domingo, 26 de setembro de 2010
"Acossado", por Ramon Dias Ferreira
A subversão sempre foi parte integrante da arte. Como um círculo vicioso, os movimentos e escolas artísticas são fadados a deparar-se, logo após seu ápice, com questionamentos que colocarão à prova sua estética e significação, para assim reinventarem-se ou abraçarem o seu ocaso. Este é um movimento natural no qual se torna possível a evolução, e coloco aqui a palavra “evolução” não no sentido restrito de aprimoramento, mas sim de surgimento de novos caminhos que, apesar de muitas vezes opostos ao seu predecessor, contribuem para o enriquecimento de sua expressão. E é nesta conjuntura de crise e recriação que se encontra a importância de Acossado.
Após o cume do star-system americano, o cinema europeu irrompe como uma resposta ao modelo hollywoodiano, que no contexto do pós Segunda-Guerra, parecia não fazer mais tanto sentido. Emerge então o neo-realismo na Itália, assim como a Nouvelle Vague francesa, que agora pensavam o cinema como uma expressão mais próxima do ser humano, e serviriam de influência para movimentos mais periféricos, como os Cinemas Novos. Mas além de uma transformação temática, a Nouvelle Vague possuiu também uma característica de revisão da própria linguagem cinematográfica. Os cineclubes e a Cahiers du Cinema já demonstravam o caráter cinéfilo surgido na França entre as décadas de 50 e 60, e foram pilares fundamentais para as discussões que precediam o nascimento da “nova onda” francesa. Surgia a teoria do autor, que retirava o diretor do seu lugar de um mero técnico e o colocava como um artista de fato, capaz de refletir em suas obras estilos próprios e singulares. E dentre estes autores, o que talvez mais tenha experimentado foi Jean-Luc Godard. Já em sua estréia com Acossado, o cineasta proporcionou inovações estéticas que rompiam com os padrões clássicos e revisavam a “gramática” do cinema. Apesar de ainda influenciado pelo cinema americano (a temática gângster, a trilha sonora noir), Godard incorporou tais aspectos a uma forma experimental que ao mesmo tempo negava o próprio modelo que o havia inspirado. Enquanto os americanos diziam “filme apenas em um eixo de 180 graus”, “mantenha a continuidade espaço/temporal”, ou ainda “é impensável o olhar para a câmera”, Godard brincava com essas convenções, em um ato antropofágico que foi muito presente nos anos 60: a assimilação da cultura tradicional para sua consequente subversão.
Contudo, Godard não recriou a gramática, mas sim adaptou-a. Ou melhor, organizou-a de maneiras diferentes. Todas as ferramentas que caracterizam a linguagem cinematográfica estão presentes: os planos abertos, médios e close-ups, os travellings e pans, entretanto, ajustados de uma maneira distinta. Um dos exemplos mais famosos dessa nova “práxis” criada por Godard foram os jump-cuts: cortes rápidos e secos que excluíam o “tempo morto” dentro das cenas. Esse recurso causou forte estranhamento na época, pois apesar dos cortes, os planos mantinham os mesmos cenários, ângulos de câmera e posição de atores dos planos anteriores, algo impensável para os moldes tradicionais. Mas a despeito desse cinema evidenciar o seu caráter enquanto artifício, ocasionando um distanciamento com o público, há os que defendem que essa reinvenção aponte para uma experiência fílmica mais intensa. Em sua idéia de continuidade intensificada, David Bordwell argumenta que desde meados da década de 60, os cineastas desenvolvem um maior repertório de recursos narrativos, num processo gradual que visa uma intensificação na percepção do espectador. Desse modo, pode-se fazer um paralelo entre Godard e outro cineasta de grandeza “inversamente proporcional”: D. W. Griffith. Enquanto Griffith é considerado o responsável pela organização sistemática dos recursos estilísticos que caracterizam a narrativa clássica, Godard foi aquele que “desconstruiu” esses recursos e os re-arranjou de maneiras distintas. O que mudou então não foi o princípio na estrutura narrativa, mas as ferramentas que a constroem.
Completando o círculo citado no início do texto, a Nouvelle Vague perecia à medida que a década chegava ao fim. O mundo havia se transformado, e as questões problematizadas por esses cineastas já não eram mais tão vanguardistas. Emergia nos Estados Unidos a “New Hollywood”, incorporando em suas obras muitas das inovações propostas pelos franceses, assim como estes incorporaram conceitos americanos. Hoje, pode-se perceber claramente o impacto da Nouvelle Vague no cinema de Tarantino ou Guy Ritchie, ou até mesmo no nacional Cidade de Deus. E é por esta fórmula, “vanguarda transforma a tradição, tradição assimila a vanguarda”, que a arte se pluraliza.
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