosamente até o fim”. Está casado com uma moça rica, trabalhava até pouco tempo como produtor de TV e vai a festas burguesas, onde se conversa através de slogans publicitários. Lá ele encontra Samuel Fuller, diretor americano proscrito, autor de filmes vibrantes sobre pedofilia, insanidade e questões sociais e políticas nos EUA. Fuller diz para Ferdinand o que é cinema: “Um campo de batalha. Amor, ódio, ação, violência, morte – numa palavra: emoção!”. É exatamente “emoção” que define o efeito dos filmes de Fuller e Godard.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Cores e sonhos feitos de Godard" por Gianni Paula dos Anjos de Melo


Não é a história, somente em si, que faz o filme. Nesse caso, bastaria ler a novela Obsession, do norte-americano Lionel White, texto que deu origem à “Pierrot, Le fou”. Mas aí, pela força da escolha, você perderia de viajar em um road-movie que transita entre o sonho e a crise, o pop e o erudito: veredas da Nouvelle Vague.

O francês Godard, nome demarcador de uma época cinematográfica, muito antes de fazer filmes políticos en son Groupe Dziga Vertov, já fazia filmes politicamente: lirismo de discurso próprio. Nos idos dos anos 60, precisamente 1965, o diretor pinta na tela do cinema a história de certo Ferdinand que, cansado, desprovido de unidade, sem aragem de sossego, resolve abandonar mulher, filha e reuniões burguesinhas, para viver desassossego pleno. Desassossego pleno tem nome que ressoa arte e ares de deusa Vênus: Marianne de Renoir. É no reencontro do caso antigo que Ferdinand se envolve com histórias de armas, dinheiro e fuga: por loucura ou paixão - o que, trocando em miúdos, dá exatamente na mesma.


Não querendo pecar por reducionismo, é preciso deixar claro que Godard não só pinta na tela: ele compõe, recita, borda, esculpe, customiza, cinzela. Convida à sua construção ficcional as figuras de Renoir, Velásquez, Van Gogh para se acomodarem ao lado do Pop Art e da Turma do Pé de Níquel. Fragmentos que vem de cada tempo compor uma mesma expressividade: colcha de retalhos. Colcha de retalhos repleta de cores de encanto, para Almodóvar nenhum botar defeito. Nem Frida Kahlo.


O que autoriza o diretor francês ao intenso do passeio cinematográfico é a noção de que antes dele ser do filme, o filme é dele. Vislumbrar a narrativa como artesanato, à palma da mão, isso é avant-garde. E assim como Ferdinand desvia a rota da estrada e adentra o mar imponente, Godard dispensa linha reta para contar sua história, pois quando se anda sempre em frente não se pode chegar muito longe.


É um pouco desconcertante quando o protagonista pergunta, no início do filme, “O que exatamente é o cinema?”. Pois que resposta você daria para Jean-Luc Godard? Ou até mesmo pra Ferdinand, personagem que de dentro da obra, reconhece sua condição de representação, e dialoga com a platéia, ainda que, alguns minutos antes, Marianne tenha dito que a simulação da morte dos dois precisava parecer real, pois aquilo não era um filme. “Pierrot, Le fou” é e não é um filme, como na lógica hegeliana de suprassumir: negando e assumindo sua condição de filme, mas ao mesmo tempo se elevando: se apropriando com rigor do verbo e sendo em si o sonho em concretude. E se Godard já sabia que nós somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós, o construído não podia ser mais do mesmo, “Pierrot, Le Fou” é um elogio à forma.


Exercício maravilhoso é também poder captar um vasto campo literário não apenas em uma menção direta como a feita à Baudelaire, mas, principalmente, nos cantinhos escondidos do suporte audiovisual. Para mim, são tesourinhos. Quando, na tela, a narração se apresentou em dueto, falas em off revezadas, automaticamente fui transportada para a história de outro grande. É em um conto brasileiro, datado muito próximo, 1966, que dois personagens se confundem enquanto sua história se desenrola. Neste conto, a própria personagem osmaniana diz: é porque nos amamos. Estamos confundidos, cada um é si próprio e também é o outro. Marianne e Ferdinand se amavam? Não tenho a medida dessa resposta. O que sei é que se confundiam na vivência, sendo extensão irremediável dos sentidos um do outro. Enquanto a bela trazia em si propriedade de quem vive a vida, o seu companheiro Ferdinand possuía o predicado daqueles que muito mais contemplam a vida enquanto o tempo escorre aos litros.


Faz-se ainda necessário exaltar Marianne como lugar de complexidade do filme. A construção feminina, em “Pierrot, Le Fou”, é um encantamento absoluto, oscilação entre o barroco e o minimalista em uma personagem que dissimula, mas convence por levantar o estandarte de quem acredita que sagrado é o que se sente. O maior mistério de Marianne é, talvez, a sua transparência e a fidelidade a si mesma, à história que ela vive por merecimento.


O amor precisa ser reinventado. Rimbaud que escreveu. Ferdinand disse. Marianne sabia. Godard sabia mais ainda. E, ao passo que ele, diretor, reinventava o amor, reinventava também a mulher, reinventava a palavra, reinventava os planos de imagem, reinventava a narrativa. Reinventava Ferdinand, que, a essa altura, já é Pierrot. Reinventava o Godard, reinventava o cinema, reinventava a representação e te apontava a direção para que se reinventasse o real. É assim, “Pierrot, Le fou”, reinvenção até da tragédia, pois com tudo acabado, em desatino de desespero, caímos de ceder à idéia que a vida pode ser triste, mas é sempre bela.

sábado, 25 de outubro de 2008

"A Chinesa (1967) – Jean-Luc Godard" por Laíse Queiroz


O subtítulo desse filme já nos diz muito sobre ele logo de início. “Um filme em processo de ser feito” engloba não só a discurso estético de A Chinesa, mas também a instabilidade das tentativas de se fazer cinema político.


O filme é claramente um discurso contra o imperialismo norte-americano, tanto na sua forma, quanto no seu conteúdo. Na questão estética, em contato íntimo com o discurso do filme, a narração é não linear e por vezes confusa para o espectador, em contraponto a linearidade americana que, para Godard, poda a liberdade do processo criativo. Ele utiliza, então, a narrativa como um instrumento para fazer com que o espectador entre no filme, fazendo-o participar ativamente dos seus acontecimentos, suas histórias e personagens, num diálogo direto. Até a forma com que a câmera é conduzida casa com o discurso da obra: esta não se mostra neutra, onisciente. Vem como uma terceira pessoa apta a questionar e analisar o comportamento dos jovens, fazendo com que o espectador se posicione. Sua não-linearidade e heterogeneidade que beira o caos estético fazem também com que quem esteja assistindo A Chinesa interaja com o filme, fazendo co-relações por vezes pessoais e “criando” o filme a partir do seu entendimento. Um filme sempre em processo de ser feito numa estética aberta, godardiana.


Em seu conteúdo Godard explora e questiona uma juventude “aprendiz de esquerdista”. Jovens se juntam num apartamento que se torna um mini-universo, onde discutem a política de Mao Tse Tung e o comunismo europeu, tendo a política como um ponto de fuga de suas realidades sociais, onde não conseguem viver. Acontece então um desfile pop-político, onde burgueses não-proletários querem encontrar uma solução para o proletariado. Godard permite então um questionamento, mostrando as limitações e contradições desse processo. O apartamento, um ambiente claustrofóbico sem ligação com o mundo exterior, enfatiza a idéia da falta de ligação daqueles jovens com a realidade e permite que o espectador se depare com as ações e os vícios do grupo, que utiliza suas férias para se trancar num apartamento alugado e “praticar” o Maoísmo. Numa crítica a absorção do pensamento de Mao como consumismo intelectual pela jovem burguesia francesa, genialmente, Mao é transformado em um slogan cantado (“Mao, Mao!”).


Godard faz uso de vários elementos da linguagem cinematográfica e mostra que a forma com que são utilizadas intervém diretamente na compreensão do espectador. Ele manipula os elementos para mostrar como estes se relacionam com a forma que o filme é assimilado e causa diferentes impressões.


O diretor não teme os questionamentos em seu filme, pelo contrário, incita-os. Rompe com a linearidade e com a tradição cinematográfica, enfrentando a forma americana de fazer cinema. Um filme com discurso político e estético.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

"A (Cor) Chinesa de Godard" por Anderson Baretto


Realizado às vésperas do turbulento ano de 68, o filme “A Chinesa”, de Godard, à primeira vista, faz jus ao seu subtítulo “um filme em processo de ser feito”. Por isso, não é de se estranhar que se faça a pergunta: O que é isso? Afinal, não há um percurso usual, comum ao que até então “conhecemos” como linguagem de cinema. O filme, é mais que uma liberdade artística, antes de tudo, é um grito pela liberdade, seja esta do indivíduo, da sociedade ou do próprio cinema.


A Chinesa é uma combinação entre ficção, documentário, performance e vanguarda, e, sem se propor a ser nenhum deles, supera qualquer tipo de convenção ou classificação. Além de brincar com toda a capacidade possível de se fazer entender, o filme ainda “estremece” qualquer senso de realidade. Essa talvez seja a função do cinema, essencialmente. Godard utiliza depoimentos dos personagens, entrevistas e ilustrações, explora as mais diversas formas de arte, encenação, fotografia, gravuras, performances, tudo para conseguir mostrar um filme que “ainda não está pronto”. Entretanto, é uma obra perfeitamente completa e bem acabada, uma vez que atinge todos os objetivos do autor/diretor, que, além disso, ainda teve a competência de mostrar uma realidade antes mesmo que a própria realidade se mostrasse, conforme é dito por uma das personagens: “A realidade ainda não se mostrou a ninguém”.


O filme é um combate ao imperialismo americano, num discurso bastante político que é acompanhado pela cor vermelha, a cor do sangue, da revolução, do comunismo, da bandeira chinesa... O vermelho aqui, muito além de Almodóvar, é muito mais que uma cor, é um instrumento. A cor está presente em todo o filme, e é uma característica percebida desde os primeiros segundos da obra. Vermelho, Amarelo, Azul, cores primárias que, para Godard, significam harmonia e equilíbrio. São a partir dessas cores que todas as outras são formadas, o que remete ao “filme como algo não acabado”, como se as bases da realidade mostrada no filme se constituíssem como um ponto de partida – para o espectador, os indivíduos, o cinema e o mundo.


Godard mostra a sua visão de mundo, uma visão profunda, densa, focada, real, que está presente marcadamente no filme através da fotografia, isto é, o diretor utiliza, em sua maioria, planos fechados, evita o “plano americano”, mais uma prova de sua magnífica intertextualidade e subjetividade. O enquadramento é focado, não apenas pela câmera, mas pelo olhar do cineasta, um olhar restrito, sem ser levado e iludido pelas paisagens, pelo exagero de imagens, pela multiplicidade de informação, propostas pelo “american way of life”. E assim, o filme tem uma estética peculiar, concentrada e equilibrada, características essenciais para se compreender uma realidade que estava prestes a se mostrar. Godard também nega a narrativa linear do cinema americano, há uma liberdade de movimentação de câmera, bem como uma liberdade de cortes, promovendo uma certa imprevisibilidade ‘des-norteante’.


No filme é dito: “Para tudo o que vemos devemos considerar três coisas: a posição do olhar de quem vê, o objeto visto, e a fonte de luz”. O espectador estaria, então, vendo frontalmente essa proposta de uma nova realidade, trazida pelo filme - o objeto visto - um instrumento trazido à luz pela genialidade de Godard. Isso remete uma vez mais ao “filme em construção”, representando não apenas um filme, mas sim a certeza de que é possível trilhar um caminho diferente. A Chinesa percorre esse caminho diferente, destoa do cinema americano, central, ridiculariza o luxo e o poder dos EUA. “Há uma falsa idéia do cinema”; “Cultura e ação estão separadas”; “A cultura oferece controle sobre o mundo”...


A política é o que move os personagens, seus pensamentos, suas idéias, seus instintos e atitudes. A política é “o pequeno livro vermelho que faz tudo se mover”. O filme mistura política e arte, passa a idéia de que para mudar algo é necessário conhecê-lo antes, e antes disso, conhecer-se. Godard teve essa sensibilidade, e no filme trouxe tudo isso através do que chamou de “consciência infeliz”. Infeliz, talvez, pelo fato de que toda consciência traz consigo um nível maior de responsabilidade, esta, por sua vez, está diretamente ligada ao poder e à realidade. E assim, mais uma vez perguntamos: o que é a realidade? Ao longo de todo o filme, o espectador pode se perguntar: o que se passa nesse filme? São meras ilustrações ou é de fato uma história? Existe uma história? A Chinesa é um filme para poucos, é um filme que faz pensar, e muito mais do que isso, pensar em agir. É uma obra onde nem sempre tudo é compreendido, afinal, olhar um objeto de perto significa conhecer os seus detalhes. O nível aumenta quando o “objeto” analisado não é mais o filme, ou o cinema em si, mas sim a realidade.


O olhar é algo bastante instigador nessa obra, aliado à imagem e ao som, sobretudo às palavras, propõe uma análise dessa tal realidade. Através da fala dos personagens, há uma informação, que, por mais paradoxal que pareça, aponta a intencionalidade do autor. É dito que ser cego é a saída para enxergar melhor o mundo. Godard fecha os olhos ao mundo imperialista, ao cinema tradicionalmente norte-americano, e com isso, não só enxerga uma nova maneira de fazer cinema, como também propõe ao público uma nova maneira de enxergar a realidade.


Assim, o filme traz uma verdade combatente, combate o imperialismo, o cinema americano, e até mesmo o processo da construção fílmica, uma vez que nega os caminhos até então conhecidos do cinema mundial. Godard para isso deu novo significado à imagem, à representação, à fotografia, à música. Inseriu imagens, figuras de pensamento, brincou com a subjetividade, reinventou a arte cinematográfica, retratada também numa de suas inúmeras frases de efeito: “A arte não reproduz o visível. Ela inventa o visível”. Godard, portanto, finaliza o filme, apesar de anunciá-lo “em processo de ser feito”, e faz de A Chinesa algo maior do que “um tímido passo de uma longa marcha” – um começo de um novo caminho.