sexta-feira, 17 de setembro de 2010

“Fahrenheit 451”, por Mariana Fidelis



“Fahrenheit 451” é um filme de François Truffaut, lançado em 1966, adaptação do livro homônimo de Ray Bradbury de 1953. Sua trama desenrola-se no futuro, num país totalitário marcado pela censura cultural em que é proibida a posse e acesso a todo e qualquer tipo de livro. Nesse contexto os bombeiros tornam-se responsáveis por cumprir essa interdição através da caça e queima das obras literárias. Nosso personagem principal, um destes bombeiros, chama-se Guy Montag (Oskar Werner), distinto inicialmente pelo trabalho dedicado, um homem calado que apenas cumpre bem suas tarefas, digno da admiração de seus superiores, prestes a receber uma promoção. Ele é casado com Linda (Julie Christie), uma mulher que passa seus dias em casa, caracterizada pela forte influência e dominação que a televisão exerce em sua vida, basicamente uma mulher alienada que reproduz os valores passados através da programação televisiva, sem questioná-los.

Os argumentos utilizados para justificar a proibição aos livros são revelados na fala do Capitão à Montag quando encontram uma das maiores bibliotecas prestes a ser incendiada: 1) os livros são histórias tristes que causam infelicidade àqueles que as lêem, e tudo isso desnecessariamente, pois são inventadas, versando sobre pessoas e situações que nunca existiram; 2) os livros trazem de certa forma desigualdade entre os homens, pois instauram um universo de vaidades e arrogância entre eles. Dessa forma os livros são perseguidos, e devem ser banidos da sociedade. A ameaça trazida pelo conteúdo literário à manutenção do sistema governamental totalitário é transferida, sem justificativa e razão, para seu material, isto é, o objeto-livro, como nos mostra a cena em que Linda ao descobrir um livro que cai do seu esconderijo joga-o para longe, num gesto de medo e nojo.

O ponto de inflexão da trama é o encontro de Montag com Clarisse (Julie Christie), jovem que instaura um espírito de indagação, reflexão, e curiosidade no bombeiro, ao perguntar se ele alguma vez já havia lido um daqueles objetos que queima. A partir daí ele passa a ler escondido os livros que furta do trabalho.

Ao entrar em contato com o universo literário, descobre algo que havia se perdido na sua vida, considerada vazia, como se os livros resgatassem sentimentos e uma noção de humanidade até então esquecidos. A partir de presenciar a cena de uma mulher que prefere morrer queimada entre seus livros, Montag depara-se com a contraposição entre a paixão e os sentimentos envolvidos no universo literário e o vazio e a frieza da normalidade e mediocridade cotidiana. Essa contraposição transparece por exemplo quando ele lê o trecho de um livro para sua mulher e amigas, acusando-as de serem zumbis (“Vocês não vivem, apenas matam o tempo!”), ou quando traz a metáfora de que “por trás de cada livro há uma pessoa”, resgatando o sentido simbólico dos livros. Quer dizer, Montag reconhece nos livros uma humanidade que não encontra nas pessoas ao seu redor.

O contato com os livros lhe rende uma mudança de comportamento não só no trabalho, mas principalmente em casa, algo que é reprovado por sua mulher, que acaba por denunciá-lo para a própria corporação para a qual trabalha. Tendo sido descoberto por seus colegas de trabalho, Montag é obrigado a queimar seus livros em sua própria casa, salvando apenas um dentro da roupa, e acaba por assassinar seu chefe, o capitão da corporação, também queimado. Dessa forma ele torna-se um foragido procurado pela polícia, mas consegue fugir graças à referência dada pela sua amiga a jovem Clarisse de um grupo de pessoas admiradoras da literatura que moram nas florestas, fora das garras do estado.

Incomoda-me um pouco no filme essa mudança radical de atitude de nosso protagonista que passa de funcionário exemplar à fora da lei. Revela-me um pouco de superficialidade na construção da personalidade do personagem, que não possui muita consistência, mudando sua atitude de um lado para outro, sem um motivo aparente muito forte (a não ser pela conversa uma vez apenas com Clarisse). De forma que, se é tolerada a passagem de bombeiro exemplar à admirador da literatura de uma hora para outra, por que não seria aceitável por exemplo que sua mulher Linda o apoiasse ao invés de denunciá-lo? Isso para mim não fez muito sentido.

A questão do controle social pelo sistema de comunicação estatal através da presença e influência da televisão na vida das pessoas, tácita durante todo o filme (por exemplo no comentário da vizinha de Clarisse, que chama atenção para o fato de todas as casas possuírem antena parabólica), revela-se finalmente na manipulação de informações quanto ao paradeiro de Montag quando, após de chegar a essa comunidade na floresta, assiste a encenação de sua própria morte na televisão. Engraçado que essa manipulação e controle sociais sejam tão claramente revelados apenas para aqueles que já estão do lado de fora do sistema.

Nossa trama se desenrola, portanto, no contexto de uma sociedade totalitária que exerce seu poder de controle social institucionalmente através da polícia e dos bombeiros, e também culturalmente através do forte sistema televisivo de comunicação. Esse cenário faz parte de uma tendência literária dos anos 50 e 60, época de uma sociedade apreensiva marcada pelo totalitarismo do mundo pós-guerra, conhecida como “distopia” – ao lado por exemplo de “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa tendência pode ser caracterizada pelo pessimismo quanto ao futuro, geralmente marcado pela presença de um estado totalitário e opressivo, baseado no controle e na manipulação social exercida pelas tecnologias sobre a vida das pessoas, e justificado no motivo de uma “ameaça constante” que deve ser combatida (seja a ameaça de outros países combatida com guerras, seja, no caso do nosso filme, na ameaça que os livros trazem para a igualdade e felicidade das pessoas).


Quanto ao formato do filme, não vejo muitas aproximações com as inovações trazidas pela Nouvelle Vague, como por exemplo a estrutura fragmentada de narração. Apesar de Truffaut ser um dos diretores mas representativos do movimento, esse filme é um pouco diferenciado dos outros talvez por ser uma ficção cientifica, ou por ter sido gravado fora da França e em inglês.

Um dos pontos que podemos destacar de proximidade em relação à outras obras da Nouvelle Vague é a questão da autorreferência, não só na dupla atuação da atriz Julie Christie, como Linda e Clarisse (o que enfatiza ainda mais a contraposição em relação a personalidade das duas mulheres), mas também pelo enquadramento dado nos livros nas cenas de incêndio, quando surge a oportunidade de fazer referencia às influências do movimento, como Sartre, os Cahiers du Cinema, ou o próprio Ray Bradbury, autor do livro que dá origem ao filme.

Do ponto de vista estético, a construção dos cenários da sociedade futurista é marcada por cores fortes, embora possamos dizer que a ficção cientifica não é o apelo mais forte do filme. A não ser pelo metrô suspenso (o que deve ter custado caro para a produção), o modelo das televisões (finas, de tela grande, pregadas na parede, com opções de interação), e pela (tosca) cena dos policiais voadores já quase no final do filme (durante a perseguição à Montag), acredito que as referências estéticas sejam muito mais atuais que futuristas, como a arquitetura das casas e as roupas das mulheres.

A afinidade com a Nouvelle Vague e que o filme tornou extremamente atual, apesar da moldura futurista, deve-se principalmente à temática. A questão da censura, da luta contra a indústria cultural e a sociedade do consumo estão presentes no filme, através do argumento de salvação da cultura humana pelos livros, sem os quais “todo o conhecimento humano desapareceria”.

É a partir daí que analisamos o desfecho da história, na relação entre cultura e memória. A literatura, e a tradição escrita em geral, surge como uma tentativa de perenizar a(s) história(s) humana(s) no tempo, porém, tendo em vista a proibição em relação aos livros, não resta outra alternativa a não ser um retorno à oralidade. Numa volta à tradição de civilizações antigas que repassavam suas historias através do falar/narrar/contar, a comunidade das “pessoas-livro” resiste pelo esforço de uma forma diferente de relação com os conteúdos da cultura, sem a mediação dos livros, mas apenas através da memória e da oralidade.

A comunidade das “pessoas-livro” isolada na floresta revela a arquitetura da sociedade totalitária e opressiva da cidade, que na interdição do acesso à cultura, do acesso aos livros, pretende o sufocamento de qualquer possibilidade de crítica e oposição ao sistema. Resta apenas a possibilidade de se localizar completamente fora dessa sociedade, viver como outsiders, que recuam e recusam o confronto direto com a autoridade. Preferem a fuga, e ficam a espera do dia em que possam reproduzir aqueles textos que memorizaram fielmente para que sejam impressos de novo. Por isso, no comentário ao filme, Truffaut destaca o caráter do elogio à astúcia que perpassa o filme:

“Não pretendi transmitir qualquer mensagem, mas apenas mostrar uma forma de luta contra a autoridade arbitrária. [...] Sou contra a violência e a intolerância porque elas significam confronto. [...] Se quero alguma coisa, o meu desejo é tão intenso que não perco tempo com discussões. [...] Para mim, quem substitui a violência é a fuga, não a fuga do essencial, mas a fuga para se obter o essencial. Creio ter ilustrado isso em ´Fahrenheit 451´. É um aspecto do filme que escapou a todo mundo e me parece importante: a apologia da astúcia. ´Ah, então os livros estão proibidos? Então, muito bem, vamos aprendê-los de cor´. É o supra-sumo da astúcia.” (Truffaut, 1966, disponível em: )

A título de opinião pessoal sobre a obra, “Fahrenheit 451” é por fim um filme que recomendo não só pelo seu caráter político, mas principalmente por seu caráter poético na representação de um amor à literatura e à cultura do livro impresso, que perde cada vez mais seu espaço para outras formas de divulgação, em especial no meio digital.

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