sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"É uma puta" - Lola, de Jacques Demy, por Caio Cagliani



Romances são, em sua grande maioria, narrativas superficiais quando vistos no cinema. A fórmula é batida e todo mundo já conhece: O garoto conhece a garota, apaixonam-se, acontece um desentendimento, no final todo mundo resolve suas desavenças e em 95% dos casos tudo acaba bem (e em casamento). Quanto ao desentendimento, geralmente é um mal-entendido que quase sempre se resolve. Nas histórias de amor, ninguém é mau caráter, a não ser o vilão, geralmente um ex-namorado, ou algum dos pais, ou futuro pretendente de algum dos componentes do casal.

Perceba a diferença: romance na vida de uma dançarina de cabaré é coisa de um passado que vive apenas na memória de Lola. O amor se foi já se tem quase sete anos. Hoje, Lola vive na esperança de um reencontro. De outro lado, Roland Cassard, apaixonado, não vê sua amada Cécile há muito temhttp://www.blogger.com/img/blank.gifpo, pois a perdeu de vista após a Guerra. Vive então entediado em Nantes, querendo sair da cidade que para ele não possui graça nenhuma. Não dura nos empregos por conta desse marasmo que o rodeia e é logo demitido. Na busca de um novo trabalho, esbarra em uma figura do passado: é Cécile, hoje dançarina de cabaré. Se você acha que é bom em matemática, somará a + b e... cometerá um erro. Nisso, o filme de Jacques Demy já se mostra alheio a equações primárias, e engrossa o caldo dando mais realismo à história de amor.

Amor de verdade é assim: nem sempre é compreendido. Roland ama Lola, que ama outro (que não dá notícias) e em seu caminho ainda existe um marinheiro com quem a dançarina se relaciona. Tudo isso na cara lavada, negando as investidas sinceras de Cassard. A desfaçatez de Cécile perante o (ainda) honesto rapaz faz com que você em determinado momento chegue a pensar ‘É uma PUTA!’. Se pensar assim, garanto, não será o único. Quando as coisas nos romances não acontecem como o esperado, é mais do que natural esse sentimento de revolta. Julgam-se as atitudes, e, venhamos e convenhamos: neste caso ela ‘deu’ pra outro, mas não ‘dá’ pro cara que a ama? É uma PUTA.

Mas Lola tem seus motivos, assim como na vida real as pessoas têm seus motivos. São personagens com três dimensões, assim como possuímos três dimensões. O filme, com seus ciclos e repetições, deixa mais do que claro como as coisas funcionam: meninas se apaixonarão e serão mal interpretadas pelos seus pretendentes, egoístas no seu julgamento. Como o filme de Demy espelha romances reais, acaba por tornar-se muito mais interessante do que qualquer outro com seus corações de plástico e beijos antes dos créditos.

Demy ainda adiciona outros elementos à sua trama. São repetições de histórias e acontecimentos, personagens se cruzando ou evocando ações passadas, num delicioso Déjà Vu. Praticamente toda situação ganha um par: existirão duas Céciles, dois romances infantis, dois cabelereiros, enfim, existirão análogos à várias coisas. Não se engane, pois o cineasta foge das convergências improváveis que permeiam filmes com subtramas que se cruzam perto do fim. A impressão que fica é que em Lola, seja por qual razão, o ambiente de Nantes evoca certo tipo de comportamento que, mesmo sem querer, ecoa outro, o que acaba nivelando tudo por lá. Talvez seja esta a fonte do marasmo que Cassard tanto quer fugir.

Em sua filmografia, o cineasta levará essa tendência a se repetir mais a sério. Não fará como outros, que geralmente trabalham sempre com sua musa (ou muso), dando nesta parceria uma unidade à sua obra. Em outros filmes, não só atores serão revistos, mas personagens reaparecerão e costumeiramente ambientes também. A uniformidade da sua obra virá deste universo, criado por ele a partir de Lola. Manterá o realismo de seu primeiro longa-metragem em um filme todo cantado, graças a personagens (e ações) verossímeis, coerentes com sua estreia.

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