Mostrando postagens com marcador truffaut. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador truffaut. Mostrar todas as postagens

sábado, 15 de novembro de 2014

Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois – de 1962, por Karolyn Fernandes













Neste filme de François Truffaut, somos apresentados aos personagens Jules (um alemão tímido) e Jim (um francês extrovertido), ambos ficam amigos passando a compartilhar muitos gostos e ideias em comuns. Jules e Jim levam uma vida boêmia em Paris, que se intensifica com a chegada de Catherine. Neste momento, o filme privilegia o emocional dos personagens, que se ligam profundamente. Com a entrada dessa personagem surgem no filme situações originais e diálogos interessantes, além de um embate na solidez da amizade da dupla, que fica atraído por ela. Catherine é uma figura feminina incomum, já que busca desafiar as normas sociais da época, desejando liberdades masculinas sempre tão tradicionalmente negada as mulheres. Com isso, a personagem de Jeanne Moreau pode ser vista como atemporal, uma vez, que simboliza a libertação do feminino no cinema. Evidentemente, isso é notado em cenas como a que ela se veste de homem e pinta um bigode a fim de sair pelas ruas de Paris fumando uns cigarros. Logo, suas atitudes no decorrer do filme realçam sua emancipação dos preceitos que aprisionaram seu gênero no cinema.

Adiante, notamos que os personagens se encontram distantes do cenário político da época, vivendo praticamente uma fantasia, que se resume apenas aos três. Há então uma quebra no paralelismo do filme que oscila para a realidade, na qual o mundo despreocupado dos personagens é assolado pelas consequências da Primeira Guerra Mundial. Mas maduros, eles se reencontram. Casada com Jules, Catherine reforça mais uma vez seu espírito livre ao revelar para Jim, suas precedentes traições ao marido e seu novo afeto por ele, que se entrega a essa paixão, aprovada por Jules. Assim, notamos o resgate dos personagens em rejeitar a moralidade convencional praticada na primeira parte do filme, na tentativa de viver outra lógica emocional de relacionamento que satisfaçam os desejos.

Dessa forma, notamos a intenção do enredo em abordar o tema do triangulo amoroso, na intenção de se refletir a cerca do amor livre, uma vez que o fracasso da concretização de um ideal de vida que explora outra lógica de amor inescrutável, mas convincente, pode ao menos lançar ao espectador um novo olhar a cerca dos limites da liberdade.


"Jules et Jim", por Raian Oliveira



É impressionante como o filme Jules et Jim (Truffaut, 1960) consegue se manter completamente atual e transgressor com mais de cinquenta anos decorridos e conserva em si uma modernidade pungente tanto esteticamente quanto na questão temática. Trazer uma “revolução” no padrões de relacionamentos, questionar o próprio status do casamento e trazer todas as mudanças atreladas a uma figura que se construiu na dependência de um outro gênero é uma forma arrebatadora de se discutir o tema.

Apesar do filme receber o nome dos dois amigos, o desenlace da trama tem como imã e catalisador de todas as ações a inesquecível Catherine (Jeanne Moreau). Sem muito sermão e pudor ela age em função de si mesma. Seguindo o fluxo da sua vontade, os planos e idealizações de futuro se condensam no aqui-eagora, em um certo apego ao que está no presente e reflexo de sua vontade além
da moralidade. Uma discussão-monólogo na beira de um rio desencadeia um protesto aos moldes dela, utilizando seu corpo como contestação ela se joga no rio ao escutar de Jules (Oscar Werner) seus comentários sobre a inferioridade feminina. “Em um casal, a mulher deve ser fiel. A fidelidade do homem não importa” diz Jules para Jim (Henri Serre) em um de seus “argumentos”enquanto Catherine passeia antes de se jogar.

Não passa muito tempo para que Jules e Jim se apaixonem por ela e iniciem um triângulo amoroso ao qual ela centraliza todas as atenções e faz com que tudo gire em torno dela. Descontinuidades na montagem — que bem melhor explorados em Acossado (Godard, 1960) — e cenas congeladas por alguns frames intensificam a experiência dessa adaptação literária de Truffaut. Em um diálogo com Jules e Jim, Catherine explicita o quanto havia aprendido e mudado após conhecer eles e lindamente começa a esboçar suas expressões normais antes do encontro e da vivência que, magistralmente congeladas, dão a impressão de fotografias dentro do filme, de certa dilatação no tempo como forma de contemplar tudo aquilo que logo mais voltará a se dissolver em movimento.

A casa em um local isolado, cercado predominantemente por árvores, torna-se refúgio e criação de um reino utópico ao qual a rainha é Catherine. Tudo se torna possível no campo dos sentimentos. Jules, Jim e Albert (Serge Rezvani) convivem como se toda possessividade-romântica-monogâmica fosse quase que completamente abolida. A troca de parceiros é constante. Catherine fala em
algum momento do filme que o amor é como ciclos que vêm e voltam, resumo do que seria não só o seu, mas o de Jim — que se apaixona e desapaixona não só por Catherine, mas por Gilberte também — e de todos que se escutam além dos segredos-tabu escondidos pelo mito do amor eterno. Mito esse que, inconformada com o fim do que seria o controle de Jim, anunciado por um casamento definitivo, tenta mata-lo como forma de eternizar e manter o controle sobre aquilo que começara a fugir dos seus planos.

Jogar-se no rio, como havia feito antes, agora como ato final e percepção de que não se poderia ter controle sobre tudo, principalmente em uma relação egoísta. Eternizar e permanecer aquele que tenta fugir, e mais uma vez o rumo dele é preso ao dela. Dessa vez, não mais como a primeira, os resultados de seu protesto corporal não serão vistos por ela, mas ela sabe, em alguma parte, a
sua cristalização não só na vida de Jules, mas na de tantos outros homens pelos quais dominou. E, com certeza, por todos aqueles que se dedicaram a assistir a essa obra-prima. 

Os Incompreendidos, por Larissa Veloso Assunção


Os Incompreendidos, dirigido por François Truffaut no ano de 1959, é um filme dotado de extrema sensibilidade, tanto na questão estética e visual como nos assuntos tratados pela narrativa. Com suas cenas rodadas pelas ruas Parisienses, o primeiro longa do diretor é a reafirmação de suas ideias lançadas na revista Cahiers Du Cinéma sobre o cinema de autor. A cena que abre o filme é um extenso travelling que passeia pela cidade de Paris, acompanhado de uma trilha sonora que será marcante em toda a película. A escolha por gravações realizadas nas ruas, longe dos estúdios, é uma característica da Nouvelle Vague herdada do neo-realismo italiano, movimento que irá influenciar bastante o cinema dos chamados Jovens Turcos e dos cineastas franceses da época em geral. Juntamente com o filme Acossado de Jean-Luc Godard e Hiroshima, meu amor, de Alan Resnais; Os Incompreendidos é considerado um filme base para o movimento. Fica claro que esses diretores não querem mais um cinema “artificial” gravado em estúdios, mas um cinema “real”, em que a câmera circula livremente pelas ruas. Além disso, a questão da temporalidade também é um tema bastante recorrente nos filmes desses cineastas, pois eles propõem um cinema cada vez mais contemplativo e reflexivo.


            É nesse contexto, portanto, que se situa Os Incompreendidos: um filme que narra a história de Antoine Doinel (Jean-Pierra Léaud), um garoto de 14 anos, que mora com a mãe (Claire Maurier) e o padrasto (Albert Rémy), e que, a todo instante, vive a cometer rebeldias. Ele e seu amigo de escola, René (Patrick Auffay), diversas vezes faltam aula para ir ao cinema, por exemplo. Além disso, o relacionamento com seus pais e com seu professor não é nada agradável. Somando-se a tudo isso os anseios, medos e descobertas que todo adolescente vivencia, Doinel é o retrato dessa incompreensão perante a sociedade. Fala-se muito que o protagonista do filme é uma espécie de alter ego do diretor, que teve infância bastante semelhante com a dele: problemas familiares, atitudes rebeldes e, depois, o reformatório. Nesse filme, Truffaut revela sua maestria ao tratar de temas tão recorrentes nas sociedades como um todo de maneira leve e singular, como as questões relacionadas à infância, à adolescência e à solidão, por exemplo. Trata-se, portanto, de uma obra-prima dotada de uma sensibilidade encantadora na maneira em que desenvolve sua narrativa. Visualmente falando, o filme também é incrivelmente detalhista e sensível. Há uma cena, bastante interessante, em que um professor de Educação Física está correndo com os alunos pelas ruas da cidade e, aos poucos, estes vão se dispersando propositalmente. O movimento da câmera, nessa passagem, basta em si mesmo, mostrando o poder do plano-sequência na narrativa. Outra cena interessante, que talvez passe despercebida, é um momento em que Doinel está em um quarto e existem três espelhos em cena. A maneira na qual os reflexos se organizam, por exemplo, criam uma mise-en-scène essencialmente cinematográfica, e essa era uma das questões mais discutidas pelos cineastas da Nouvelle Vague: fazer um cinema que detivesse uma linguagem especialmente do cinema, longe das limitações das adaptações literárias, por exemplo. Os Incompreendidos, portanto, é a prova desse cinema delicadamente cinematográfico. E Truffaut, desse cinema sensivelmente autoral.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

“Fahrenheit 451” (1966, François Truffaut), por Luiza Chimendes da Silva Neves


O filme é baseado na obra literária de mesmo nome do autor Ray Bradbury. A história se passa num futuro alternativo no qual, basicamente, ler é proibido. Por isso, os bombeiros nessa realidade são responsáveis não por apagar incêndios, mas por queimar livros e carregam em seus uniformes o número 451 o qual indica a temperatura, em Fahrenheit, que o papel queima. Um desses bombeiros, Montag, um dia ao voltar do trabalho, é abordado por uma vizinha, Clarisse, que fica responsável por questionar a queima dos livros.

Desse momento em diante, a curiosidade de Montag aumenta e ele inicia a leitura das mais diversas obras, o que o leva a questionar seu trabalho, principalmente após o “suicídio” de uma senhora que não queria viver sem os livros, seu casamento e, por fim, aquela sociedade totalitária na qual ele estava inserido.

 O comprometimento com a temática está em cada detalhe, presente no roteiro, na edição e na direção de arte do filme. Os créditos são narrados e não escritos, na cidade inteira não há placas, nomes de ruas ou de estabelecimentos, os arquivos dos indivíduos não contêm nada mais do que fotos e símbolos, os jornais contêm apenas figuras, até mesmo a explicação no quadro negro não apresenta palavras ou letras de qualquer tipo. É constrangedoramente difícil acreditar que uma sociedade seria capaz de se articular sem a escrita. É quase contraditório, pois apesar da ausência de letras, o mesmo não se pode dizer do letramento dos cidadãos. Todos são bem alfabetizados e capazes de engajar na leitura facilmente, a exemplo da cena em que Montag ler seu primeiro livro.

 Outra característica sempre presente na narrativa de Fahrenheit 451 é o controle exercido por esse Estado totalitário sobre os cidadãos, que são manipulados a acreditar que todos fazem parte de uma grande família. A grande maioria das casas tem antenas para televisão, o que é ressaltado nos “créditos” do filme e no decorrer dele. Na TV, principal responsável pela alienação, há sempre uma figura constante determinando o que se deve vestir ou como se comportar e que a lei está certa. Há também diversas pílulas responsáveis por controlar as emoções dos indivíduos.

Obviamente não poderia faltar, o controle das mídias que, após a fuga de Montag, apresentam uma perseguição seguida de morte forjada, buscando passar uma falsa sensação de conforto para a população e uma falsa aparência de herói para o Estado. Em seu final, quando Montag encontra-se com as “pessoas livros” há uma mudança quase que total fluir do filme, tornando-se mais leve e menos mecânico como era na cidade. A cena final, em que os atores circulam pela floresta recitando seus livros, suas identidades, é praticamente uma celebração à leitura.

 Além disso, Fahrenheit 451 é carregado de críticas à sociedade, como no que se trata do abandono a leitura e a devoção à televisão, e aborda também questionamentos políticos e sociais ainda muito atuais.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Fahrenheit 451, por Kátia Martins



Em um futuro indeterminado, num Estado totalitário, os "bombeiros" têm como função principal queimar qualquer tipo de material impresso, pois para esta sociedade a literatura levaria à infelicidade. Mas Montag (Oskar Werner) começa a questionar tal raciocínio quando conhece uma mulher que o incentiva a ler os livros antes de queimá-los.

Este é o enredo de Fahrenheit 451 (1966 – François Truffaut); o título se refere à temperatura em que os livros são queimados. E para quem assiste a este filme sem informações prévias sobre ele, é bastante surpreendente ver já na sua seqüência inicial, os bombeiros entrando em ação não para apagar algum incêndio, mas sim para provocar um fogo em alguns livros apreendidos. O protagonista do filme e um dos bombeiros, Montag (Orkar Werner), fazia seu trabalho sem nenhum questionamento, até conhecer Clarisse (Julie Christie), uma professora de primário, que faz perguntas sobre sua profissão e o faz refletir sobre ela, apresentando-lhe também a possibilidade de ler escondido os livros com os quais entra em contato através do seu serviço. A partir disso, Montag fica curioso para saber o conteúdo dos livros e passa a roubá-los das casas em que vai apreender os livros.

Fahrenheit 451, na verdade, é uma crítica contundente sobre o totalitarismo, a ausência de prazer e liberdade intelectual e a alienação das pessoas pela sociedade, alienação exercida especialmente através de meios de comunicação como a televisão. Isso fica bem claro no filme através da direção de arte, que dá bastante atenção aos objetos da casa de Montag, que tem uma presença massiva de aparelhos de TV por toda a parte, além de uma enorme TV na sala principal, muito parecida com as televisões existentes hoje em dia (bem grande e pregada na parede); ou no “jornal” que Montag apanha na entrada da casa, cheio de imagens, sem palavra alguma. A direção de arte do filme, aliás, tem um cuidado especial, já que o filme é futurista, tentando projetar os objetos de um tempo futuro, como no caso da TV. Mas como não poderia deixar de ser, esses objetos são datados, como, por exemplo, o aparelho de barbear mais recente que Montag ganha de sua esposa, Linda e o formato de alguns aparelhos, como o telefone. O figurino é outro aspecto do filme que é datado, e apesar de se pretender uma projeção para o futuro, às vezes cai no velho clichê das roupas prateadas ou brilhosas dos filmes futuristas. Afinal de contas, os filmes são documentos do período de sua produção, e qualquer representação do passado ou do futuro existente em um filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido.

Mas para além dessa datação, este filme, em se tratando de uma crítica a uma sociedade dominada pelo poder das imagens, paralelamente traz questionamentos políticos e ideológicos ainda bastante atuais.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"Jules e Jim – Uma mulher para dois ", por Sofia Donovan


A abertura de Jules e Jim já precede a confusão: Você disse “Eu te amo”, eu disse “espere”, eu quase disse “sou sua” você disse “vá”. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) são dois jovens que, através de uma identificação incomum, de uma mútua sensibilidade e paixão pela arte, criam uma amizade incondicional. Somos introduzidos a essa amizade rapidamente por um narrador também presente em vários outros momentos do filme. E então conhecemos Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher excêntrica e misteriosa com quem Jules começa a ter um caso, e por quem Jim também se apaixona. Ao falar de Catherine sinto-me obrigada a dar uma “fugida” dos limites desse filme.

Esta crítica inicialmente seria sobre Viver a Vida, de Godard, porém uma coisa me incomodou nesse filme: Nana (Anna Karina), a protagonista, não parecia um ser humano, eu não consegui encontrar nela uma “mulher de verdade”. Em meio às suas indagações e contradições eu a perdi, e foi esse o fato que me levou a trocar Viver a Vida por Jules e Jim. A relevância da minha mudança de escolha para essa crítica está exatamente na questão da representação das personagens, que são bem diferentes, mas em ambos os filmes, enigmáticas.

Também tive problemas inicialmente para assimilar Catherine, porém, aos poucos ela foi surgindo: Uma intensificação extrema da mulher, em suas inseguranças e desejos, uma figura instável e encantadora. Ao fim, diferente de Nana, ela se tornou palpável. O problema está em como esse processo ocorreu. Suas ações e intenções foram explicadas pelo narrador e pelo próprio Jules, tirando do espectador a liberdade de assimilar e interpretar sozinho o filme.

Catherine muda completamente a vida dos dois, a música que aparece mais de uma vez no filme “Le Tourbillon de la Vie”, sobre a fascinante femme fatale e encontros e desencontros marca bem a situação que os envolve. Mas o filme nunca perde o ar lúdico, com cenas simples e simbólicas como a em que Catherine se alegra ao sair vestida de homem e ser reconhecida como tal ou a que Jules, Jim e Albert (Boris Bassiak), outro homem que ela conquistará, se admiram com a figura de uma mulher de pedra.

A fotografia fragmentada excitante, as belas locações e as fortes atuações de Catherine Jeanne Moreau e Oskar Werner se complementam.

O filme propõe um amor “livre de hipocrisia” que a insegurança dos personagens, que seus defeitos humanos, impedem que funcione.

Os incompreendidos, por Ricardo Duarte



É de se admirar como Truffaut transformou um potencial melodrama em uma história lírica e madura. Tendo em mãos uma estória envolvendo um menor ignorado pelos pais, fugindo de casa e sendo mandado para um reformatório, o jovem diretor conseguiu fazer um filme em que as possíveis lágrimas da audiência são transformadas em pequenos sorrisos contidos, em que há doçura, mas sempre com a presença do amargo. Tais pensamentos também me ocorreram ao término do filme “Um gosto de mel”, de Tony Richardson, com o qual “Os incompreendidos” possui bastante semelhanças e formaria uma excelente sessão dupla.

Com uma forma de direção mais calcada no modelo clássico, ao menos quando comparada com a de seu colega Jean-Luc Godard, Truffaut conta uma história simples de maneira simples. A influência do neo-realismo é marcada, principalmente, pelo uso de atores não-profissionais e locações externas. Falando-se dos atores, seria um erro não comentar do garoto que interpreta Antoine Doinel, Jean Pierre Léaud, que é o grande trunfo do projeto. Sendo um filme que depende, basicamente, da conexão dos personagens com o público, Pierre brilha ao dar vida a um adolescente comum, com os mesmos anseios e curiosidades do que qualquer outro. Fica-se difícil, até mesmo, dividir o ator do personagem, pois aparenta que um foi feito para o outro. O monólogo de Antoine contando sobre sua vida para uma psicóloga é um dos maiores exemplos da potência artística do garoto.

Embora dito no parágrafo anterior que Truffaut segue mais uma espécie de direção clássica, pode-se perceber nesse filme, um manifesto. Não tão visível, violento e radical quanto o presente em “Acossado”, mas escondido de forma sutil já numa das primeiras cenas. O professor deixa Doinel de castigo e esse escreve uns pequenos versos na parede, sendo repreendido e humilhado pelo docente, que reclama de sua forma de escrever. Sendo preso por regras e normas, o protagonista acaba por ter de quebrá-las para se libertar. Uma grande metáfora ao que os cineastas da nouvelle vague faziam: quebravam as regras asfixiantes do cinema clássico, e tentavam inovar e dar um novo sopro de vida ao cinema francês, tão criticado por Truffaut no ensaio “Uma certa tendência do cinema francês”.

Um dos pontos mais positivos do filme é o seu final. Optando por um encerramento em aberto, o filme deixa com o público o poder de decidir o futuro de seu protagonista (ou deixaria, caso não houvesse continuações). No última cena, na qual Doinel olha para a câmera de uma forma extremamente marcante, vários sentimentos, como o medo, a incompreensão, a dor, são passados apenas com esse olhar, de forma bastante melancólica. O último fotograma é congelado, e o olhar fita fixamente a platéia por mais algum tempo. É o gesto máximo de carinho do diretor. O personagem é congelado após sua triunfante fuga, ficando preso para sempre naquela imagem estática, protegido da ação devastadora do tempo e guardado intacto nos nossos pensamentos, como um inseto no âmbar.

Jules e Jim - Uma mulher para dois, François Truffaut, 1962, por Bruna Belo



Jules e Jim, considerado por muitos a obra-prima de François Truffaut, é seu terceiro filme e um dos que melhor representa a nouvelle vague francesa, fazendo uso de técnicas de filmagem baseadas na improvisação e desrespeitando as regras clássicas da montagem. Baseado no romance autobiográfico de Henri-Pierre Roché, o filme possui dois dos temas centrais da obra do diretor: o amor e as mulheres.

Ambientado na Paris do inicio do século XX, em plena belle époque, conta a história de dois amigos: Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre), ambos escritores, o primeiro é austríaco, retraído e introspectivo, enquanto o segundo é francês, bem humorado e extrovertido. Depois de uma viagem às ilhas do mar Adriático, eles conhecem Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher livre, liberal e apaixonada pela vida. Ambos se apaixonam por ela, dando inicio a uma amizade sólida e a um dos mais famosos triângulos amorosos do cinema. Jules casa com Catherine e tem uma filha, porém após a Primeira Guerra Mundial – na qual os dois amigos lutam em lados opostos – ela já havia perdido o interesse no seu marido, passando a ter casos extraconjugais. Quando reencontram Jim, Catherine se descobre apaixonada por ele e os três passam a viver juntos.

O filme tem um narrador em off para, como disse Truffaut, evitar o corte dos textos mais belos, dando conta das partes mais densas do livro. Além disso, ele ajuda a dar sentido às ações e diálogos entre os personagens, que, sem a narração, poderiam parecer sem propósito, ajudando na fluidez do filme, que une cinema e literatura de forma encantadora.

Como não podia deixar de ser, Truffaut – um dos fundadores da nouvelle vague – incorporou a Jules e Jim o surgimento de tecnologias de filmagem, a fim de obter a nova linguagem cinematográfica tão desejada, fazendo uso de imagens congeladas e jump cuts. Foram usadas câmeras portáteis as quais, por serem leves, facilitavam a locomoção, já que podiam ser levadas na mão, aumentando a liberdade do cinegrafista (Raoul Coutard) para fazer o que quisesse, por exemplo, algumas cenas do pós-guerra foram filmadas por câmeras montadas em bicicletas. Apesar dessas técnicas já terem sido usadas em seus filmes anteriores, em Jules e Jim o diretor aperfeiçoa seu estilo, marcando uma transição, de uma direção livre e espontânea para uma mais refinada visualmente.

A utilização de congelamento da imagem usado ao longo do filme é um dos aspectos que chama mais atenção na montagem, pois perpetua determinados instantes, como expressões de Catherine e o reencontro dos amigos após a Guerra.
O filme pode ser dividido em três partes, assim como o livro: na primeira ele mostra a amizade de Jules e Jim, como se conheceram, como é a relação dos dois; na segunda parte eles conhecem Catherine, e Jules se apaixona e casa com ela; a terceira começa a partir do envolvimento de Jim com Catherine, concretizando o triângulo. Porém, essa divisão não ocorre apenas no roteiro, essas mudanças também podem ser percebidas através da montagem e da trilha sonora.

A fluidez e “rotação” (swirling) das imagens, a edição rápida e a musica vivaz da primeira parte do filme se encaixa perfeitamente à jovialidade, às brincadeiras e às emoções exageradas dos personagens. Na segunda metade, enquanto nós entramos mais fundo na intimidade dos personagens e enquanto a trama começa a se complicar, o filme desacelera.

A trilha sonora, composta por Georges Delerue, lembra composições de Claude Debussy e Erik Satie, dois dos mais proeminentes compositores franceses do período em que a historia se passa. É possível perceber que a relação entre personagens se torna mais tensa e complicada através do desenvolvimento dos temas musicais, por exemplo: há uma melodia que se repete durante toda a trama quando os personagens se encontram, primeiramente ela é idílica (quando eles visitam o campo e vão à praia de bicicleta), depois, com o decorrer da historia, essa mesma melodia se torna mais lenta e sombria. A partir desta reordenação dos temas musicais no decorrer das cenas, o diretor sugere significados implícitos na narrativa. Todo esse cuidado com a trilha sonora ajuda, e muito, a dar uma unidade à obra. A música Tourbillion, que ficou famosa após o filme, é cantada por Catherine em determinada cena e é capaz de sintetizar em poucos versos a sua personalidade e toda a relação dos três.

Embora Jules e Jim sejam os personagens principais, é Catherine quem rouba a cena, e sintetiza o espírito do filme. É ela quem os guia, comandando a relação entre eles. Jeanne Moreau, após essa sublime interpretação, ganhou fama internacional e passou a ser um dos rostos mais lembrados da nouvelle vague, já que esta personagem é uma das que melhor sintetiza os ideais desse movimento, a confusão e intensidade de emoções.
Com uma sutileza inerente ao diretor, Jules e Jim, se tornou uma celebração à sinceridade para com os seus sentimentos e emoções. Uma das melhores adaptações literárias para o cinema, a história é, como disse o próprio Truffaut, um “perfeito hino ao amor e, talvez, à vida”.



Fontes:
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: an introduction. Ninth Edition. New York, NY: McGraw-Hill, 2009.
http://www.scribd.com/doc/17704250/Jules-et-Jim-Fotonouvellevague

OS INCOMPREENDIDOS – Uma educação, por João Roberto Cintra


No filme “Educação” (An Education, 2009), da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, há o confronto entre dois tipos de educação: a formal, tradicional, como se tem nas escolas e uma outra, pouco ortodoxa, a da experiência, do dia a dia. Na Inglaterra dos anos 60, com Beatles e Rolling Stones a ponto de pipocarem, fica difícil para a protagonista não se seduzir em deixar a escola para conhecer o mundo. Entretanto, mais cedo do que esse período, a educação tradicional já não bastava para uma juventude que cada vez mais não queria olhar apenas para professores e livros, mas também para o mundo e fazer dele também um aprendizado.

Talvez seja a partir desses paradigmas sobre a educação que se possa começar a (sem trocadilho) compreender “Os incompreendidos” (Les 400 coups, 1959). Filme de estréia de François Truffaut, ele funciona como uma síntese desse sentimento de inadequação por parte dos jovens à educação tradicional que se impõe como “a verdade”. Antoine Doinel é um garoto que parece não pertencer a qualquer esfera em que esteja: em casa, enfrenta uma mãe descuidada; na escola, entra em conflito com o professor. Nesse meio tempo, suas escapadas à rua, ficando dias sem voltar para casa, parecem ser a melhor parte da sua vida, sem qualquer amarra social e tradicional em voga – apenas a descoberta da cidade e da (sua) própria vida.

Um dos clássicos mais celebrados do cinema, há talvez no enredo e na figura de Antoine Doinel a cara de toda a geração responsável pelo movimento do qual o filme se originou. A Nouvelle Vague trazia nos seus realizadores um olhar para o cinema o mais distante possível do que se vinha produzindo até então. O movimento nasceu dentre outras maneiras de uma consciência sobre a memória e a história do cinema, de como tinha sido feito até então – principalmente pela prática da cinefilia, com jovens assistindo e discutindo os filmes em reunião com amigos. Truffaut, Godard, Chabrol e outros da ‘turma’, começaram a enxergar o cinema de outra maneira – não pela gramática formal de se filmar, mas um modo mais livre, sem amarras desse formalismo. Assim como as experiências que buscava Doinel.

Essa ‘nova onda’ que propunha esses jovens realizadores iria de encontro à forma de se conceber o cinema, de se contar uma história. Isso já é claro na forma quase documental que é contado “Os incompreendidos”. Mais que a história do garoto é um recorte na sua vida, em um momento culminante de passagem da infância para a adolescência. As duas fases são recorrentes em todo o filme: as brincadeiras do protagonista com os amigos, a reação das crianças assistindo ao teatro de bonecos; do mesmo modo, Doinel fuma, rouba, é levado para uma delegacia e depois para um reformatório – universos não mais infantis. Sem grandes amarras na história de começo ou fim, o que temos é a história do ‘entre’, o meio, o que não é ainda. Em suma, um rito de passagem do personagem principal – e um rito também para o seu realizador. O olhar enrijecido dos adultos não via o que Doinel podia ver. Os cineastas da Nouvelle Vague não queriam mais enxergar daquele modo.

Interessante pensar que os filmes franceses até o movimento seguiam as convenções do cinema de forma extrema para parecer o mais natural, o mais real possível. Escrevendo para a revista Cahiers Du Cinema os críticos diziam que as convenções cristalizadas retiravam do público a verdadeira noção do que é real. Nos filmes da Nouvelle Vague essas convenções começaram a ser desrespeitadas em nome de mostrar o tempo inteiro ao expectador que aquilo não era a vida, mas um filme. Quebra de racord, montagem não linear, diálogos livres (sem estar diretamente atrelados a “contar” a história) são algumas das características dos filmes, que causaram estranhamento na época (ainda causam!), mas estão a serviço de uma legitimidade da mise-en-scène menos maniqueísta.

Uma das grandes cenas de “Os incompreendidos” está exatamente no encontro do protagonista com a psicóloga no reformatório: mesmo com a voz dela, há o estranhamento de sua imagem não ser mostrada em momento algum. De forma orgânica, Truffaut nos diz que não há um diálogo entre as duas instâncias, uma via de duas mãos, há, sim, um interrogatório. Apesar do estranhamento, não há nela nada de artificial: as respostas diretas, a inquietação das mãos, o olhar perdido de Doinel para nós (ele olha para a câmera, para a platéia) mostram agora muitas verdades e convergem para uma das mais reais e sinceras passagens que o cinema produziu.

"Jules et Jim", por Marcílio Camelo


AVISO: SPOILERS!!

Assunto freqüente em filmes, o triângulo amoroso pode parecer tema sem muito valor para algumas pessoas, mas tudo depende da forma como é tratado. Truffaut traz para ao cinema uma história baseada no livro homônimo do escritor francês Henri-Pierre Rouché, e não faz a mínima questão de esconder o tom literal ao longo do filme. Pelo contrário, o diretor preenche a trama com diálogos vivos e narração em off, o que aparenta ser uma leitura visual de um livro, surpreendentemente interessante.

O filme retrata a França de 1912, onde uma amizade se inicia espontaneamente entre o austríaco Jules e o francês Jim, que é convidado para uma festa à fantasia pelo estrangeiro, mesmo sem se conhecerem. No início do filme Truffaut usa planos rápidos e curtos para montar o crescimento dessa amizade, que é pura, sem maldade. Vemos que os dois se divertem com namoricos, e chegam até a namorar uma mesma mulher, mas levianamente. Após o início veloz, somos apresentados a Gilberte, namorada de Jim, ela pede que ele não saia do seu quarto, mas o jovem não está disposto à estabilidade. Esse tipo de relação descompromissada que ambos os amigos costumavam ter com as mulheres é mostrado também quando Jules fala dos amores que deixou em sua terra. Nesse contexto, não era de se esperar que os dois sentissem um amor forte e duradouro por uma mulher. Mais estranho ainda seria eles dividirem um amor verdadeiro pela mesma mulher, o que estava por acontecer.

Quando Jules leva Jim para ver uns slides na casa de seu amigo músico Albert, ocorre um momento de fascinação pela figura de uma estátua feminina, um rosto que se fazia perfeição de mulher para ambos. Movidos pelo desejo, os dois vão ao museu numa ilha do mar Adriático e se deparam com a estátua, ficam admirando e depois retornam para casa. Jules conta a Jim da chegada a Paris de três moças que estudavam com um primo seu em Munique. Eles vão jantar com elas e acabam encontrando um rosto igual ao da estátua, é Catherine. Jules começa a sair com ela, sem a presença de Jim, mas depois o chama para um passeio a três. Porém, Catherine está vestida como homem, e assim os três se divertem na rua com seu disfarce. Quando chegam numa ponte, a moça aposta corrida com os rapazes, mas trapaceia e acaba vencendo. Uma metáfora da relação que se estabelecerá entre o trio.

Os três viajam para uma casa dita dos sonhos, junto à natureza, e desfrutam da amizade que amadurecia. É nesse cenário de isolamento da sociedade que Jules propõe casamento a Catherine, que não aceita, mas isso não deixa o rapaz magoado. Vemos aí a passividade que Jules manterá ao longo do filme em relação à sua amada. De volta a Paris, Catherine mostra sua personalidade forte e imprevisível quando se joga no rio em protesto aos comentários machistas de Jules. Ela quer ser sempre notada, jamais desprezada. Ela deve estar no comando, sempre à frente dos dois, como na corrida da ponte. Talvez para decidir algo importante na relação dos três, Catherine tenha marcado um encontro com Jim no dia seguinte. Mas devido ao atraso de ambos, eles não se encontram e a história toma um rumo diferente. Jules e Catherine se mudam para a Áustria e se casam. A Primeira Guerra Mundial irrompe, separando os amigos por vez.
Essa forte amizade resiste à guerra, na qual os amigos temem se matar enquanto seus países lutam contra si. Para retratar esse momento, Truffaut insere cenas de documentários bélicos, trazendo um tom realista. Enquanto isso, Jim mantém contato com Gilberte por correspondências e chega a se encontrar com ela por uma semana, mas o envolvimento dos dois continua inconsistente. Por outro lado, Jules troca cartas de amor com Catherine que, grávida, aguarda seu retorno. Com o fim da guerra, os amigos voltam a se escrever e Jim é convidado a ir visitar o casal.

Agora uma família completa, Jules, Catherine e a filha Sabine recebem o amigo no chalé próximo ao Reno. Jules fala de seu trabalho como pesquisador de insetos e Jim comenta que está escrevendo para um jornal francês. A aparente harmonia familiar, em que a esposa se situa como doméstica e mãe atenciosa, é perturbada quando Catherine mostra os aposentos da residência: o casal não dorme junto. À noite, Jules conversa a sós com o amigo e conta que seu casamento não é mais real, sua esposa não o trata mais como marido, apenas respeita-o na casa. Mas o amor de Jules é intenso e sem cobranças, ele aceita os amantes da esposa, só não quer que ela o deixe como chegou a fazê-lo por seis meses. Ironicamente, Catherine está prestes a abandoná-lo de novo, dessa vez para ficar com seu amante Albert, o mesmo músico que ‘apresentou’ ao amigo a beleza de Catherine em forma de estátua.

Uma vez ciente da situação, Jim conversa com Catherine e, durante um belo passeio pela mata, ela conta como deixou de amar Jules, que lhe pareceu um estranho ao voltar da guerra. Ele já não lhe era mais suficiente, já não lhe servia. Então, permeada por amores banais, amantes de diversão, Catherine assumia o papel do marido, do infiel na relação, e cedia a Jules a parte submissa da esposa resignada. Uma interessante inversão de valores dita as regras desse jogo amoroso que se encaminha para o trágico.

Jim não se deixa desejar a esposa do amigo, e o faz sem saber por quê. Mas a inibição é banida quando o próprio Jules lhe diz para amá-la e casar-se com ela, contanto que os três continuem se vendo. A absolvição de culpa faz com que Jim venha a morar no chalé. ‘Os três loucos’, como eram conhecidos na vila, estavam felizes com Sabine, morando juntos. Mas Jim teve de retornar a Paris por causa do seu trabalho. Assim, mais uma vez a felicidade é separada, e ficamos na dúvida de que ela iria retornar ou não.

Em sua filosofia, Catherine acreditava que o amor era curto, mas retornava constantemente. Suas aventuras de antes tinham acabado, ela estava disposta a esperar o seu amado. Porém, Jim volta para os braços de Gilberte, e adia seu retorno à Áustria. Os dois trocam cartas, e Catherine se pergunta se ele a ama. Até que ela nota a infidelidade de Jim, e se vinga dormindo com Albert, seu equivalente de Gilberte.

Finalmente Jim retorna e recomeça com Catherine sua história de amor, uma vez que ambos estão quites, mutuamente traídos. Dura pouco até que um novo problema surge: ela não consegue engravidar. O sonho do casamento e dos filhos começa a se destruir, juntamente com o relacionamento dos dois. Um novo fim aproxima-se, dentre tantas idas e vindas, tantos amores curtos que Jim e Catherine sentiram um pelo outro. Ele volta para Paris e troca cartas com ela, que se vê grávida e quer que ele retorne. Mas a doença de Jim o impede de voltar. Ele é cuidado por Gilberte, o que causa ciúmes e desconfiança a Catherine. Uma confusão com as cartas os afasta ainda mais. O relacionamento realmente acaba quando Catherine perde o filho que esperava.

Após algum tempo Jules e Catherine decidem morar em Paris. Albert continua sendo amante dela, e Jules permanece tolerante com a amada. O casal de fachada reencontra-se com Jim, que está noivo de Gilberte. Mas Catherine está mais desequilibrada e inconformada do que antes, assim, ela atrai Jim para sua casa e tenta sem êxito matá-lo com um revolver. Jim foge e eles só se vêem de novo casualmente em um cinema, com Jules presente. Os três saem no carro de Catherine e vão para um café perto de um lago. O alívio que Jim sentia por perceber uma frieza vinda de Catherine se fez curto, e um final definitivo apareceu para os dois: Catherine guiou seu carro até o abismo de uma ponte quebrada, matando a si e a quem ela muitas vezes amou.

Amor curto, longo, repentino, constante, intermitente, amor-paixão, amor-platônico, amor-amizade. Truffaut trata desses amores em seu filme nouvelle vagueano, amores tão diversos e complexos quanto aqueles que os sentem. A intensidade dos sentimentos vividos pelos personagens reforça o drama/tragédia desses seres confusos, ambíguos, que apenas agem, não tentam se explicar, que vivem e morrem por suas causas particulares desconhecidas. O único amor que consegue sobreviver aos encontros e desencontros do filme é o que une os dois amigos, permanecendo puro e admirável. A amizade de Jules et Jim.

“Beijos Proibidos”, de François Truffaut, por Renato Souto Maior



Antoine Doinel em plena juventude parisiense pode ser algo curioso de se observar, como um espião. O título em português, ao ser pessimamente traduzido, faz com que se perca boa parte do sentido e da relação do nome do filme com sua história. Em duas específicas cenas Doinel tenta roubar, literalmente, o beijo de duas igualmente jovens, em tom desastrado; e isso revela muito da personalidade de Antoine. Sua alcunha de incompreendido reaparece logo no início do longa, quando ele é expulso do militarismo por sua incapacidade de se adequar a tamanha mesquinhez e hipocrisia. O ano é 68, e as crises políticas e os conflitos de guerra fervem em um âmbito responsável pelo incidente no mês de maio daquele mesmo ano. A relação é colocada, mas não explorada. A câmera de Truffaut se debruça em um cotidiano por vezes “malandro”, com um estilo e ar de boêmia críveis e integrantes do personagem Doinel.

Sua dificuldade quase total – o quase por causa da sua pseudo-relação com Christine, jovem aparentemente disposta a ter algo com o “estranho” e problemático Doinel – em se relacionar com mulheres é explicitada nas tentativas do jovem em sair com prostitutas e insistir em beijá-las. O beijo do título em português está longe de ser proibido, de fato; é algo roubado, em tentativa. Depois de insucessos em vários empregos Antoine se encontra e vê em uma agência de detetives uma chance para exercitar e colocar em prática todo seu potencial de voyeur em ânsia para solucionar casos externos que acabam por lhe aparecer como “trabalho”. Doinel parece deslocado em uma sociedade não acolhedora ao seu jeito de ser e pensar. A solução, então, para este ajuste se dá perfeitamente adequada através de um emprego onde seu ofício é seguir e “investigar” a vida do outro, e não a sua própria. Como pessoa não pertencente ao meio em que vive, ele transita neste ambiente com transparência e facilidade próprias de uma pessoa física e socialmente desinteressante. A agência de investigação recebe alguns casos, e Antoine é encarregado de atuar em vários deles, com sucesso. O mais relevante dos pedidos é o de um dono de loja de sapatos que vai em busca de um detetive para descobrir o motivo pelo qual seus funcionários o odeiam. Em um trecho engraçado e inspirado o contratante se antecipa logo e diz que sim, é ali mesmo que quer estar, e não em um psicanalista.

O filme carrega uma narrativa leve, até ingênua, e o faz de maneira linear, comportada e muito bem filmada, mas previsível. O envolvimento de Antoine com a perfeita e intocável mulher do dono da loja no qual trabalha, a serviço de seu chefe detetive, aponta para uma possibilidade de deslumbre em uma via de seres humanos extremos. Quando o desengonçado e não muito atraente Antoine se vê assediado por uma mulher inquestionavelmente linda, as coisas parecem obter um estranho equilíbrio. A tal da “beleza interior” é o que parece ter atraído a suposta perfeita senhora, e o futuro do suposto relacionamento fica em suspenso. Truffaut coloca seu protagonista de volta ao convívio de Christine, sua amiga e pseudo-namorada do começo da trama, e parece ter nesta volta um fim possível. O incompreendido Antoine ensaia, finalmente, um possível “final feliz”. Ao passearem em parque parisiense, muito bem enquadrado, filmado e explorado, Truffaut revela um outro personagem, anteriormente mostrado, mas de forma sutil, como um segundo detetive, um olhar externo ao de Doinel. Ao se aproximar, vomitar um texto açucarado, e ir embora, o segundo “detetive”, ou vouyer, se declara a Christine, e confessa ter passado as últimas semanas a segui-la. Sua intenção é nobre, e verossímil, mas a estranheza com que se coloca faz Christine se amparar mais fortemente no já enlaçado Antoine. Em uma sucessão de “fracassos” e tentativas frustradas de adequação em ambiente estranho, Doinel é deixado, nesta produção, em situação muito favorável. O universo de “Beijos – sim – Roubados” sinaliza uma situação desfavorável, pela qual a própria França ultrapassava, que não parece atingir seus protagonistas. A ausência de um corpo, uma voz que seja, a retratar e ressaltar o turbulento período de 68 autentica e permite Doinel ser apenas um desengonçado, não muito atraente, rapaz boêmio de uma Paris suscetível ao puro e simples amor, roubado ou não; somente ele.

“Os Incompreendidos”, por Camilla Vanessa


"Os incompreendidos" narra a história de Antoine Doinel, um garoto de 14 anos que possui uma vida conturbada; professor carrasco, pais com o casamento em crise, falta de dinheiro, falta de compreensão, além de más influencias externas. Ele entra em várias enrascadas, foge, rouba etc.. Parece não conseguir paz.

O filme começa mostrando a Paris que todos conhecem, mostrando a Paris da torre Eiffel, mas o que ele tenta mostrar em seu desenrolar é a paris comum, de cidadãos comuns, que tem problemas a enfrentar.

Nessa obra que mistura ficção e documentário, Truffaut reforça a “infância de Jean Vigo” (em referência ao diretor que nos anos 30 fez o influente "Zero em Comportamento"), uma infância não mais inocente, mas cheia de problemas e responsabilidades. Hoje pode ser visto como mais um filme de infância/adolescência perturbada, mas deve-se levar em consideração seu poder de ruptura, não foi o primeiro a trazer este tipo de tema, mas a história envolvente e a forma delicada com que o tema foi tratado fazem com que se destaque e não seja esquecido facilmente. Diferente de vários filmes que tratam dessa mesma faixa etária, Truffaut deixa o personagem se fazer entender, faz com que ações atrapalhadas não sejam mais vistas como simples frutos de “Aborrescentes com nada na cabeça”, mas sim como uma espécie de fuga, de explosão sentimental. O filme não é cômico, nem melodramático, consegue um equilíbrio entre os dois. A fotografia ainda possui aspectos “conservadores”, com planos mais longos e distanciados do que era usado por outros diretores da Nouvelle Vague. Isso garante um envolvimento um pouco aberto do público, remetendo aos filmes do neo realismo italiano, os quais traziam histórias leves sem chegarem a ser um drama, e com um certo distanciamento que lembrava o documentário.

Deve-se dar destaque a cena final, de forma sutil, bela e delicada a câmera acompanha Doinel sem ser invasiva, mas mais uma vez fazendo do público, confidentes de sua vida.

“Fahrenheit 451”, por Mariana Fidelis



“Fahrenheit 451” é um filme de François Truffaut, lançado em 1966, adaptação do livro homônimo de Ray Bradbury de 1953. Sua trama desenrola-se no futuro, num país totalitário marcado pela censura cultural em que é proibida a posse e acesso a todo e qualquer tipo de livro. Nesse contexto os bombeiros tornam-se responsáveis por cumprir essa interdição através da caça e queima das obras literárias. Nosso personagem principal, um destes bombeiros, chama-se Guy Montag (Oskar Werner), distinto inicialmente pelo trabalho dedicado, um homem calado que apenas cumpre bem suas tarefas, digno da admiração de seus superiores, prestes a receber uma promoção. Ele é casado com Linda (Julie Christie), uma mulher que passa seus dias em casa, caracterizada pela forte influência e dominação que a televisão exerce em sua vida, basicamente uma mulher alienada que reproduz os valores passados através da programação televisiva, sem questioná-los.

Os argumentos utilizados para justificar a proibição aos livros são revelados na fala do Capitão à Montag quando encontram uma das maiores bibliotecas prestes a ser incendiada: 1) os livros são histórias tristes que causam infelicidade àqueles que as lêem, e tudo isso desnecessariamente, pois são inventadas, versando sobre pessoas e situações que nunca existiram; 2) os livros trazem de certa forma desigualdade entre os homens, pois instauram um universo de vaidades e arrogância entre eles. Dessa forma os livros são perseguidos, e devem ser banidos da sociedade. A ameaça trazida pelo conteúdo literário à manutenção do sistema governamental totalitário é transferida, sem justificativa e razão, para seu material, isto é, o objeto-livro, como nos mostra a cena em que Linda ao descobrir um livro que cai do seu esconderijo joga-o para longe, num gesto de medo e nojo.

O ponto de inflexão da trama é o encontro de Montag com Clarisse (Julie Christie), jovem que instaura um espírito de indagação, reflexão, e curiosidade no bombeiro, ao perguntar se ele alguma vez já havia lido um daqueles objetos que queima. A partir daí ele passa a ler escondido os livros que furta do trabalho.

Ao entrar em contato com o universo literário, descobre algo que havia se perdido na sua vida, considerada vazia, como se os livros resgatassem sentimentos e uma noção de humanidade até então esquecidos. A partir de presenciar a cena de uma mulher que prefere morrer queimada entre seus livros, Montag depara-se com a contraposição entre a paixão e os sentimentos envolvidos no universo literário e o vazio e a frieza da normalidade e mediocridade cotidiana. Essa contraposição transparece por exemplo quando ele lê o trecho de um livro para sua mulher e amigas, acusando-as de serem zumbis (“Vocês não vivem, apenas matam o tempo!”), ou quando traz a metáfora de que “por trás de cada livro há uma pessoa”, resgatando o sentido simbólico dos livros. Quer dizer, Montag reconhece nos livros uma humanidade que não encontra nas pessoas ao seu redor.

O contato com os livros lhe rende uma mudança de comportamento não só no trabalho, mas principalmente em casa, algo que é reprovado por sua mulher, que acaba por denunciá-lo para a própria corporação para a qual trabalha. Tendo sido descoberto por seus colegas de trabalho, Montag é obrigado a queimar seus livros em sua própria casa, salvando apenas um dentro da roupa, e acaba por assassinar seu chefe, o capitão da corporação, também queimado. Dessa forma ele torna-se um foragido procurado pela polícia, mas consegue fugir graças à referência dada pela sua amiga a jovem Clarisse de um grupo de pessoas admiradoras da literatura que moram nas florestas, fora das garras do estado.

Incomoda-me um pouco no filme essa mudança radical de atitude de nosso protagonista que passa de funcionário exemplar à fora da lei. Revela-me um pouco de superficialidade na construção da personalidade do personagem, que não possui muita consistência, mudando sua atitude de um lado para outro, sem um motivo aparente muito forte (a não ser pela conversa uma vez apenas com Clarisse). De forma que, se é tolerada a passagem de bombeiro exemplar à admirador da literatura de uma hora para outra, por que não seria aceitável por exemplo que sua mulher Linda o apoiasse ao invés de denunciá-lo? Isso para mim não fez muito sentido.

A questão do controle social pelo sistema de comunicação estatal através da presença e influência da televisão na vida das pessoas, tácita durante todo o filme (por exemplo no comentário da vizinha de Clarisse, que chama atenção para o fato de todas as casas possuírem antena parabólica), revela-se finalmente na manipulação de informações quanto ao paradeiro de Montag quando, após de chegar a essa comunidade na floresta, assiste a encenação de sua própria morte na televisão. Engraçado que essa manipulação e controle sociais sejam tão claramente revelados apenas para aqueles que já estão do lado de fora do sistema.

Nossa trama se desenrola, portanto, no contexto de uma sociedade totalitária que exerce seu poder de controle social institucionalmente através da polícia e dos bombeiros, e também culturalmente através do forte sistema televisivo de comunicação. Esse cenário faz parte de uma tendência literária dos anos 50 e 60, época de uma sociedade apreensiva marcada pelo totalitarismo do mundo pós-guerra, conhecida como “distopia” – ao lado por exemplo de “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa tendência pode ser caracterizada pelo pessimismo quanto ao futuro, geralmente marcado pela presença de um estado totalitário e opressivo, baseado no controle e na manipulação social exercida pelas tecnologias sobre a vida das pessoas, e justificado no motivo de uma “ameaça constante” que deve ser combatida (seja a ameaça de outros países combatida com guerras, seja, no caso do nosso filme, na ameaça que os livros trazem para a igualdade e felicidade das pessoas).


Quanto ao formato do filme, não vejo muitas aproximações com as inovações trazidas pela Nouvelle Vague, como por exemplo a estrutura fragmentada de narração. Apesar de Truffaut ser um dos diretores mas representativos do movimento, esse filme é um pouco diferenciado dos outros talvez por ser uma ficção cientifica, ou por ter sido gravado fora da França e em inglês.

Um dos pontos que podemos destacar de proximidade em relação à outras obras da Nouvelle Vague é a questão da autorreferência, não só na dupla atuação da atriz Julie Christie, como Linda e Clarisse (o que enfatiza ainda mais a contraposição em relação a personalidade das duas mulheres), mas também pelo enquadramento dado nos livros nas cenas de incêndio, quando surge a oportunidade de fazer referencia às influências do movimento, como Sartre, os Cahiers du Cinema, ou o próprio Ray Bradbury, autor do livro que dá origem ao filme.

Do ponto de vista estético, a construção dos cenários da sociedade futurista é marcada por cores fortes, embora possamos dizer que a ficção cientifica não é o apelo mais forte do filme. A não ser pelo metrô suspenso (o que deve ter custado caro para a produção), o modelo das televisões (finas, de tela grande, pregadas na parede, com opções de interação), e pela (tosca) cena dos policiais voadores já quase no final do filme (durante a perseguição à Montag), acredito que as referências estéticas sejam muito mais atuais que futuristas, como a arquitetura das casas e as roupas das mulheres.

A afinidade com a Nouvelle Vague e que o filme tornou extremamente atual, apesar da moldura futurista, deve-se principalmente à temática. A questão da censura, da luta contra a indústria cultural e a sociedade do consumo estão presentes no filme, através do argumento de salvação da cultura humana pelos livros, sem os quais “todo o conhecimento humano desapareceria”.

É a partir daí que analisamos o desfecho da história, na relação entre cultura e memória. A literatura, e a tradição escrita em geral, surge como uma tentativa de perenizar a(s) história(s) humana(s) no tempo, porém, tendo em vista a proibição em relação aos livros, não resta outra alternativa a não ser um retorno à oralidade. Numa volta à tradição de civilizações antigas que repassavam suas historias através do falar/narrar/contar, a comunidade das “pessoas-livro” resiste pelo esforço de uma forma diferente de relação com os conteúdos da cultura, sem a mediação dos livros, mas apenas através da memória e da oralidade.

A comunidade das “pessoas-livro” isolada na floresta revela a arquitetura da sociedade totalitária e opressiva da cidade, que na interdição do acesso à cultura, do acesso aos livros, pretende o sufocamento de qualquer possibilidade de crítica e oposição ao sistema. Resta apenas a possibilidade de se localizar completamente fora dessa sociedade, viver como outsiders, que recuam e recusam o confronto direto com a autoridade. Preferem a fuga, e ficam a espera do dia em que possam reproduzir aqueles textos que memorizaram fielmente para que sejam impressos de novo. Por isso, no comentário ao filme, Truffaut destaca o caráter do elogio à astúcia que perpassa o filme:

“Não pretendi transmitir qualquer mensagem, mas apenas mostrar uma forma de luta contra a autoridade arbitrária. [...] Sou contra a violência e a intolerância porque elas significam confronto. [...] Se quero alguma coisa, o meu desejo é tão intenso que não perco tempo com discussões. [...] Para mim, quem substitui a violência é a fuga, não a fuga do essencial, mas a fuga para se obter o essencial. Creio ter ilustrado isso em ´Fahrenheit 451´. É um aspecto do filme que escapou a todo mundo e me parece importante: a apologia da astúcia. ´Ah, então os livros estão proibidos? Então, muito bem, vamos aprendê-los de cor´. É o supra-sumo da astúcia.” (Truffaut, 1966, disponível em: )

A título de opinião pessoal sobre a obra, “Fahrenheit 451” é por fim um filme que recomendo não só pelo seu caráter político, mas principalmente por seu caráter poético na representação de um amor à literatura e à cultura do livro impresso, que perde cada vez mais seu espaço para outras formas de divulgação, em especial no meio digital.

“Os Incompreendidos”, por Natália Tavares


Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) só tem um momento de fraqueza. Dentre tantos outros, esse é um dos aspectos do primeiro longa de Truffaut que mais me chamou atenção. Impossível não se emocionar com Doinel quando ele chora no carro da polícia sendo transferido para a prisão, observando as ruas da cidade, único momento em que a fragilidade de uma infância prematuramente perdida aparece na tela. O que demonstra também outro traço importante do filme, a personalidade do personagem principal. Uma criança que amadureceu cedo demais, seja pela vontade de viver sua própria vida, independente dos pais e da escola, seja pela ausência de suas figuras paternas que não conseguem preservar sua inocência infantil.

A rebeldia de Antoine se reflete nas fugas de casa, nos pequenos roubos e no descaso com sua educação e acredito que seja fruto de sua relação com a mãe (Claire Maurier), que pouco demonstra afeto por ele - desejando tê-lo abortado e deixando-o aos cuidados da avó nos primeiros anos de vida – e pouco respeita sua família, ao trair o marido (Albert Rémy). Antoine, ainda criança, é exposto a tudo isso. Ele é sim um garoto gentil quando é encorajado, como na cena em que toda a família vai ao cinema, e ele tem um momento feliz junto aos pais. Porém, esses momentos são raros em seu cotidiano, prevalecendo as constantes brigas entre os pais que o menino consegue ouvir pela porta. Seu modo de escapar de tudo isso são suas fugas de casa, a fascinação pelo cinema e a amizade com René (Patrick Auffay). É assim que Antoine busca fugir de uma conturbada relação com a família e de uma educação aparentemente tirana e injusta.

Truffaut fez um belíssimo filme sobre a juventude de uma época. Apesar dos difíceis dilemas vividos pelo personagem principal, o filme não perde a beleza e a suavidade típicas da juventude, como na cena em que as criancinhas francesas estão assistindo ao teatro de fantoches, com seus olhinhos vidrados, ou nos pequenos toques de humor durante o todo o filme. A juventude de uma Europa do pós-guerra, no contexto da Guerra Fria é representada na tela. De fato, a rebeldia de Antoine Doinel, sua não inocência, e as situações por ele enfrentadas são reflexo de um contexto social que Truffaut aborda com alguns traços autobiográficos.

O filme é em grande parte construído por meio de planos sequência, são poucos os diálogos feitos em plano-contraplano, o que pode ter ajudado a criar a natural atuação do então jovem Jean-Pierre Léaud, que por sua vez deu um toque de naturalidade a todo o filme. A cena final, em que Antoine foge do reformatório também é em plano sequência. Ele vai parar em tal lugar por roubar uma máquina de datilografar da empresa onde o pai trabalha, e é pego ao tentar devolvê-la. Para dar uma lição em Antoine, seu pai decide entregá-lo à polícia. No reformatório, ele conhece muitos outros meninos delinqüentes juvenis que poderiam influenciá-lo a ser ainda mais criminoso. Por fim, Antoine consegue fugir do reformatório e nessa final, é interessante observar como a história dele não acaba ali, e sim deixa para ser contada nos outros filmes da trilogia. Antoine corre, corre e corre, chega na beira do mar, brinca com a água, olha para a câmera, close em sua imagem estática e “fin”. A vontade que tenho é de ver os outros dois filmes da trilogia.

"Jules et Jim", por Lady Patrícia Oliveira



Para os jovens realizadores da Nouvelle Vague francesa, a palavra de ordem era ruptura, ainda que muitas obras resultassem da incorporação de diversos elementos presentes na cultura daquele período. Fã do cinema clássico e apaixonado por literatura, François Truffaut reúne um pouco dos dois em seu filme Jules e Jim, Uma Mulher Para Dois (1962), um dos filmes mais representativos do movimento.
As dores e delícias, as vicissitudes e as mesmices das relações humanas são narradas por Truffaut através de um complicado triângulo: o alemão Jules e o francês Jim são amigos inseparáveis, que dividem até mesmo as conquistas amorosas, até que conhecem a bela Catherine. Ela casa com Jules, mas entediada com a pacata vida de dona de casa e a passividade do marido, dá início a um romance com Jim. Extremamente passional, Jules aceita, e até incentiva a relação de sua esposa e seu melhor amigo, com medo de perder ambos.

Logo na abertura do longa, Truffaut chama a atenção para seu estilo, que vai além das características da Nouvelle Vague, surpreendendo o espectador também ao longo do filme, pela maneira que escolheu para contar a sua história: cortes rápidos, tomadas panorâmicas, o quadro que fecha em close no rosto dos personagens, fotogramas pausados no meio de uma ação ou fala... até um insuspeito letreiro. Adaptado do romance de Henri-Pierre Roché, a influência da literatura também se faz sentir através de um narrador onipresente, o que pode contribuir para a compreensão da narrativa em suas diversas passagens de tempo, embora seja desnecessário em alguns momentos, como descrever as emoções dos personagens enquanto estes aparecem na tela, explicitando demais o que poderia ficar implícito – só os mais desatentos não notariam a cobiça nos olhos de Jim, o cinismo de Catherine e a ingenuidade de Jules.

O trio, aliás, é uma atração à parte. Numa trama que poderia ser simples, Catherine, Jules e Jim trazem a complexidade necessária para o triângulo, ao mostrar o estranho modo de amar de uma mulher, e de dois amigos que criam uma dependência em torno dela, satisfazendo todos os seus caprichos, enquanto ela os domina e manipula, tomando até a iniciativa de “romper” o relacionamento a três de forma inesperada. Boas atuações, sobretudo dos dois rapazes, que conferem verossimilhança e dignidade à amizade entre Jim e Jules, algo que nem mesmo a Guerra pôde destruir. Já o promissor carisma de Catherine por vezes se perde, transformando a personagem numa figura voluntariosa e egoísta, contrariando o título do filme: uma mulher que não é para dois, é só para si mesma.

Ainda que o filme tenha lugar nas primeiras décadas do século XX, Truffaut pegava carona no feminismo crescente dos anos 60 para colocar a volúvel Catherine como o pilar da tríade. O diretor desejava apenas reinventar o já tão dissecado tema do amor a três através da inversão de papéis, a mulher independente e o homem submisso, uma abordagem temática que não causa mais estranheza no espectador de hoje. Todavia, sempre é válida a reflexão que fica posteriormente: a transitoriedade das relações amorosas versus a solidez da verdadeira amizade.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

“Fahrenheit 451”, por Bruna Belo




Uma voz em off narra os créditos de abertura, enquanto é mostrada uma sequência de imagens, em diferentes cores e ângulos, de diversas antenas de televisão o que nos remete a câmeras de vigilância. É assim que se inicia o filme Fahrenheit 451, do diretor francês François Truffaut.

Talvez por ser o seu primeiro filme em língua inglesa, ou por ter sido produzido na época em que Truffaut estava organizando o seu livro de entrevistas com Hitchcock, de quem era fã assumido, Fahrenheit tem algumas referências a este. Entre elas, a trilha sonora marcante, composta por Bernard Herrman – parceiro de Hitchcock em diversos filmes –, e as cenas de ação, nas quais Truffaut peca, não conseguindo atingir a tensão necessária. Justamente por se desviar do que ele estava acostumado a fazer, muitos críticos dizem que este é um filme menor, que não atinge o nível de genialidade do diretor.

Baseado no livro homônimo de Ray Bradbury, é ambientado em uma sociedade totalitária que proíbe qualquer tipo de leitura por considerá-la causadora de infelicidade. Os livros devem ser queimados, todos! Ironicamente, os responsáveis pela destruição destes são os bombeiros – o título vem daí, 451 é a temperatura em fahrenheit em que o papel entra em combustão.

O foco da narrativa é a transformação do bombeiro Guy Montag (Oskar Werner) de destruidor à amante dos livros. Ele tem uma vida normal – porém vazia, como todas as pessoas a sua volta –, um trabalho de destaque e um casamento estável com Linda (Julie Christie). Sua mulher é um perfeito exemplo da população desta sociedade, ela é fútil e viciada em pílulas e na televisão interativa.

Além de Linda, Julie Christie interpreta outra jovem também diretamente ligada ao protagonista, Clarisse. Enquanto a primeira é alienada e dominada pelo Estado, a segunda é consciente e intelectualmente livre. Uma é o inverso da outra. Como se fossem histórias paralelas, é mostrado os dois possíveis caminhos que uma pessoa (ou sociedade) pode percorrer, optando ou não pela cultura e liberdade intelectual. Esse duplo papel rendeu a atriz uma indicação ao BAFTA, em 1967.

A vida de Montag começa a mudar quando ele conhece Clarisse em um encontro casual no metrô. Através de alguns questionamentos, ela desperta nele a curiosidade sobre os objetos proibidos, a partir daí, ele começa a roubar e ler alguns dos livros que deveria queimar. Com as leituras, ele muda, passa a desacreditar totalmente no sistema

quarta-feira, 23 de junho de 2010

"Fahrenheit 451", por Renata Monteiro


Fahrenheit 451 é a adaptação cinematográfica do romance homônimo do autor americano Ray Bradbury, e foi dirigido por François Truffaut. A obra é a primeira produção da Universal Pictures na Europa, e a única de inglesa do diretor. Londres era uma capital mundial e estava fervendo, nada melhor para um diretor como Truffaut, que estava à frente de tudo de novo que acontecia no meio do cinema e viu na Inglaterra uma oportunidade inédita de dirigir. O filme foi gravado nos estúdios Pine wood (Buckinghamshire, Inglaterra), que é o estúdio britânico mais importante, por onde já passaram filmes desde Narciso negro à saga Harry Potter. Truffaut declarou ser o seu filme mais difícil e mais triste, em sua experiência como diretor. O motivo talvez seja o seu já conhecido desentendimento com o ator principal, Oskar Werner (Montag), durante as gravações.

A narrativa nos apresenta a representação de um futuro hipotético onde a leitura de livros escritos é proibida. A sociedade desse futuro acredita que os livros deixam as pessoas infelizes. Os romances, por exemplo, trazem infelicidade para as pessoas pelas histórias trágicas dos personagens fictícios e “faz com que elas queriam viver de uma maneira quase impossível”, os livros de filosofia todos dizem as mesmas coisas e pregavam que só os filósofos estavam certos e que os outros eram idiotas, as biografias queriam satisfazer a vaidade dos seus autores, e livros como A ética de Aristóteles serviam para que seus leitores acreditassem que estariam em um pedestal acima dos outros que não o fossem. Essas idéias fazem com que a sociedade retratada acredite que a única maneira de ser feliz é sendo igual a todos.

Os livros são contrários a isso e devem ser queimados. As pessoas se tratam como “primos”, para ressaltar essa idéia de igualdade, e são todos alienados, extremante dependentes e influenciados da televisão, que parece fazer parte da sociedade. Em todas as casas há uma antena, e a televisão age de maneira interativa com as pessoas acentuando esse caráter de integração com esse meio. Mas restam pessoas que ainda lêem e mantêm livros em suas casas, para isso os bombeiros são acionados, incinerar livros é a função desses profissionais nesse futuro relatado. Montag é um bombeiro que está para receber uma promoção, Linda (Julie Christie) é sua esposa, ela é bastante influenciada pela televisão. Montag conhece Clarisse (Julie Christie em seu segundo papel na trama), e a partir desse encontro Montag muda seu comportamento, afetando no seu trabalho e na sua vida pessoal. Ele começa a questionar suas funções, e desencadeia uma paixão pelos livros que tanto havia destruído.

Esse filme retrata muito bem essa sociedade alienada e sem leitura, já nos seus créditos iniciais não há textos escritos indicando a proibição, os nomes são narrados e imagens coloridas de diversas antenas de televisão aparecem. A cor no filme é algo bastante marcante, esse é primeiro filme colorido de Truffaut, e ele utiliza muito o vermelho, exaltando esse ambiente quente e em chamas em que se desenvolve a trama. Mesmo se passando em um futuro, o filme não perde as características dos anos 60, época em que foi produzido, as cores vibrantes, os objetos e a caracterização dos personagens (roupas, cabelos e etc) se assemelham muito com as desse período. É um futuro com moldes nos anos 60, esses equívocos são recorrentes em outras obras do tipo, pois não há como fugir de suas referencias temporais. Ainda assim Fahrenheit 451 é considerado um filme marco de produções futurísticas, pela sua representação do futuro e fonte de inspiração para futuras obras do gênero. Os atores principais são polêmicos, Julie Christie e seu duplo papel, que de duplo não tem nada, pois a atriz só troca de peruca e nada em suas nuances de atuação muda, e também Oskar Werner que além de suas intrigas com o diretor do filme, permanece quase o filme todo com o mesmo olhar intrigado (e irritante por ele ter uma enorme distancia pupilar). A trilha sonora do filme é de Bernard Hermann, o compositor favorito de Hitchcock, e isso de fato se percebe, pois quando ouvimos a música é como se esperássemos a entrada de Norman Bates com um facão, ou nesse caso com um lança-chamas, na cena. A fotografia é de Nicolas Roeg, que depois vai dirigir filmes como O homem que caiu na terra e Inverno de sangue em Veneza, e consolidar o cruzamento de gênero característico em suas obras. Com essa temática futurística e com um certo apelo as questões da época em que o livro foi escrito, o autor, que é americano, põe ao mesmo tempo a questão da alienação pelo meio televisivo (típico do capitalismo) e uma representação de uma sociedade comunista onde a ordem é que todos sejam iguais e uma extrema repreensão aos que não seguem a esse ideal. Centrado na questão do futuro do livro, é uma obra que no mínimo nos faz refletir sobre possíveis sociedades futuras e seus valores, seja convertendo a função do bombeiro (do inglês fireman, homem fogo) que ao invés de apagar, coloca fogo, a metrôs aéreos. Truffaut pode ter recebido diversas críticas negativas em relação a esse filme, por não corresponder ao que o diretor pregava na Nouvelle Vague. Fahrenheit 451 pode ser inserido na definição de cinema comercial, foi encomendado e produzido com alto custo e diversos recursos, não condizia com as outras obras do movimento onde existia ruptura com os padrões vigentes e marca autoral do diretor, que foi questionada nesse filme pelo trabalho final parecer mais com de um artesão e não de um artista. Mas não se nega a importância e qualidade da obra, Martin Scorsese diz que o filme influenciou suas produções, e que ele subestima o trabalho do diretor. De fato Truffaut alcançou uma perfeita interpretação e representação do livro, o que poucos conseguem numa adaptação literária. É um filme visualmente muito bonito. E pode não causar um incêndio de sensações, mas com certeza acende uma chama.

sábado, 24 de março de 2007

"Jules e Jim" por Luís Henrique Leal



É possível discutir se Jules e Jim é ou não o melhor filme de François Truffaut. Afinal, pode ser tema de debate a superioridade de tal ou qual filme. E há, na obra do diretor, muitas temáticas e abordagens importantes, maduras, líricas. Mas a discussão perderia em seu muito de seu significado, se tomasse esse rumo.Jules e Jim parece ser uma reflexão, um pensamento profundo sobre o afeto. É o retrato do fascínio e da beleza das relações, em seu caráter substancialmente humano.

A obra de Truffaut parte de um texto literário – o livro de Henri-Pierre Roché, que o diretor descobriu ao acaso em um sebo francês. E a própria construção que Truffaut costuma fazer de seus filmes[1] guarda evidentes relações com a literatura.

A construção do universo de significado do diretor transita facilmente, e com leveza, entre as linguagens literária e cinematográfica. No caso específico de Jules e Jim, Truffaut faz, por exemplo, opção pela existência de um narrador onisciente – preservando, assim, a forma original do livro.

II

Jules e Jim são jovens amigos, que travam amizade incomum. Desenvolve-se uma relação amistosa, afetuosa – a ponto de os dois se compreenderem mutuamente e compartilharem muitos aspectos de vida da belle époque. Tamanha afinidade, relativiza as evidentes diferenças.

Os amigos se encantam com Catherine, e passam a amar a mesma mulher. Nela identificam a beleza dos traços de uma estátua, e encontram nisso uma impulsão à vida e à contemplação divina.

Catherine é a representação da feminista libertária - num tempo em que a frivolidade e a autonegação são ressaltadas como características necessárias à própria condição feminina[2].

Jim é francês, enquanto que Jules, austríaco. Vem a guerra, e Jules e Jim se vêem impelidos a opor-se no front. Se coloca um imperativo, como força irrevogável e superior.

Jules está casado com Catherine, mas a relação não parece satisfatória para ela. O tempo da guerra, a partir das cartas de Jules, reconstituíra parte do sentimento de afeto, mas, de volta à convivência, logo, Catherine se deixa abater pelo sentimento anterior. Ele, resignado, tem medo de perdê-la.O casal convida Jim para uma visita. E logo este se torna, com consentimento de Jules, amante de Catherine. O filme desenvolve, então, através de intempestivas ações e delírios uma espécie de triângulo amoroso.

Catherine é excessivamente instável e exitante, tem sede da vida e incapacidade de superar habituais angústias. Desenvolvem-se efeitos do tempo sobre a leveza do equilíbrio inicial inerente às relações, cada personagem se perde em seus desesperos.

Catherine hesita entre Jules, Jim e outro amante. Jim se deixa envolver por dúvidas com uma amante parisiense. Jules encontra significado na criação da filha Sabine.

Por fim, as coisas se esvaem. A impossibilidade. Catherine encerra a vida, ao lado de Jim. Jules fica, pra cuidar amorosamente da filha.Jules e Jim é um filme sobre afeto. É o retrato do fascínio e da beleza das relações, em seu caráter substancialmente humano – que se encerra na impossibilidade de vivência plena de todas as coisas.

[1] Considerando, inclusive, produções ulteriores – visto que Jules e Jim é o terceiro filme do diretor, e os dois filmes anteriores têm formas distintas.
[2] É interessante, inclusive, observar que a personagem não traz discursos elaborados a respeito da libertação das mulheres. Não é isso. Os tais elementos parecem apreendidos e interiorizados, a ponto de não se fazer necessário discuti-los retoricamente. Essa clareza permite a o desenvolvimento do triângulo amoroso.

quarta-feira, 21 de março de 2007

"O Jules e Jim de Truffaut" por Paulo Carvalho


Realizado a partir do romance de Henri-Pierre Roché, Jules e Jim(1962), a obra prima de François Truffaut, é um híbrido formal. É sabido que o recurso à literatura sempre foi, no cinema, algo bastante aceito. Muitos filmes foram adaptados de romances e peças teatrais.Em Hollywood, por exemplo, trabalharam diretamente como adaptadores e roteiristas escritores proeminentes como Fitzgerald e Huxley. Nesse sentido, Truffaut não esteve à frente de seus antecessores, é verdade. Se há em Jules e Jim um encanto particular é, sem sombra de dúvidas, por ser um daqueles casos raros em que o conteúdo e a expressão se enleiam e conferem a obra total precisão e potência discursiva. Em outras palavras, a história de amor de Jules e Jim não poderia ser, no cinema, contada de outra maneira.
Se a literatura conta com a liberdade imaginativa individual, portanto com nosso pacto de não sufocar demasiado as palavras com as imagens que se desprendem delas, o trabalho do “cinema literário” é de uma delicadeza quase impossível. Uma imagem literária quase sempre surge de maneira difusa, bastante viscosa, poderíamos dizer. Uma imagem duplamente subordinada à matriz textual e à disposição de cada um em gerá-la. Na outra mão, aparentemente, à imagem no cinema nada subordina. A imagem surge ela mesma, impositiva, porque é o que é. Ainda que Truffaut tenha insistido ser “Jules e Jim antes um livro cinematográfico que um pretexto para um filme literário”, não poderá fugir a evidência de ser seu filme uma outra obra.
O filme conta a história de um denso triângulo amoroso vivido na Paris do início do século XX. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) conhecem-se no ambiente vibrante da noite parisiense e logo partilham suas paixões. Pela literatura, pelas noitadas, pelas mulheres. Partilham as mulheres. Eis uma grande amizade vivida na superfície das afecções. Jules e Jim recriavam para si tudo o que viam e tudo o que viam era um ponto recriador da sua própria relação como amigos. Havia leveza e um certo descompromisso com a objetividade do mundo. Havia leveza até mesmo na obsessão por um busto feminino que os arremata e os silencia por mais de uma hora de deleite. Mas Jules e Jim conhecem Catherine.
Catherine(Jeanne Moreau. é a dimensão trágica que faltava à Jules e Jim. Subitamente os amigos são arrastados pelo real mais real que imagem de Catherine produzia neles. Foi impossível não se deixar arrematarem também por aquele busto de mulher vivo, pela encarnação daquela beleza idealizada no Adriático. Catherine apresentou o amor, tal qual como conhecemos hoje, ao romantismo boêmio de dois amigos até então indiferentes ao mundo.
O amor sobre qual o século XX se jogou e quis dele tirar tudo quanto mais não conseguiu tomar pelos caminhos da guerra. O amor igualmente extremado, sangrento e irremediavelmente trágico, ainda que vivaz, potente e purificador. O amor que quis enterrar de vez o romantismo e suas convenções. Esse foi o amor encarnado por Catherine, uma imagem que se debate sobre si mesma pra continuar viva. Catherine aprisionou Jules e Jim, deu-lhes densidade aos seus sentimentos, era uma linha de morte trançada a uma linha de fuga. Catherine deixava-se ser um quadro limpo de mil inscrições possíveis sobre o qual o desejo de Jules e Jim se inscrevia, sobrescrevia. Ao mesmo tempo, Catherine abandonava seus sobrecódigos a cada respiração, de maneira arbitrária como uma respiração. Deixava para trás sua pele ela toda inutilizável, gravada com palavras sem sentido e sem vida. Devolvia o abismo de si mesmos aos amigos Jules e Jim e os convidava novamente a aprisioná-la. Mas cada reimpressão de sentido, cada corrente que se fechava sobre a intensidade de vida que havia em si, Catherine reencontrava o próprio fantasma vazio de si mesma, como a amoralidade que vira moral, ou o relativismo que não consegue se desterritorializar, ou ainda, à maneira de Nietzsche, como um o oriente que não consegue ir ao oriente de si mesmo.
O destino ofereceu Catherine a Jules e Jim. Truffaut nos ofereceu uma imagem que também quer ela pular, ou deixar que pulemos a partir dela, no abismo da imaginação. A busca pelo mais-ser engendrada pelo devaneio da imagem não acontece sem desdobramentos, articulações múltiplas, litígios de forças. Mesmo no romance a imagem está para o texto como elemento de conteúdo repleto de expressão, ainda que a forma desse conteúdo não nos remeta diretamente a forma de expressão originária do código da linguagem. Na genialidade do cinema literário de Truffaut essa relação é duplicada, quadruplicada...E em algum termo invertida, já que a imagem torna-se, na materialidade da película, também um significante. Nos perdemos na potenciação quadrada das articulações da língua, já não conseguimos distinguir o elemento expressivo do seu conteúdo, nem o operar o oposto. Um desdobramento que também é dobramento.
O abismo de Catherine nos alcança de maneira trágica. Seu jogo moral com Jules e Jim é um tormento maravilhoso. Seu jogo amoroso um constante flerte com a morte. Ao amor desse triângulo não cabem epítetos. Como poderiam caber aos seus amantes? O grande paradoxo é que Jules, Jim e Catherine encarnam suas não-identidades. E não podem deixar de afirmar o significante que são. Como o conteúdo não pode ser subtraído da expressão. A morte surge como a única saída. Daí a grande tragédia inscrita em toda codificação...