sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"Jules et Jim", por Marcílio Camelo


AVISO: SPOILERS!!

Assunto freqüente em filmes, o triângulo amoroso pode parecer tema sem muito valor para algumas pessoas, mas tudo depende da forma como é tratado. Truffaut traz para ao cinema uma história baseada no livro homônimo do escritor francês Henri-Pierre Rouché, e não faz a mínima questão de esconder o tom literal ao longo do filme. Pelo contrário, o diretor preenche a trama com diálogos vivos e narração em off, o que aparenta ser uma leitura visual de um livro, surpreendentemente interessante.

O filme retrata a França de 1912, onde uma amizade se inicia espontaneamente entre o austríaco Jules e o francês Jim, que é convidado para uma festa à fantasia pelo estrangeiro, mesmo sem se conhecerem. No início do filme Truffaut usa planos rápidos e curtos para montar o crescimento dessa amizade, que é pura, sem maldade. Vemos que os dois se divertem com namoricos, e chegam até a namorar uma mesma mulher, mas levianamente. Após o início veloz, somos apresentados a Gilberte, namorada de Jim, ela pede que ele não saia do seu quarto, mas o jovem não está disposto à estabilidade. Esse tipo de relação descompromissada que ambos os amigos costumavam ter com as mulheres é mostrado também quando Jules fala dos amores que deixou em sua terra. Nesse contexto, não era de se esperar que os dois sentissem um amor forte e duradouro por uma mulher. Mais estranho ainda seria eles dividirem um amor verdadeiro pela mesma mulher, o que estava por acontecer.

Quando Jules leva Jim para ver uns slides na casa de seu amigo músico Albert, ocorre um momento de fascinação pela figura de uma estátua feminina, um rosto que se fazia perfeição de mulher para ambos. Movidos pelo desejo, os dois vão ao museu numa ilha do mar Adriático e se deparam com a estátua, ficam admirando e depois retornam para casa. Jules conta a Jim da chegada a Paris de três moças que estudavam com um primo seu em Munique. Eles vão jantar com elas e acabam encontrando um rosto igual ao da estátua, é Catherine. Jules começa a sair com ela, sem a presença de Jim, mas depois o chama para um passeio a três. Porém, Catherine está vestida como homem, e assim os três se divertem na rua com seu disfarce. Quando chegam numa ponte, a moça aposta corrida com os rapazes, mas trapaceia e acaba vencendo. Uma metáfora da relação que se estabelecerá entre o trio.

Os três viajam para uma casa dita dos sonhos, junto à natureza, e desfrutam da amizade que amadurecia. É nesse cenário de isolamento da sociedade que Jules propõe casamento a Catherine, que não aceita, mas isso não deixa o rapaz magoado. Vemos aí a passividade que Jules manterá ao longo do filme em relação à sua amada. De volta a Paris, Catherine mostra sua personalidade forte e imprevisível quando se joga no rio em protesto aos comentários machistas de Jules. Ela quer ser sempre notada, jamais desprezada. Ela deve estar no comando, sempre à frente dos dois, como na corrida da ponte. Talvez para decidir algo importante na relação dos três, Catherine tenha marcado um encontro com Jim no dia seguinte. Mas devido ao atraso de ambos, eles não se encontram e a história toma um rumo diferente. Jules e Catherine se mudam para a Áustria e se casam. A Primeira Guerra Mundial irrompe, separando os amigos por vez.
Essa forte amizade resiste à guerra, na qual os amigos temem se matar enquanto seus países lutam contra si. Para retratar esse momento, Truffaut insere cenas de documentários bélicos, trazendo um tom realista. Enquanto isso, Jim mantém contato com Gilberte por correspondências e chega a se encontrar com ela por uma semana, mas o envolvimento dos dois continua inconsistente. Por outro lado, Jules troca cartas de amor com Catherine que, grávida, aguarda seu retorno. Com o fim da guerra, os amigos voltam a se escrever e Jim é convidado a ir visitar o casal.

Agora uma família completa, Jules, Catherine e a filha Sabine recebem o amigo no chalé próximo ao Reno. Jules fala de seu trabalho como pesquisador de insetos e Jim comenta que está escrevendo para um jornal francês. A aparente harmonia familiar, em que a esposa se situa como doméstica e mãe atenciosa, é perturbada quando Catherine mostra os aposentos da residência: o casal não dorme junto. À noite, Jules conversa a sós com o amigo e conta que seu casamento não é mais real, sua esposa não o trata mais como marido, apenas respeita-o na casa. Mas o amor de Jules é intenso e sem cobranças, ele aceita os amantes da esposa, só não quer que ela o deixe como chegou a fazê-lo por seis meses. Ironicamente, Catherine está prestes a abandoná-lo de novo, dessa vez para ficar com seu amante Albert, o mesmo músico que ‘apresentou’ ao amigo a beleza de Catherine em forma de estátua.

Uma vez ciente da situação, Jim conversa com Catherine e, durante um belo passeio pela mata, ela conta como deixou de amar Jules, que lhe pareceu um estranho ao voltar da guerra. Ele já não lhe era mais suficiente, já não lhe servia. Então, permeada por amores banais, amantes de diversão, Catherine assumia o papel do marido, do infiel na relação, e cedia a Jules a parte submissa da esposa resignada. Uma interessante inversão de valores dita as regras desse jogo amoroso que se encaminha para o trágico.

Jim não se deixa desejar a esposa do amigo, e o faz sem saber por quê. Mas a inibição é banida quando o próprio Jules lhe diz para amá-la e casar-se com ela, contanto que os três continuem se vendo. A absolvição de culpa faz com que Jim venha a morar no chalé. ‘Os três loucos’, como eram conhecidos na vila, estavam felizes com Sabine, morando juntos. Mas Jim teve de retornar a Paris por causa do seu trabalho. Assim, mais uma vez a felicidade é separada, e ficamos na dúvida de que ela iria retornar ou não.

Em sua filosofia, Catherine acreditava que o amor era curto, mas retornava constantemente. Suas aventuras de antes tinham acabado, ela estava disposta a esperar o seu amado. Porém, Jim volta para os braços de Gilberte, e adia seu retorno à Áustria. Os dois trocam cartas, e Catherine se pergunta se ele a ama. Até que ela nota a infidelidade de Jim, e se vinga dormindo com Albert, seu equivalente de Gilberte.

Finalmente Jim retorna e recomeça com Catherine sua história de amor, uma vez que ambos estão quites, mutuamente traídos. Dura pouco até que um novo problema surge: ela não consegue engravidar. O sonho do casamento e dos filhos começa a se destruir, juntamente com o relacionamento dos dois. Um novo fim aproxima-se, dentre tantas idas e vindas, tantos amores curtos que Jim e Catherine sentiram um pelo outro. Ele volta para Paris e troca cartas com ela, que se vê grávida e quer que ele retorne. Mas a doença de Jim o impede de voltar. Ele é cuidado por Gilberte, o que causa ciúmes e desconfiança a Catherine. Uma confusão com as cartas os afasta ainda mais. O relacionamento realmente acaba quando Catherine perde o filho que esperava.

Após algum tempo Jules e Catherine decidem morar em Paris. Albert continua sendo amante dela, e Jules permanece tolerante com a amada. O casal de fachada reencontra-se com Jim, que está noivo de Gilberte. Mas Catherine está mais desequilibrada e inconformada do que antes, assim, ela atrai Jim para sua casa e tenta sem êxito matá-lo com um revolver. Jim foge e eles só se vêem de novo casualmente em um cinema, com Jules presente. Os três saem no carro de Catherine e vão para um café perto de um lago. O alívio que Jim sentia por perceber uma frieza vinda de Catherine se fez curto, e um final definitivo apareceu para os dois: Catherine guiou seu carro até o abismo de uma ponte quebrada, matando a si e a quem ela muitas vezes amou.

Amor curto, longo, repentino, constante, intermitente, amor-paixão, amor-platônico, amor-amizade. Truffaut trata desses amores em seu filme nouvelle vagueano, amores tão diversos e complexos quanto aqueles que os sentem. A intensidade dos sentimentos vividos pelos personagens reforça o drama/tragédia desses seres confusos, ambíguos, que apenas agem, não tentam se explicar, que vivem e morrem por suas causas particulares desconhecidas. O único amor que consegue sobreviver aos encontros e desencontros do filme é o que une os dois amigos, permanecendo puro e admirável. A amizade de Jules et Jim.

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