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sábado, 15 de novembro de 2014

"A Chinesa", por Júlio Pereira


Ocorreu, recentemente, uma ressignificação interessante de Riocorrente, do paulista Paulo Sacramento, perante as manifestações iniciadas em junho de 2013 no Brasil. O filme foi realizado antes da erupção política nas ruas, mas, por ser lançado posteriormente, acabou estabelecendo uma ponte involuntária com acontecimentos reais. Por outro lado, podemos compreender a obra por outra ótica (bem mais instigante, diga-se): como um anúncio do que estaria por vir, ou seja, um pequeno retrato dum sentimento de revolta presente nos brasileiros anterior às chamadas jornadas de junho (nome problemático tendo visto que as manifestações não se cessaram) – e, claro, existe uma relação muito direta entre essa sensação de mal-estar com a explosão política no Brasil. Essa divagação serviu, de fato, apenas para poder falar um pouco sobre a força adquirida por A Chinesa, de Jean-Luc Godard, ao tentar enquadrar o filme num contexto político maior na França. Leia-se: prelúdio capturado em película do que seria o Maio de 68, cujo estopim foi, inclusive, a demissão de Henry Langlois, diretor da cinemateca francesa, por André Mauraux, então ministro da cultura.

Falamos duma obra fundamentalmente romântica, retrato honesto dum tempo onde a ideia da revolução sendo feita nas urnas, muito presente em certa esquerda contemporânea, se empalidecia diante do fervor revolucionário presente entre os jovens franceses. E é muito importante destacar o fato dos personagens de A Chinesa serem todos militantes da juventude, afronta direta a uma esquerda mais velha absolutamente institucionalizada, pouco preparada para a efervescência de ideias à esquerda pairando entre os mais novos. No âmago disso, existe o apreço forte pelas ideias maoistas, num período já desiludido com a URSS. O Livro Vermelho se impõe na obra menos como elemento figurativo de ideias do que representante de um desejo radical entre os personagens, ou seja, força motriz de todo o debate do filme.

Aliás, essa sinceridade, uma fé clara do próprio Godard, nos ideais de Mao Tse-Tung, celebração pura da Revolução Cultural na China, obstruem qualquer possibilidade de revisionismo, tendo vista que nós sabemos todos os excessos cometidos – embora muitos não-provados – pelo governo socialista de Mao – perdurado até hoje, mas com uma esquizofrenia grotesca: um dos capitalismos econômicos mais cruéis do mundo. Um período pré-descortinamento, em que os franceses, assim como os militantes comunistas do resto do mundo, não sabiam tão bem a barbárie por trás da utopia (como define Silvio Tendler em seu afetuoso documentário). Em suma: A Chinesa adquire o status (neste sentido específico, pois o filme é muito maior do que qualquer enquadramento genérico) de registro duma juventude extremamente engajada. Por outro lado, Godard foge do simplismo ao admitir o perigo duma falta de tática revolucionária elaborada, assim como o caráter pequeno-burguês, contraditório, imperfeito mas esperançoso, dos militantes franceses dos anos sessenta. Assim, o desfecho acaba aludindo também ao que seria o Maio de 68, reconhecendo a revolta como apenas o primeiro passo pequeno dum projeto político maior.

Godard promove seu panorama político, inserido no começo de sua fase estética mais radical, através duma linguagem pop constituída por colagens, hinos sobre Mao (cômicos pelo modo como são postos), encenações de importantes acontecimentos históricos – como a Guerra do Vietnã. Amálgama de elementos cinematográficos guiados por uma montagem de preceitos eisensteinianos, do choque mesmo, desencontro do áudio com a imagem para te extrair do universo diegético da obra. Acaba chovendo no molhado, inclusive, ficar comentando esses traços formais godardianos, ou seja, a quebra de toda a narrativa clássica hollywoodiana, rompimento com a impressão de realidade - alienante por natureza. Mas são constituidoras, e por isso fundamentais para a análise, de toda a linguagem anárquica, necessária para a expressão da pólvora prestes a pegar fogo de A Chinesa. (Acho curioso observar como o estilo de atuação bretchiniano empregado por Godard acaba sendo muito mais radical e estranho do que duas resistências – muito bem sucedidas – ao star-system norte-americano: a coralidade do neorealismo italiano e o coletivismo do supracitado Eisenstein.)


Ou talvez A Chinesa me toque tanto por retomar um sentimento pouco presente em nossa era desiludidada com as utopias, em que as ideias precisam voltar a ser perigosas – como dizia nos muros de Paris. Talvez por me lembrar um pouco das mesas de bar com amigos militantes discutindo sobre Bakunin e Marx – em pleno dois mil e quatorze, há pessoa dispostas a isso, acredite. Talvez por evocar imagens do poético molotov sendo arremessado nas forças repressoras do Estado. Afinal, por me deixar com aquela remota esperança de que um dia as coisas podem mudar radicalmente. E enquanto houver pessoas dispostas a assistir e discutir Godard, terei a certeza de que nem tudo está perdido.

‘À bout de souffle’ e a estética da Nouvelle Vague, por André Maia


Escrever algumas poucas linhas sobre ‘À bout de souffle’ de Jean-Luc Godard não é tarefa fácil, tampouco pode ser uma atividade despretensiosa, tamanha a importância e o significado desse filme para a história cinematográfica francesa e mundial inaugurada nos anos sessenta do século passado com a chamada Nouvelle Vague.

‘À bout de souffle’, no Brasil traduzido por ‘Acossado’, foi o primeiro longa-metragem dirigido por Godard. O ano, 1959. Um dos marcos iniciais do movimento de renovação do cinema francês conhecido como ‘Nouvelle Vague’. Percebido pela crítica na época como um verdadeiro manifesto estético, ‘Acossado’ remete claramente às características desse novo momento de se fazer cinema na França. Momento esse com traços definidos e singulares, e que podem ser elucidados resumidamente aqui, dentro das limitações proporcionadas pelo objetivo deste texto que é o de, tão somente, fazer um breve comentário sobre o filme.

Como uma primeira característica da estética desse movimento e muito bem efetivada em ‘Acossado’ é a opção de tirar o cinema dos estúdios. A ficção cinematográfica ganha as ruas, ou seja, existe uma valorização dos cenários naturais. ‘Acossado’ apresenta a Paris de 1959 – o Hotel Suède, a Champs-Élysées, o Café La Pergola em Saint Germain de Près, a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. O filme pode ser visto como um autêntico postal da Paris de Godard.

Essa escolha de cenários naturais, as ruas e os cafés e qualquer espaço de acesso público, torna o filme de Godard bastante autoral, uma vez que as filmagens ocorrem, não por acaso, em lugares bastante familiares para o cineasta. Essa característica acentua a dimensão autobiográfica da obra.
Podemos comentar sobre a montagem agora. É lugar comum entre os críticos de cinema que Godard é seguramente o mais inovador no que diz respeito à exploração do novo em termos de expressão cinematográfica na Nouvelle Vague. Godard revolucionou a montagem em ‘Acossado’. Regras de composição clássica abolidas, plano sequência retilíneo, plano sequência circular. Elementos visíveis em ‘Acossado’

que o distingue pela ruptura técnica. ‘Acossado’ marcou a história da montagem fílmica quanto à estrutura interna das sequências, a forma de encadeamento dos planos, os saltos de imagens.
Outra característica bastante acentuada em ‘Acossado’ e que tem relação direta com a montagem e a filmagem em lugar natural é a presença dos ruídos do real. Buzinas e freios e motores de automóveis, sirenes de polícia, além do registro sonoro dos meios de comunicação significativos na época tais como o rádio e as chamadas telefônicas.

Godard, com ‘Acossado’, efetiva uma verdadeira revolução da prática da montagem no cinema.
Para a história do cinema, ‘Acossado’ é considerado um filme fundador de um estilo, de uma corrente. Um filme que reinventa a forma de filmar. É, também, considerado um manifesto na arte cinematográfica no que se refere aos aspectos estético, econômico e técnico. É a obra-prima da Nouvelle Vague.

Por fim, ‘Acossado’ representa o maior sucesso comercial de Jean-Luc Godard. Seu primeiro longa-metragem e um dos filmes mais ilustrativos da estética da Nouvelle Vague, obtendo um lugar excepcional na história do cinema. Este é um filme que representa não só o fim de uma determinada época no cinema, mas, sobretudo, o ponto de partida do cinema moderno dos anos 1960. Uma afirmação do propósito, do manifesto e do programa da Nouvelle Vague.

"Acossado", por Sâmara Carvalho



O primeiro filme de Godard representa uma grande quebra de paradigmas com o cinema convencional norte-americano. As marcas de diferentes movimentos de câmera, montagem com jump-cuts e um roteiro livre fazem o filme causar um estranhamento no espectador até nos dias de hoje - o que torna a proposta do filme ainda bastante atual.

Em Acossado, assistimos à história de Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), delinquente que, em uma de suas fugas, acaba por atirar em um policial e, por isso, passa a ser perseguido durante o filme. Nesse meio tempo, Michel encontra uma mulher de seu passado, Patricia (Jean Seberg), uma jornalista americana que está vivendo na França.

Logo nos minutos iniciais da narrativa, o personagem Michel quebra o espaço de campo do filme e se dirige diretamente ao público. Esse é um dos muitos artifícios utilizados no filme para fazer o espectador criar consciência de seu lugar de observador da história, evidenciando que aquilo que está sendo visto não corresponde a realidade – coisa que o cinema americano insiste em esconder. Os jump-cuts, como o da cena em que o casal passeia de carro pela cidade, são a ratificação disso.

Além disso, o filme foi produzido sem delimitações de roteiro (tudo que Godard tinha eram algumas anotações), deixando um espaço grande para intervenções dos próprios atores nas falas e atos dos personagens, o que contribui para o ar de revolução formalista que paira sobre a obra. Mas, ao mesmo tempo em que a forma se distancia do cinema clássico, o conteúdo se aproxima em alguns momentos. Isso é bem marcado pelas referências feitas ao longo do filme, como a Romeu e Julieta e a Renoir.

O romance de Michel e Patrícia, no entanto, é construído com base em questões existencialista – algo muito recorrente na cinegrafia de Godard. A cena em que os dois estão no quarto escancara isso para o espectador: a mulher se encontra em um dilema entre o aprisionamento de se entregar ao amor ou o seu desejo vívido por liberdade. Essa cena é marcada por diálogos poéticos e fortes, onde frases impactantes fazem a mente do espectador ir ainda além do que o filme propõe, como quando Patrícia faz reflexões sobre a sua liberdade e sua infelicidade: "Não sei se sou infeliz porque não sou livre ou se não sou livre porque sou infeliz". Michel, em contrapartida, mesmo fugido da polícia, sabe que está preso ao seu sentimento por ela. Tanto que, no fim do filme, é esse amor que vai sentenciá-lo.

Durante todo o filme, vemos que Patrícia tem o controle da situação. Isso fica bem claro quando ela decide denunciá-lo para a polícia – optando, assim, pela sua liberdade. Mas mesmo tendo feito sua escolha, ela não consegue se desprender do amor que tem por Michel e vai contar que fez a denúncia. Talvez por um desejo secreto de que ele fuja. Mas ele continua ali, mesmo tendo a oportunidade de fugir. E é aí onde o filme termina: Michel, descoberto pela polícia, é baleado e morto.
A última cena do filme revela muito sobre os personagens. Durante o filme, vemos Michel passando o polegar ao redor dos lábios – hábito que foi repetido por ele diversas vezes. Ao vê-lo morto, Patrícia – em mais uma interação direta de personagens com o espectador – olha para diretamente para câmera e repete o gesto sempre feito pelo parceiro. Ao fim das contas, isso evidencia o quanto de Michel existe nela. E ainda mais: mostra que, mesmo em sua liberdade, ela ainda está e estará presa ao seu amor.

"Uma mulher é uma mulher", por Juliana Soares Lima


"Original, jovem, audacioso e impertinente, sacodindo as normas do filme de comédia clássico". Características suficientes para Uma Mulher é Uma Mulher ganhar o prêmio oficial do júri do 11° festival de Berlim. Para não ficar atrás, graciosamente enquadrada pelas lentes apaixonadas de Godard, com quem se casara no mesmo ano, Anna Karina leva no mesmo festival o prêmio de melhor atriz, "pelas qualidades raras em atrizes iniciantes". Sua beleza, juventude e leveza, além da expressão da liberação sexual na personificação de Angela, são características marcantes na atriz em início de carreira.
Falando em liberação sexual, a personagem principal é a representação de todas as mulheres e de sua busca pelo papel na sociedade. E Godard contrapõe o tempo todo a liberação feminina com sua fragilidade: Angela faz strip-tease em um cabaret, namora com Émile mas  é a paixão de Alfred, amigo do seu namorado. Enquanto afirma sua independência ao insistir na ideia de ter um filho mesmo com a oposição firme de Émile, discute com ele sobre a beleza ou a feiura de uma mulher que chora, afirma que "nada é mais bonito do que uma mulher que chora" e que as mulheres modernas que tentam imitar os homens são idiotas por não chorarem. Decidida a ter seu bebê, e por ideia do próprio Émile, tenta ter seu filho com o terceiro membro deste triângulo amoroso. As incertezas e a indecisão de Angela diante desse triângulo nutre de comicidade todo o desenrolar do filme.
A complexidade da idiossincrasia de Angela segue em paralelo com a complexidade da montagem do jovem diretor, o filme trata-se de uma verdadeira revolução de conteúdo e forma. O som é atração a parte na obra de Godard, tirando sempre o espectador do lugar comum: a trilha sonora descontinuada, os cortes abruptos da música e o som que interrompe falas são mais marcantes aqui do que nunca. Além disso a própria encenação se dá de forma inovadora quando de repente Angela se vira para o espectador e dá uma piscadela, por exemplo, ou promove junto com seu namorado na cozinha de sua casa uma encenação direcionada aos espectadores.
O filme também pode também ser lido como uma homenagem ao musical americano. Descrito por ele mesmo como um "musical neo-realista", tornando ainda mais complexo o conjunto do filme, por tatar-se de um verdadeiro sincretismo ao juntar em um só termo um gênero essencialmente Hollywoodiano com um movimento totalmente anti-americano. "Cinéma/ Comédie/Musical" aparecem em letras garrafais no início do filme. Em uma das sequências Angela diz: "Eu gostaria de estar num musical com Cyd Charisse e Gene Kelly!". Além disso, a própria quebra da realidade exemplificada anteriormente relaciona-se diretamente com a quebra de realidade utilizada nas cenas do filme do gênero musical.

Em Uma Mulher é Uma Mulher, Godard transforma a história aparentemente simples de uma stripper num filme riquíssimo, graças à maneira com que explora a individualidade da personagem principal e graças ao seu jeito único de brincar com os diálogos, com a encenação e com a montagem.

"Jules et Jim", por Raian Oliveira



É impressionante como o filme Jules et Jim (Truffaut, 1960) consegue se manter completamente atual e transgressor com mais de cinquenta anos decorridos e conserva em si uma modernidade pungente tanto esteticamente quanto na questão temática. Trazer uma “revolução” no padrões de relacionamentos, questionar o próprio status do casamento e trazer todas as mudanças atreladas a uma figura que se construiu na dependência de um outro gênero é uma forma arrebatadora de se discutir o tema.

Apesar do filme receber o nome dos dois amigos, o desenlace da trama tem como imã e catalisador de todas as ações a inesquecível Catherine (Jeanne Moreau). Sem muito sermão e pudor ela age em função de si mesma. Seguindo o fluxo da sua vontade, os planos e idealizações de futuro se condensam no aqui-eagora, em um certo apego ao que está no presente e reflexo de sua vontade além
da moralidade. Uma discussão-monólogo na beira de um rio desencadeia um protesto aos moldes dela, utilizando seu corpo como contestação ela se joga no rio ao escutar de Jules (Oscar Werner) seus comentários sobre a inferioridade feminina. “Em um casal, a mulher deve ser fiel. A fidelidade do homem não importa” diz Jules para Jim (Henri Serre) em um de seus “argumentos”enquanto Catherine passeia antes de se jogar.

Não passa muito tempo para que Jules e Jim se apaixonem por ela e iniciem um triângulo amoroso ao qual ela centraliza todas as atenções e faz com que tudo gire em torno dela. Descontinuidades na montagem — que bem melhor explorados em Acossado (Godard, 1960) — e cenas congeladas por alguns frames intensificam a experiência dessa adaptação literária de Truffaut. Em um diálogo com Jules e Jim, Catherine explicita o quanto havia aprendido e mudado após conhecer eles e lindamente começa a esboçar suas expressões normais antes do encontro e da vivência que, magistralmente congeladas, dão a impressão de fotografias dentro do filme, de certa dilatação no tempo como forma de contemplar tudo aquilo que logo mais voltará a se dissolver em movimento.

A casa em um local isolado, cercado predominantemente por árvores, torna-se refúgio e criação de um reino utópico ao qual a rainha é Catherine. Tudo se torna possível no campo dos sentimentos. Jules, Jim e Albert (Serge Rezvani) convivem como se toda possessividade-romântica-monogâmica fosse quase que completamente abolida. A troca de parceiros é constante. Catherine fala em
algum momento do filme que o amor é como ciclos que vêm e voltam, resumo do que seria não só o seu, mas o de Jim — que se apaixona e desapaixona não só por Catherine, mas por Gilberte também — e de todos que se escutam além dos segredos-tabu escondidos pelo mito do amor eterno. Mito esse que, inconformada com o fim do que seria o controle de Jim, anunciado por um casamento definitivo, tenta mata-lo como forma de eternizar e manter o controle sobre aquilo que começara a fugir dos seus planos.

Jogar-se no rio, como havia feito antes, agora como ato final e percepção de que não se poderia ter controle sobre tudo, principalmente em uma relação egoísta. Eternizar e permanecer aquele que tenta fugir, e mais uma vez o rumo dele é preso ao dela. Dessa vez, não mais como a primeira, os resultados de seu protesto corporal não serão vistos por ela, mas ela sabe, em alguma parte, a
sua cristalização não só na vida de Jules, mas na de tantos outros homens pelos quais dominou. E, com certeza, por todos aqueles que se dedicaram a assistir a essa obra-prima. 

domingo, 10 de agosto de 2014

"As praias de Agnes", por Maria Alencar


Agnès que um dia já foi Arlette reconstrói nesse documentário autobiográfico séries de situações que fizeram parte de seu passado. Tendo na mudança de seu nome como um primeiro ato explicitado no filme de desmaterialização desse tempo, introduz a ideia que a revisitação proposta por ela à sua infância, juventude

e caminhos que percorreu, sempre ocasionalmente guiada pelo mar, não carregam o apego material a essas memórias.
Ainda que a construção cenográfica inicial se configure em um ambiente extremamente aurático à beira-mar (cada espelho em seus detalhes remonta um momento de sua vida) e os materiais ali presentes se façam vivos em si, ela afirma o desapego ao dizer que não sente saudades da infância. O que se remonta não são as memórias dos fatos, mas sim da sensações. As Praias de Agnes é um memorial afetivo e desafiador da matéria. O que é posto em cena como passado corporificado necessita e é induzido por ela a se resignificar.
Ao criar um dispositivo onde um carroça contendo um projetor que exibe imagens recentes de um falecido ator enquanto é empurrada por seus filhos demonstra, talvez, uma preocupação com o tratamento desses valores emocionais gerando um esforço físico de afastamento da memória tangível, como que um movimento de colocar as coisas em seus devidos lugares.
O espelho que tem a capacidade de replicar todas as suas praias, as câmeras que registram, guardam aqueles poucos momentos em que toda a família se reuniu, o corpo que pode até regressar no espaço. Tudo isso se contrapõe às sensações genuínas de um toque nos cabelos do amado, do encantar-se com o mar e com outras culturas e do enternecer-se perante as crias. É impossível revivê-las, elas ficaram e com elas a vontade de combinar o tempo objetivo com o subjetivo, porém sem descaracterizá-los.
Varda abre seu universo para mais essa experiência norteada pelo desejo dessa combinação, do tempo que pertence a ela nas suas emoções com o tempo  que é próprio dos objetos e que se identificam como ‘meros’ dispositivos.
Enfim, uma história de amor.


domingo, 7 de novembro de 2010

A mulher das Dunas - Hiroshi Teshigahara (1964), por Sofia Donovan


Parece grande, mas descobrimos que a “rocha” que vemos na primeira cena do filme é um grão de areia. A Mulher das Dunas discute, ora de forma direta, ora através de metáforas, alienação, indivíduo e sociedade, tradição, sexualidade; questiona, como filmes de outros movimentos cinematográficos de ruptura contemporâneos, os parâmetros estabelecidos. Reage (assim a Nouvelle Vague Japonesa, em geral) às drásticas mudanças que ocorreram no Japão após a segunda guerra.

Um professor coleta insetos em meio a dunas semi-desertas. Sua voz em off nos expõe uma inquietação, uma inclinação crítica e cética “Você diz que eu discuto muito. São os fatos que discutem”, fala a uma mulher que surge em meio as dunas (mas é só uma aparição, não está ali, nem chegamos a saber quem exatamente é). Ele acaba perdendo a hora do ônibus que o levaria de volta a cidade, e um dos moradores das dunas o oferece estadia com uma conterrânea em uma estranha casa, construída no fundo de um buraco na areia. A trilha sonora tensa, por vezes contundente, deixa o espectador na espreita de algo ruim. A conterrânea o recebe com sorrisos receosos e na manhã seguinte o professor descobre que foi enganado pelos moradores da vila e está preso junto à mulher, que não tem poder para fazer nada a respeito.

A areia possui um enorme papel na narrativa, se revolta em momentos de crise, desliza lentamente se não, mas não apenas acompanha, determina e controla mais que os próprios sequestradores os acontecimentos. A areia prende o protagonista quando ele tenta fugir, dela brota água quando ele alucina de sede, foi ela quem engoliu o marido e a filha da mulher. Além de ser o foco da maioria dos muitos planos detalhe do filme (seja a das dunas ou a da pele dos personagens). A já citada música, que em si já é quase uma alucinação, somada a essa personificação criam uma atmosfera fantástica e sinistra.

A mulher, em contraste com o professor, é extremamente ligada às tradições da vila, submissa, resignada, subserviente, porém cultiva uma admiração inocente pela capital e um medo enorme da solidão e da vida. Mesmo após superar a “fase da raiva” dela, ele continua em uma posição machista (não é “moderno” nesse sentido). A tão almejada “liberdade” dele e a “prisão” onde ela vive são relativizadas. Ela sofre calada, acaba não significando nada para ele, nem mesmo quando engravida. A atuação de Kyôko Kishida é extremamente comovente. Junto à grande diversidade de enquadramentos (que ganham com o claro/escuro naturalista), ela consegue prender o espectador no filme de locação única.

Outro filme do mesmo movimento Japonês que se assemelha a A Mulher das Dunas: um sequestro, o cárcere prolongado, trazendo ao protagonista uma nova perspectiva sobre o mundo; Cega Obsessão (Yasuzo Masumura, 1969) também é auto-reflexivo. Porém em ambos o personagem sequestrado acaba cedendo à loucura ou alienação a que tinha aversão. Não se encontra nesses filmes a necessidade de uma clara resolução ideológica.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Jules e Jim - Uma mulher para dois, François Truffaut, 1962, por Bruna Belo



Jules e Jim, considerado por muitos a obra-prima de François Truffaut, é seu terceiro filme e um dos que melhor representa a nouvelle vague francesa, fazendo uso de técnicas de filmagem baseadas na improvisação e desrespeitando as regras clássicas da montagem. Baseado no romance autobiográfico de Henri-Pierre Roché, o filme possui dois dos temas centrais da obra do diretor: o amor e as mulheres.

Ambientado na Paris do inicio do século XX, em plena belle époque, conta a história de dois amigos: Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre), ambos escritores, o primeiro é austríaco, retraído e introspectivo, enquanto o segundo é francês, bem humorado e extrovertido. Depois de uma viagem às ilhas do mar Adriático, eles conhecem Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher livre, liberal e apaixonada pela vida. Ambos se apaixonam por ela, dando inicio a uma amizade sólida e a um dos mais famosos triângulos amorosos do cinema. Jules casa com Catherine e tem uma filha, porém após a Primeira Guerra Mundial – na qual os dois amigos lutam em lados opostos – ela já havia perdido o interesse no seu marido, passando a ter casos extraconjugais. Quando reencontram Jim, Catherine se descobre apaixonada por ele e os três passam a viver juntos.

O filme tem um narrador em off para, como disse Truffaut, evitar o corte dos textos mais belos, dando conta das partes mais densas do livro. Além disso, ele ajuda a dar sentido às ações e diálogos entre os personagens, que, sem a narração, poderiam parecer sem propósito, ajudando na fluidez do filme, que une cinema e literatura de forma encantadora.

Como não podia deixar de ser, Truffaut – um dos fundadores da nouvelle vague – incorporou a Jules e Jim o surgimento de tecnologias de filmagem, a fim de obter a nova linguagem cinematográfica tão desejada, fazendo uso de imagens congeladas e jump cuts. Foram usadas câmeras portáteis as quais, por serem leves, facilitavam a locomoção, já que podiam ser levadas na mão, aumentando a liberdade do cinegrafista (Raoul Coutard) para fazer o que quisesse, por exemplo, algumas cenas do pós-guerra foram filmadas por câmeras montadas em bicicletas. Apesar dessas técnicas já terem sido usadas em seus filmes anteriores, em Jules e Jim o diretor aperfeiçoa seu estilo, marcando uma transição, de uma direção livre e espontânea para uma mais refinada visualmente.

A utilização de congelamento da imagem usado ao longo do filme é um dos aspectos que chama mais atenção na montagem, pois perpetua determinados instantes, como expressões de Catherine e o reencontro dos amigos após a Guerra.
O filme pode ser dividido em três partes, assim como o livro: na primeira ele mostra a amizade de Jules e Jim, como se conheceram, como é a relação dos dois; na segunda parte eles conhecem Catherine, e Jules se apaixona e casa com ela; a terceira começa a partir do envolvimento de Jim com Catherine, concretizando o triângulo. Porém, essa divisão não ocorre apenas no roteiro, essas mudanças também podem ser percebidas através da montagem e da trilha sonora.

A fluidez e “rotação” (swirling) das imagens, a edição rápida e a musica vivaz da primeira parte do filme se encaixa perfeitamente à jovialidade, às brincadeiras e às emoções exageradas dos personagens. Na segunda metade, enquanto nós entramos mais fundo na intimidade dos personagens e enquanto a trama começa a se complicar, o filme desacelera.

A trilha sonora, composta por Georges Delerue, lembra composições de Claude Debussy e Erik Satie, dois dos mais proeminentes compositores franceses do período em que a historia se passa. É possível perceber que a relação entre personagens se torna mais tensa e complicada através do desenvolvimento dos temas musicais, por exemplo: há uma melodia que se repete durante toda a trama quando os personagens se encontram, primeiramente ela é idílica (quando eles visitam o campo e vão à praia de bicicleta), depois, com o decorrer da historia, essa mesma melodia se torna mais lenta e sombria. A partir desta reordenação dos temas musicais no decorrer das cenas, o diretor sugere significados implícitos na narrativa. Todo esse cuidado com a trilha sonora ajuda, e muito, a dar uma unidade à obra. A música Tourbillion, que ficou famosa após o filme, é cantada por Catherine em determinada cena e é capaz de sintetizar em poucos versos a sua personalidade e toda a relação dos três.

Embora Jules e Jim sejam os personagens principais, é Catherine quem rouba a cena, e sintetiza o espírito do filme. É ela quem os guia, comandando a relação entre eles. Jeanne Moreau, após essa sublime interpretação, ganhou fama internacional e passou a ser um dos rostos mais lembrados da nouvelle vague, já que esta personagem é uma das que melhor sintetiza os ideais desse movimento, a confusão e intensidade de emoções.
Com uma sutileza inerente ao diretor, Jules e Jim, se tornou uma celebração à sinceridade para com os seus sentimentos e emoções. Uma das melhores adaptações literárias para o cinema, a história é, como disse o próprio Truffaut, um “perfeito hino ao amor e, talvez, à vida”.



Fontes:
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: an introduction. Ninth Edition. New York, NY: McGraw-Hill, 2009.
http://www.scribd.com/doc/17704250/Jules-et-Jim-Fotonouvellevague

"Bande à part”, por Ana Lúcia Diniz



“ Para os atrasados que agora chegam, oferecemos umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: três semanas antes. Um monte de grana. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica” Essa frase, dita pelo narrador no início do filme, pode servir como um resumo da história que é contada em “Bande à part” (1964), de Jean-Luc Godard.

Parece simples, não é? De fato, o filme segue uma narrativa linear e não oferece grandes dificuldades de compreensão, principalmente se comparado a outras obras mais herméticas e pretensiosas do diretor. No entanto, se a frase dita pelo narrador pode servir para resumir a trama, não sintetiza , paradoxalmente, o filme. Não se trata aqui de uma escassez de palavras, é possível, seguindo a mesma ideia contida na frase , citar inúmeras outras: Dois rapazes. Três amigos. Odile, Frantz e Arthur. Um roubo. Um triângulo. A França... E ,por mais que essas palavras ajudem a completar o resumo da trama, não chegam nem perto de definir a experiência de assistir a este filme. É necessário vê-lo, é indispensável senti-lo.

Se, por um lado, a história é uma espécie de homenagem aos clássicos de gângster que Godard tanto gostava, por outro, como típica produção de um período de ruptura e redefinição que é a Nouvelle Vague, o filme também tem um caráter experimental e inovador em diversos aspectos. Em “Acossado” (1959) - outro filme de Godard aproximadamente da mesma época - o experimentalismo é enfatizado fundamentalmente no plano da imagem; tem-se, portanto, uma montagem inovadora, a exemplo da cena da perseguição de carro em que se utiliza pela primeira vez uma técnica chamada de “jump cut”: quando cortes consecutivos na imagem conseguem acelerar o ritmo da trama e paralelamente quebram a sensação de continuidade. Já em “Bande à part” o caráter experimental é perceptível principalmente no plano sonoro, talvez por isso se tenha a sensação de que as inovações nesse filme são mais sutis do que em “Acossado”.

Uma cena icônica - exemplo dessa ruptura - é quando os três personagens principais resolvem fazer um minuto de silêncio que é intensificado pela retirada total do som, inclusive dos ruídos do ambiente. Godard destrói , assim, o realismo e faz o silêncio transcender o plano ficcional. Outra cena em que a inovação se dá de maneira oposta mas também genial é quando Franz (Sami Frey) finge atirar em Arthur (Claude Brasseur), usando o dedo como revolver. Em vez da retirada, como na cena citada anteriormente , ocorre a inserção do som de um disparo, algo no mínimo ousado e que também questiona o conceito de realidade presente na trama.

É possível notar que, apesar de uma narrativa a princípio despretensiosa, “Bande à part” possui cenas que ficaram marcadas na história do cinema. Algumas delas serviram, inclusive, de inspiração a outros artistas. Bernardo Bertolucci em “Os Sonhadores” (2003) homenageia Godard quando os três protagonistas do seu filme ,Théo, Isabelle e Mathew, também correm pelo Louvre com o intuito de quebrar o record justamente conquistado pelo trio de Bande à part. Quentin Tarantino, além de colocá-lo como nome de sua produtora, é bastante influenciado por ele em “Pulp Fiction”(1994), pois a cena em que Uma Thurman dança com John Travolta é uma referência direta à do trio de Godard.

Essa cena em que os três personagens dançam no bar é influência não apenas para diretores de cinema, mas transcende ao ambiente da música e, inclusive, ao mundo televisivo. A banda Nouvelle Vague utilizou essa sequência como clipe da música “dance with me” e recentemente a série de televisão brasileira “ Aline” (2009) refilmou a cena ao som de “You Know I'm No Good” ( Amy Winehouse) com Pedro Neschling, Bernardo Marinho e Maria Flor incorporando o trio.

As cenas em “Bande à part” de fato encantam. A sensibilidade e delicadeza com que os personagens são filmados faz com que o espectador tenha prazer em observá-los nos mínimos detalhes. Anna Karina, esposa de Godard à época, que interpreta Odile, é filmada como se a câmera estivesse apaixonada por ela, seus olhos, no filme, aparecem realçados de tal maneira que é possível decifrar os sentimentos da personagem através deles.

Há quem diga que muitos filmes de Godard são verdadeiras aulas de cinema; em “Bande à part”, no entanto, em vez de aluno, o espectador se sente uma espécie de “cúmplice”. Cúmplice, claro, dos personagens no planejamento do roubo, mas – principalmente - cúmplice do diretor no ato de fazer cinema, descobrindo em sutilezas a metalinguagem que é recorrente nas obras de Godard e que torna esse filme encantador.

sábado, 13 de junho de 2009

"As sobrancelhas de Godard" por Paulo Faltay




A história não segue uma linearidade, é descontínua, formada por interrupções e curvas abruptas. Em meio à fuga empreendida por Ferdinand e Marianne em “Pierrot, le Fou”, após ser provocado pela personagem de Anna Karina, Ferdinand gira a direção do carro, escapando da estrada e conduzindo o automóvel ao encontro das águas de um rio. Para Godard, a máxima marxista vai além da História; a vida, o cinema e a sua narrativa também não obedecem a uma arbitrariedade linear, são estruturados por interrupções. Afinal, no próprio tema da evasão, que dá início ao filme e é presença recorrente nos filmes do diretor, como Acossado, Viver a Vida e Alphaville, está contida a ideia de abandono a fórmulas pré-concebidas de se viver/contar uma história.

Para Robert Stam, o uso de interrupções na narrativa é um dos mecanismos que ele conceitua como anti-ilusionistas. Com fundamentação teórica no teatro de Brecht, que inseria em suas peças elementos que explicitavam o próprio processo de produção das apresentações, essas técnicas seriam usadas para quebrar o espetáculo e a suspensão fantasiosa da realidade, e retirar o espectador da confortável posição de receptor. Esse efeito de distanciamento, chamado de Verfremdungseffekt pelo encenador, tornaria evidente à plateia que ela está diante de uma obra de ficção, quebrando, assim, a acomodação criada por uma ilusão diegética, e terminaria por provocar um exercício reflexivo sobre a narrativa.

Não por acaso, as obras de Godard são dos objetos de estudo mais caros ao crítico. E Pierrot, que Stam vai caracterizar como uma “suma das artes”, por suas inúmeras referências a diversas manifestações artísticas, também pode ser definido como suma dos artifícios autorreflexivos e anti-ilusionista no cinema. Logo no começo, é citado o pintor espanhol Diego Velázquez, conhecido por suas pinturas carregadas de autorreferência e jogos de espelho. A citação é, na verdade, um aviso do que viria a seguir.

Entre as diversas quebras da narrativa no filme, pode-se destacar a divisão não-cronológica dos capítulos que dividem o filme, a descontínua sequência de fuga do apartamento de Marianne, com planos fragmentados e temporalidade contraditória, além das autorreferências explícitas. Em uma passagem do filme, após Marianne sugerir que eles se divirtam em um hotel de classe, Belmondo vira a cabeça, se dirige à câmera e diz: “Tudo no que ela pensa é diversão”. Questionado por uma confusa Marianne, desejando saber com quem ele falava, o personagem de Belmondo responde: “a plateia”. Em outro momento, para confundir a polícia, o casal forja um acidente, no que Marianne pondera: “Tem quem parecer real. Isso não é um filme”. Por fim, em uma sequência canônica do cinema, Anna Karina chega a posicionar a tesoura em frente à câmera, em alusão clara ao corte de cena.

No entanto, mesmo reconhecendo, e louvando, o caráter reflexivo e as questões apresentadas em Pierrot, permaneço com uma inquietação em relação ao filme. E a resposta para a sensação pode ser encontrada no início da produção. Em meio à atmosfera superficial de uma reunião burguesa em que é intimado pela mulher a comparecer, Ferdinand se encontra, em mais um artifício autorreferente, com Samuel Füller. Ao ser perguntado sobre o que seria o cinema, o diretor responde: “um filme é um campo de batalha: amor, ódio, violência, ação, morte, - em uma palavra, emoção”! Meu incômodo é justamente esse: Pierrot não me desperta nenhum pequeno indício de emoção.

É tudo excessivo, afetado em demasia, e acaba por se revelar superficial. A irritante característica totalizante está presente na brincadeira com os gêneros cinematográficos, na abordagem política e nas referências artísticas. No misto de homenagem com paródia crítica, Pierrot desloca-se em praticamente todos os gêneros: de filme de gangster, road movie, sozinhos-em-uma-ilha-deserta, a uma pitada de comédia romântica com cenas musicais, que até me surpreende o fato de Marianne e Ferdinand não terem uma cena de encontro com Alpha 60. As abordagens mais políticas – a mediocridade da burguesia, os aviões com napalm da guerra do Vietnã, a ridicularização de signos capitalistas, a situação da política francesa, se mostram, na verdade, de pouca profundidade.

E tudo isso me soa ainda mais estéril na caracterização de “suma das artes”. As inúmeras citações – Jack London, Velázquez, Robert Browning, Balzac, Baudelaire, Picasso, histórias em quadrinhos – não parecem dizer nada, soando vazias e fruto de uma egotrip do repertório artístico do diretor. Infelizmente, não consigo fugir do lugar-comum de que esse exercício self-conscious não está a serviço de uma expressão puramente egóica. Essa sensação é ainda maior quando ele próprio se autorreferencia: no momento em que Jean Seberg aparece na tela do filme-dentro-do-filme, nos remetendo imediatamente a Acossado. E nesta brincadeira extremamente nerd, prefiro muito mais encontrar as inúmeras referências à Odisséia de Homero em Lost. É mais inusitado, e, por isso mesmo, mais divertido.

Pierrot se revela para mim nessa dualidade. Por um lado, ele se apresenta como uma obra rica em elementos que marcaram, mudaram e revigoraram o cinema e que permitem pensar o fazer cinematográfico. Por outro, é um filme que pouco me toca, chego mesmo a ter certa repulsa pelos seus excessos. Entretanto, assim como o diretor, também gosto de uma citação. Recorro então a Charles Bukowski.

Em seu livro Hollywood, coincidentemente marcado pela metalinguagem e autorreferência, o escritor relata o encontro do seu alter-ego com um certo cineasta francês, chamado Jon-Luc Modard. Da conversa, Bukowski conta: Jon-Luc continuava falando. Mostrava se dark e bancava o gênio. Talvez fosse um gênio. Eu não queria ficar ressentido com isso. Mas já tinham me haviam empurrado gênios durante todo o tempo de escola: Shakespeare, Tolstói, Ibsen, G.B. Shaw, Checov, todos esses chatos. (...) A bebida jorrava e Jon-Luc continuava falando. Tenho certeza que disse muitas coisas espantosas. Eu me concentrava apenas nas sobrancelhas dele...”.

Enxergo Godard dessa maneira também. Tenho convicção de que o diretor e seus filmes versam sobre coisas fantásticas e incitam discussões ricas, mas prendo a minha atenção apenas nas suas sobrancelhas. E elas são, no meu caso, a dança de Bande à Part, a adorável canastrice do rosto de Belmondo (e o inseparável cigarro no canto da boca) e, com destaque especial, a melancólica e sublime dança solitária de Nana em Viver a Vida. É só nisso que consigo me concentrar.