domingo, 7 de novembro de 2010

A mulher das Dunas - Hiroshi Teshigahara (1964), por Sofia Donovan


Parece grande, mas descobrimos que a “rocha” que vemos na primeira cena do filme é um grão de areia. A Mulher das Dunas discute, ora de forma direta, ora através de metáforas, alienação, indivíduo e sociedade, tradição, sexualidade; questiona, como filmes de outros movimentos cinematográficos de ruptura contemporâneos, os parâmetros estabelecidos. Reage (assim a Nouvelle Vague Japonesa, em geral) às drásticas mudanças que ocorreram no Japão após a segunda guerra.

Um professor coleta insetos em meio a dunas semi-desertas. Sua voz em off nos expõe uma inquietação, uma inclinação crítica e cética “Você diz que eu discuto muito. São os fatos que discutem”, fala a uma mulher que surge em meio as dunas (mas é só uma aparição, não está ali, nem chegamos a saber quem exatamente é). Ele acaba perdendo a hora do ônibus que o levaria de volta a cidade, e um dos moradores das dunas o oferece estadia com uma conterrânea em uma estranha casa, construída no fundo de um buraco na areia. A trilha sonora tensa, por vezes contundente, deixa o espectador na espreita de algo ruim. A conterrânea o recebe com sorrisos receosos e na manhã seguinte o professor descobre que foi enganado pelos moradores da vila e está preso junto à mulher, que não tem poder para fazer nada a respeito.

A areia possui um enorme papel na narrativa, se revolta em momentos de crise, desliza lentamente se não, mas não apenas acompanha, determina e controla mais que os próprios sequestradores os acontecimentos. A areia prende o protagonista quando ele tenta fugir, dela brota água quando ele alucina de sede, foi ela quem engoliu o marido e a filha da mulher. Além de ser o foco da maioria dos muitos planos detalhe do filme (seja a das dunas ou a da pele dos personagens). A já citada música, que em si já é quase uma alucinação, somada a essa personificação criam uma atmosfera fantástica e sinistra.

A mulher, em contraste com o professor, é extremamente ligada às tradições da vila, submissa, resignada, subserviente, porém cultiva uma admiração inocente pela capital e um medo enorme da solidão e da vida. Mesmo após superar a “fase da raiva” dela, ele continua em uma posição machista (não é “moderno” nesse sentido). A tão almejada “liberdade” dele e a “prisão” onde ela vive são relativizadas. Ela sofre calada, acaba não significando nada para ele, nem mesmo quando engravida. A atuação de Kyôko Kishida é extremamente comovente. Junto à grande diversidade de enquadramentos (que ganham com o claro/escuro naturalista), ela consegue prender o espectador no filme de locação única.

Outro filme do mesmo movimento Japonês que se assemelha a A Mulher das Dunas: um sequestro, o cárcere prolongado, trazendo ao protagonista uma nova perspectiva sobre o mundo; Cega Obsessão (Yasuzo Masumura, 1969) também é auto-reflexivo. Porém em ambos o personagem sequestrado acaba cedendo à loucura ou alienação a que tinha aversão. Não se encontra nesses filmes a necessidade de uma clara resolução ideológica.

Zabriskie Point, por Ana Lúcia Diniz


O nome é uma homenagem à região árida localizada no oeste dos Estados Unidos, no Vale da Morte. Também árido é o tema principal abordado pelo filme: o movimento da contracultura, que teve seu auge na década de 60. E só tem uma palavra que pode definir a maneira como filme foi recebido pela crítica e pelo público da época: aridez.

Zabriskie Point (1970), do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, é marcado pelo encontro de dois jovens. Ela, Daria, viaja de carro até Phoenix para encontrar seu chefe, um empresário que planeja construir um condomínio de luxo na Califórnia. Ele, Mark, jovem que está insatisfeito com o falatório das reuniões estudantis e decide que - muito mais do que discussão e reflexão - precisa de ação. Por isso, quando os protestos na universidade tornam-se violentos com a chegada da polícia, ele decide comprar um revolver e tomar atitudes práticas. No conflito entre estudantes do Campus e policiais, alguns alunos são atingidos por gás lacrimogêneo e um estudante é baleado. Neste momento, Mark saca a arma e aparece a cena de um policial sendo morto. O autor do tiro não é claramente definido, mas a atitude de Mark é fugir. Para isso, ele rouba um pequeno avião. No meio do deserto, os dois se encontram e a atração é imediata.

Mark e Daria são claramente representantes dos que presenciaram este momento de transformação social, política e cultural, seja ativamente ou não. Encontram-se entre os extremos dos intelectuais de esquerda e da burguesia capitalista, pois essa dicotomia não fazia mais sentido. E a solução para eles, no momento, parece ser o escapismo. Talvez para poder observar essas transformações de fora, talvez para simplesmente se esquecer delas. Essa “viagem” pelo deserto, onde eles estão de passagem, remete, inclusive, a um certo isolamento dos jovens da geração beat - que teve seu auge nos anos 50 e que foi de fundamental influência para o movimento da contracultura nos anos 60 - retratados em romances como “On the road” de Jack Kerouac.

É no deserto que ocorrem cenas marcantes do filme. Vale a pena destacar a cena de amor na areia, que, além da sua beleza estética claramente perceptível, evidenciam-se temas defendidos pela ideologia hippie, como a liberdade sexual e o amor livre e primitivo. Todo o ato dos jovens é embalado pela trilha sonora que garante o tom preciso para a cena. A trilha sonora do filme inteiro, aliás, é um show à parte, apresenta canções de vários artistas como Pink Floyd, Jerry Garcia, The Kaleidoscope... Com algumas música escritas especialmente para o filme.

O filme, no entanto, não foi visto com bons olhos nem pela crítica especializada nem pelo público. Ele é o segundo de um contrato fechado por Antonioni para realizar três filmes em inglês. Os outros dois foram Blow Up (1966) e Profissão: Repórter (1975). O filme sofreu problemas com os produtores, até porque é bastante complicado tratar de temas polêmicos como o combate ao capitalismo, justamente dentro dos Estados Unidos. Por isso, foi duramente ressaltada a arrogância de um estrangeiro de vir criticar tão enfaticamente o país. Outra crítica feita foi em relação à atuação de Mark Frechette e Daria Halprin, que, inclusive, emprestaram seus nomes aos personagens. A escolha de atores amadores, no entanto, tem o mérito de filmar rostos novos e pessoas menos presas a “técnicas” de atuação pré-definidas.

Em relação ao público, Zabriskie Point foi um fracasso de bilheteria, arrecadando apenas um décimo da soma que Blow Up arrecadou. Esse fracasso de público talvez se deva à demora de quase dois anos para lançar o filme, pois, nos anos 70, já há um certo desencantamento em relação ao movimento da contracultura e , ao mesmo tempo, já surgem novos anseios de mudanças. Então a identificação com o filme não ocorre por completo.

Hoje, fora do contexto de seu lançamento, Zabriskie Point já é olhado de maneira diferente. Apesar de muitos admiradores dos filmes de Antonioni ainda acharem que este é o seu pior trabalho, o filme é considerado por muitos como um retrato genial de uma época. Quase vinte anos depois, pode-se dizer, citando o editor da Rolling Stone, David Fricke, que “ Zabriskie Point foi um dos desastres mais extraordinários da história do cinema moderno”.

Noivo neurótico, noiva nervosa – Woody Allen, 1977, por Bruna Belo


Noivo neurótico e noiva nervosa é o primeiro marco da carreira de Woody Allen. Foi nesse filme que ele finalmente atingiu sua maturidade artística como comediante e diretor, unindo humor, drama e romance para definir a sua persona cinematográfica. Segundo o próprio Woody Allen: “contemporâneo, neurótico, mais orientado para a vida intelectual, perdedor, homenzinho, (que) não lida bem com máquinas, deslocado do mundo”.

O filme é composto de uma estrutura narrativa fragmentada e fora da ordem cronológica; além de possuir vários experimentalismos: animações, contando a historia da paixão platônica do personagem do diretor pela bruxa de A Branca de Neve; legendas, que revelam os verdadeiros pensamentos dos personagens; tela dividida, na qual os personagens “conversam” durante sessões de terapia; e a “quebra” da quarta parede: quando Allen se dirige diretamente a platéia ou quando pára diversos pedestres na rua e faz perguntas sobre o amor. Ele explica o porquê: “eu sentia que muitas das pessoas na audiência tinham os mesmo sentimentos e problemas. Eu queria conversar diretamente com elas, confrontá-las”.

Foi pensado inicialmente para ser um suspense, com a trama centrada num assassinato que deveria ocorrer logo nos primeiros 15 minutos de exibição. Porém, percebendo que as melhores cenas estavam no romance, Woody decidiu excluir esta primeira trama – diminuindo o filme de 140 para 93 minutos –, passando a narrar apenas os altos e baixos da relação entre o comediante Alvy Singer (Woody Allen) e a cantora Annie Hall (Diane Keaton), intercalando com histórias anteriores das vidas de cada um deles. Através desse romance, são abordadas a maioria das dificuldades que encontramos em relacionamentos amorosos: obsessões morais, fidelidade, sexo, imaturidade emocional, etc. – assuntos recorrentes a quase todos os filmes de Allen.

Apesar de o diretor negar, Noivo neurótico, noiva nervosa é considerado por muitos um filme quase autobiográfico, devido às inúmeras semelhanças entre personagens e atores, por exemplo: Woody Allen e Diane Keaton mantinham um relacionamento na época da filmagem; quando jovem ela era conhecida como Annie Hall (título original do filme) e as roupas da personagem são da própria atriz; e Alvy Singer “é” Woody Allen, ambos são comediantes, judeus, foram expulsos da NYU, adoram a vida da metrópole (em especial, Nova Iorque) e Fellini – são coincidências demais! O diretor acredita que a comédia “exige a realidade”, talvez seja por isso que os dois protagonistas sejam tão bem construídos, complexos, humanos e, principalmente, reais.

Além da construção dos personagens, essa busca pela realidade também afeta a trilha sonora – praticamente inexistente – e a montagem do filme: são utilizados planos muito longos – o plano médio em Noivo neurótico, noiva nervosa é de 14,5 segundo, enquanto nos outros filmes da época, a média ficava entre 4 e 7 segundos – evitando o corte, ele dilatava a ação, dando mais ritmo à comédia e aumentando a importância dos diálogos.

O filme foi aclamado pelo público e pela crítica na época do seu lançamento, as roupas de Annie Hall viraram moda, as falas do filme passaram a ser ouvidas em conversas cotidianas. Noivo neurótico, noiva nervosa foi nomeado a cinco Oscar, dos quais ganhou quatro (melhor roteiro, diretor, atriz e filme). Criativo, divertido e envolvente, o filme é, sem dúvida alguma, uma das obras primas de Woody Allen!

“O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni, por Renato Souto Maior


Ensurdecedora pode ser a atmosfera aparentemente silenciosa de um espaço ambientado apenas por um som de ventilador, ao fundo, uníssono, em tom constante. Em meio a um barulho pontual e sobressaltado – o ruído do aparelho a girar realmente tem seu volume aumentado e potencializado diante dos outros sons da cena – do eletrodoméstico, temos, em preto e branco, profundamente marcados, Monica Vitti e seu gestual típico de incomunicabilidade já visitado e averiguado em outras produções do diretor Michelangelo Antonioni. O tédio cai sob os personagens como uma manifestação pesada e difícil de ser ignorada ou subjugada. Apesar da tentativa inicial de ambos – obviamente um casal – em circular e lidar um com o outro de forma natural, dentro do espaço de um apartamento, logo se instala a agonia, e o fingimento não se torna mais sustentável, resultando na partida da mulher. Vitti troca algumas palavras, saí do espaço até então sufocante, e ganha às ruas de um bairro italiano tipicamente burguês, em condições estranhas, de deserto absoluto; mal se vê alguma movimentação no espaço urbano. Toda a primeira passagem de “Eclipse” retrata o fim de uma relação; não necessariamente o fim, mas o começo de um desfecho irreversível, prestes a desabar. O silêncio do casal prestes a se separar dialoga com outra passagem do filme, onde a ação se passa em ambiente totalmente contrário ao desértico bairro em que Vitti mora: uma bolsa de valores. Aqui, Antonioni delata o tempo, em momento arrastado, longo, deixando o espectador inquieto, agoniado, e frustrado. É um corte brusco entre uma paisagem aberta, ampla, vazia e silenciosa para um espaço claustrofóbico, barulhento, sufocador, repleto de doses elevadas de “algazarra” e gritaria, típicas de um ambiente como este, onde a presença de mulheres torna o quadro um tanto destoante de seu “aspecto natural”. A mãe da personagem de Vitti procura o local por motivos financeiros, apenas, enquanto a filha se vê “atormentada” por meros conflitos amorosos. É neste lugar que Vitti encontra o personagem de Alan Delon (Piero), jovem efusivo, em contraposição ao amargurado semblante de Vittoria (Vitti). O encontro se dá, então, em momento adverso de ambos; para ela, a crise de um relacionamento recém acabado, para ele a possibilidade de conquistá-la.

A posição dos atores em cena é realmente fabulosa; Antonioni movimenta a câmera com sutileza, mas ao mesmo tempo força. É uma marca visível, a sua, de saber filmar, lindamente, seus atores em cena. A beleza estonteante e o entrosamento crível de Vitti e Delon ajudam, obviamente, na elevação das cenas almejadas, mas não se mostram como aspectos exclusivamente responsáveis pelo sucesso do que se alcança; sem os enquadramentos inspirados, a direção milimétrica e a fotografia marcante de Antonioni os dois poderiam passar por mais belo casal, e só. Muitas vezes o rosto intocável de Vitti é negado ao espectador, e a vemos, diversas vezes, apenas de costas, a caminhar; assim como Delon. São várias as situações onde a câmera acompanha o andar dos dois, sem cortes, por trás. Há uma passagem curiosa logo no começo do filme, quando Vitti simula uma dança africana, vestida e pintada a “caráter”, em um momento não muito claro, sem muita “coerência” dentro da narrativa; mais adiante Vittoria se depara com trabalhadores “negros” em uma localidade que mais parece um ponto distante do centro, em local mais bucólico. Ela é levemente intimidada pela presença dos dois trabalhadores, e talvez seja uma ligação possível entre a cena da dança africana forçada, – que é muito engraçada e mostra uma Vitti totalmente fora do padrão “blasé” e contido no qual nos acostumamos. A burguesia é retratada, novamente, como classe egoísta, desinteressada e evasiva, em um cotidiano atípico, de suspiros e lamentações a cerca de problemas de origem puramente sentimental, nada mais. A presença do jovem Piero (Delon) parece tirar Vittoria do marasmo em que sua vida se encontrava, mas temporariamente. O vazio das ruas ao decorrer da projeção dá espaço a um ambiente mais movimentado e habitado. Mas o tom desértico do espaço é sufocante, e gera imagens belíssimas de avenidas largas e ruas amplas desprovidas completamente de pessoas. Uma construção, ao final do longa, bastante investigada pela câmera de Antonioni, aparece meio que fora do contexto, mas pode ser associada em um paralelo entre a estrutura em início de obras e o próprio relacionamento dos dois, também novo, fresco e em via de ser construído. A recém separação de Vittoria, e a possibilidade, tão repentina, de novo envolvimento, podem estar associadas ao título do filme. Como em um eclipse Vittoria se encontra, justamente, entre estas duas realidades, em momento de intersecção, de trânsito. Se a interpretação seguir embasada na ideia deste fenômeno astronômico, ela também suscita e trás a tona a noção de passagem; a nova relação, assim, provavelmente não perdurará. É o olhar de Antonioni sob um rápido e breve acontecimento na vida dos dois. Um olhar igualmente espetacular, misterioso e belo, como o de um genuíno eclipse.

“A primeira noite de um homem”, de Mike Nichols, por Camilla Vanessa


O filme conta a história de Benjamin, um rapaz que tem tudo para ser bem sucedido, mas quando começa a se envolver com uma mulher casada sua vida sai dos trilhos. Um jovem com problemas, sem experiência com mulheres; um protagonista desajeitado, quebrando com a expectativa do Galã-Herói- estrela de Hollywood. Uma comédia romântica com poder de quebra e que não deixa a desejar em aspectos técnicos como a maioria de filmes do gênero.

A direção do longa é curiosa. Ela faz de nós confidentes do protagonista, de seus anseios, desejos e angústias. Na festa em que se inicia o filme, a câmera acompanha o estado de espírito do personagem, nos faz conhecer sua mente, seus problemas apenas por movimentos de câmera e uma mise- en- scène sufocante. Há enquadramentos que chamam atenção como na cena em que benjamim está no começo da escada da Sra. Robinson e precisa devolver-lhe a bolsa. A escada serve de bela moldura para a insegurança dele. Os zooms são abruptos, quebrando um pouco a narrativa, mas de certa forma colaborando com a mesma. Quando a verdade é revelada para Elaine, por exemplo, sua mãe se encontra em primeiro plano, então ocorre um zoom out e revela Dustin Hoffmann a certa distância.

O som no filme merece destaque, geralmente vindo fora de cena, para depois ser mostrado onde o mesmo se encontra. O que ocorre na transição da cena da piscina para a cabine telefônica: primeiro escutamos a conversa, depois vemos onde o personagem está. Gritos estridentes, a respiração forte e solitária de Ben antes de pular na piscina revelando mais uma vez o íntimo do personagem, sufocado. A trilha sonora composta para o filme se adéqua a todos os momentos da trama, sendo as músicas usadas em outras trilhas (The sound of silence em Watchmen, por exemplo) . A união entre a música e a narrativa é tanta que até quando falta gasolina e o carro vai desacelerando a música acompanha a diminuição do ritmo. O que traz humor à cena de forma incomum.

Montagem leva a história de forma dinâmica, numa harmonia incrível com a música. Na montagem da cena de Ben no hotel e em casa em diferentes momentos, desnorteia um pouco, mas esclarece a passagem de tempo e certa rotina na vida dela sendo estabelecida. Também certa mudança de atitude por parte dele, que deixa de lado seu futuro promissor e entra num momento de diversão com a senhora Robinson.

Um filme leve, mas que traz inovações, trama e personagens incomuns.

"A aventura", por Lady Patrícia Oliveira



A obra do diretor italiano Michelangelo Antonioni costuma dividir opiniões, mesmo entre seus fãs e admiradores: há os que aceitam que seus melhores filmes são aqueles que foram feitos nos Estados Unidos, como Profissão: Repórter (1975) ou o inglês Blow Up (1966). Outros elegem a sua fase italiana como a melhor, com a sua trilogia da incomunicabilidade. Porém, não há dúvidas da linearidade de sua obra, em que Antonioni usou e abusou da prerrogativa de autor de cinema para tratar sempre, em diferentes graus e perspectivas, dos mesmos temas: o tédio, o individualismo, e a falta de comunicabilidade entre as pessoas.

O primeiro filme da sua já citada trilogia foi A Aventura (1960). Nele temos Anna, uma jovem rica e bonita que participa de um luxuoso passeio de iate com seu namorado Sandro e alguns amigos. Após uma parada numa ilha, Anna desaparece misteriosamente, provocando uma mobilização de Sandro, da melhor amiga Claudia, e dos outros para encontrá-la. O tempo vai passando, e Anna jamais é encontrada. Durante sua procura, seu namorado e sua melhor amiga iniciam um caso amoroso. Aos poucos, a jovem é esquecida, enquanto seus amigos voltam para suas vidas monótonas e sem motivação.

Nos dois filmes seguintes, A Noite (1961) e O Eclipse (1962), que completam a trilogia, Antonioni repete a fórmula ao trazer personagens sempre entediados, principalmente casais, que não conseguem se entender, e que estão eternamente em busca de algo do qual nem mesmos estão certos do que seja. Logo, em A Aventura, o mote (o sumiço de Anna) é apenas pano de fundo para o diretor expor a impossibilidade de entendimento, que parece ocorrer com todos, primeiro com Anna e Sandro, depois entre este e Claudia: está claro que estes últimos não estão apaixonados; ficam juntos apenas por ficar, levados por um impulso, e talvez por certa curiosidade, tal qual seus amigos, que viram no desaparecimento da jovem um acontecimento interessante, fora de rotina, mas que passada a “novidade”, retornam inexoráveis ao seu cotidiano burguês enfadonho. E assim, Antonioni promove o “desaparecimento do desaparecimento”.

Esse foco nas elites era uma das marcas de Antonioni, que pretendia criticar esse estilo de vida fútil, destacando seu vazio existencial. O ex-estudante de arquitetura era dono de um estilo inconfundível, de enorme rigor estético, e tinha uma câmera estudada e elegante. Gostava de incorporar paisagens e logradouros em seus filmes, sobretudo como metáfora dos sentimentos dos seus personagens (aqui, a imensidão do mar e ilhas rochosas e inóspitas, inacessíveis). Ele também dá continuidade a outra de suas características já utilizada no filme anterior, O Grito (1957): a constante deambulação, o vagar sem motivo aparente, como ilustração da eterna busca de algo desconhecido e inalcançável.

O reconhecimento para Antonioni chegou tardiamente. Não obstante serem repletos de beleza visual, seus enredos difíceis e sua narrativa lenta contribuíram por muito tempo para a rejeição do público, que chegou a vaiar A Aventura no Festival de Cannes. Mal sabiam eles que o diretor – que tanto abordou a falta de comunicação entre os seres, e ironicamente morreu impossibilitado de falar – estava apenas iniciando a aventura de ratificar o status do cinema como arte.

"O Enigma de Kaspar Hauser", por Lucas Freire Rafael


Façamos um teste: imagine uma situação bizarra, curiosa e única, algo que você jamais ouviu falar muito menos presenciou. Pronto, pensou? Imaginou? Tenha certeza que Werner Herzog já pensou algo igual ou mais obscuro e muito provavelmente já exista um filme que trate do tema. Baseado em fatos reais, o filme O Enigma de Kaspar Hauser é uma prova disso. Como reagir diante de um ser já adulto que não lê, escreve nem sequer fala? Que nunca aprendeu funções básicas do ser humano como andar e gesticular? E que jamais entrou em contato com outro ser humano? Herzog reúne todas essas questões curiosas e singulares num único filme e personagem e com isso, aproveita para nos propor uma visão diferente e mais profunda da sociedade. E você? Como reagiria?

No ano de 1829, um velho encapuzado à lá Zé do Caixão cria, desde o seu nascimento, um rapaz que supostamente é seu filho. Por algum motivo não revelado, este velho o prendeu, logo após seu nascimento, num calabouço e lá o deixou. Amarrado pela cintura e sem entrar em contato com ninguém mais, o senhor encapuzado o mantém preso, em condições precárias de alimentação e de higiene. É comum imaginar que tal velho deva ter algum distúrbio mental, seja louco, maníaco ou qualquer coisa do gênero, mas não, isso não procede. Não é possível dizer o porquê mais algo naquele senhor transparece o contrário, ele me parece ser lúcido e equilibrado. Maldade também é algo que não enxergo neste velho. Imagino que tais atitudes dele tenham um propósito bem mais obscuro do que simples loucura ou malícia.

Logo ao início do filme, depois que vimos do que se trata aquele enclausurado, o senhor que o cria dá início a trama: ele, rapidamente, faz ensinamentos breves de como escrever e falar algumas poucas palavras, se manter ereto e andar, em seguida ele o leva para uma rua qualquer da cidade de Nuremberg. Neste ponto temos a trama instalada: um ser adulto que não possui nenhuma educação no que diz respeito a funções e reações básicas do ser humano é literalmente jogado no meio de uma sociedade no século XIX.

Esse ato do senhor de o deixar em praça pública me pareceu estritamente pensado. Imagino que tudo feito por ele tem um propósito experimental. Desde o nascimento de Kaspar Hauser (assim o chamam pois essas duas palavras foram as primeiras que aprendeu a escrever), tudo foi meticulosamente elaborado para então, na sua fase adulta, dar início a um experimento que não está diretamente ligado a ele, mas sim, à sociedade que o encontrará.

O filme pode ser dividido em duas fases: a primeira (e menos interessante) demonstra o Kaspar Hauser nos seus primeiros momentos com a cidade e seus moradores, todo o processo de aprendizado, de reconhecimento e de descobertas, tanto da sociedade que o acolheu, quanto do próprio Kaspar Hauser. Pareceu interessante? Também pensei isso, até assistir os primeiros momentos da segunda parte. A passagem da primeira para a segunda fase se dá quando um professor o encontra e o salva em um circo que o exibia numa espécie de freakshow. Logo em seguida, a história dá um pulo e encontramos Kaspar Hauser muito bem instruído, já sabendo se comunicar, escrever e se tratar, até certo ponto, com todos a sua volta.

E aí está, talvez, o verdadeiro propósito do ser Kaspar Hauser. Nesta segunda parte, ele passa, em determinados momentos, a questionar alguns valores daquela sociedade e esses questionamentos passam a intrigar os indivíduos e estudiosos que atentam a seu caso. Como esse rapaz, que há tão pouco foi inserido na sociedade, já consegue questionar e argumentar sobre certos costumes e valores vigentes? Como ele, que não possui uma visão de mundo (na óptica deles) é capaz de tal feito?

Para explicitar tais questionamentos, direi aqui dois momentos do filme. O primeiro se trata quando Kaspar Hauser conversa com a governanta da casa em que mora e pergunta a ela “para que servem as mulheres?” e, conformada com sua situação, a senhora responde que a função dela é servir seu patrão, o professor. Kaspar Hauser indignado tenta inflamar a situação e passa a questioná-la mais e mais, porém, ela alega ser apenas uma governanta e que sua função não passa e nem nunca passará da simples servidão,

O segundo momento é quando um estudioso e matemático vai até a Kaspar Hauser lhe fazer uma visita com a intenção de entender mais a complexidade do caso dele. Neste encontro, o matemático propõe-lhe um enigma cuja saída é apenas uma, não existindo outras respostas ou soluções. É interessante frisar que nessa ocasião, a mesma governanta que foi questionada sobre sua importância, estava presente e desde o início da conversa entre Kaspar Hauser e o estudioso, afirmava e reafirmava que ele jamais seria capaz de responder tal enigma. Pois então, o enigma é proposto e Kaspar H. não sabe responder, o estudioso então lhe dá a única e complexa resposta. Alguns segundos depois, Kaspar H. diz “existe uma segunda resposta para esse enigma”, o matemático, assustado, não acredita e então, com uma simples e óbvia resposta, ele desconstrói toda a lógica do grande estudioso. A partir daí, o matemático fica inconformado com tal resposta e não lhe dá crédito algum por tal solução, afirmando que para tal enigma a lógica deveria ser usada e não a dedução.

Nesses dois momentos é possível enxergar uma necessidade, ou instinto, de Kaspar Hauser ir contra aqueles valores da sociedade. As indagações feitas por ele durante todo o filme soam de forma simples, humilde e singela, sem qualquer pretensão intelectual ou culta. Essas indagações também não são simplesmente jogadas ao léu e esquecidas ou deixadas de lado na cena seguinte. Com o desenrolar do filme, Kaspar Hauser vai aderindo uma incompatibilidade com aquele mundo, aquela sociedade e em determinado momento, durante uma cerimônia e diante de todos da mais alta sociedade local, Kaspar Hauser, visto como alegoria intelectual pelos presentes, afirma num súbito desespero que preferia o calabouço que vivia a sua situação atual.

Ao seu final, quando menos se imagina, o velho encapuzado que havia criado Kaspar Hauser retorna, sorrateiramente, e mata sua própria criação. Pode-se pensar que tal ato foi, mais uma vez, premeditado, como se a sociedade precisasse de mais uma teste: o enfrentamento da morte de Kaspar Hauser. A cena final é claramente uma representação da suposta reação da sociedade com o assassinato. Depois da autópsia realizada em seu corpo, é constatado que em seu cérebro havia deformidades, seu cerebelo era hipertrofiado enquanto outras regiões eram pouco desenvolvidas. E então, o escrivão da cidade, sai da autópsia com notória felicidade, pois havia descoberto o enigma de Kaspar Hauser e o porquê de todas aquelas reações e questionamentos dele. Essa atitude do escrivão só comprova a necessidade da sociedade de transpor para outras áreas, neste caso o cientificismo, a solução para questões bem mais profundas, tão mais profundas que até fogem a nossos conhecimentos. Bem, de uma forma ou de outra, Kauspar Hauser cumpriu sua missão.

É possível identificar que o “enigma” existente no título do filme não se trata do mistério envolvendo a origem de Kaspar Hauser, mas sim, diz respeito à real função deste ser inserido na sociedade. Suas indagações e seus questionamentos permeiam o povoado de Nuremberg com o propósito de incitar valores jamais pensados por eles. Durante certo tempo, é possível acreditar que Kaspar Hauser está surtindo efeito naquele núcleo, mas logo somos surpreendidos (ou não) com a verdadeira reação da sociedade, no caso, o conformismo diante de uma solução cética dada ao caso Kaspar Hauser. Enigma? Não! O caso Kaspar Hauser está devidamente arquivado e engavetado, e se depender de nós mesmos, permanecerá assim. Pois afinal, existe medo maior para a sociedade do que questionar seus próprios valores?

"Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha medo de Perguntar)", por Marcílio Camelo


Nas décadas de 1960 e 1970, a poderosa Hollywood tentava se levantar de uma crise que preocupava a indústria cinematográfica americana. A Nova Hollywood, como ficou conhecida essa época de redescoberta fílmica, ao mesmo tempo em que se aproximou do modernismo europeu, aperfeiçoou o modelo de filme de sucesso, o blockbuster. Com temáticas contemporâneas à sociedade americana, o Cinema desse momento abre mão de uma censura ultrapassada e se lança a explorar o meio das drogas, do rock 'n' roll, da violência, do sexo, etc. Nesse cenário, despontam novos autores como o diretor Woody Allen, que consegue transformar o livro Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha medo de Perguntar), do especialista em sexo Dr. David Reuben, em uma divertida coletânea de contos inusitados.

Ator e comediante, Woddy Allen explora sete perguntas sobre sexo da maneira menos cientificamente correta, livrando-se qualquer receio para falar sobre o assunto. Logo no início, somos levados a um reino da Idade Média no qual o bobo da corte é o personagem do próprio Allen, que atuará em outros três capítulos do filme. Felix, o bobo que carrega um boneco igual a ele, recebe a visita do fantasma de seu pai, que só poderá descansar caso o filho transe com a rainha. Felix recorre, então, a um afrodisíaco para conquistar a dama, mas o cinto de castidade que ela usa atrapalha seus planos e ele acaba sendo descoberto pelo rei. O hilário fim acontece com o bobo ainda fazendo graça antes de sua execução, na qual aparece a cabeça do boneco decepada.

Percorrendo lugares e épocas diferentes, Allen trata com bom humor o que para muitos é tabu ainda hoje. Seguindo as esquisitices que ocorrem a cada capítulo, vemos a sodomia de um médico que se apaixona pela ovelha de um paciente seu, é descoberto pela esposa num quarto de hotel com o animal, e acaba sozinho bebendo um sabão líquido tão macio quanto lã. O humor bem empregado com um assunto sempre polêmico, prende ainda mais o espectador, e ótimas tiradas garantem a descontração, como o vibrador que o personagem de Woody tenta usar em sua esposa para acabar com a frigidez dela, mas que termina pegando fogo. No próximo episódio, o diretor lança a dúvida de que travestis são homossexuais, mostrando um homem que gosta de se vestir de mulher e tem seu estranho gosto descoberto pela sociedade. Woody também aborda a televisão e seu meio midiático com muito humor, criando um programa de TV que procura descobrir as perversões dos telespectadores e realizar suas fantasias sexuais. Ainda nesse capítulo, o diretor trata comicamente da sexualidade em uma propaganda de condicionador masculino em que o estereótipo de machão é desfeito quando os homens se beijam no final.

Vale a pena falar sobre a paródia da história do Dr. Frankenstein, na qual um médico maluco faz experimentos sexuais em humanos. Seu ajudante, um corcunda medonho também chamado Igor, ficou desse jeito por conseqüência de horas de orgasmo. Mais uma vez como protagonista, Allen interpreta Victor (outra referência ao conto gótico), o mocinho que consegue salvar a cidade de um seio gigante, que mata pessoas espirrando leite nelas. Para fechar o filme, Woody faz uma hilária comparação do corpo masculino a uma máquina, operada por vários homens, desde o momento da conquista da mulher até a ejaculação, sendo o próprio diretor um dos espermatozóides em ação.

O que Woody Allen propôs ao retirar perguntas de um livro sério e criar situações cômicas foi justamente não respondê-las, e mostrar que o sexo não é como a matemática, cheio de fórmulas e regras. A sexualidade é algo estranho, problemático, imprevisível, surpreendente. E por que não engraçado?


Ficha técnica:
Everything You Always Wanted to Know About Sex ( But Were Afraid to Ask)
Título Brasileiro: Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha medo de Perguntar)
Direção: Woody Allen
Roteiro:
• David Reuben (livro)
• Woody Allen (adaptação)
Tempo de Duração: 87 minutos
País de Origem: EUA
Ano de Lançamento: 1972
Elenco:
• Woody Allen - Fabrizio/Victor Shakapopulis/Esperma 1
• Regis Philbin - Regis Philbin
• Louise Lasser - Gina
• Lou Jacobi - Sam
• Burt Reynolds - Esperma Chefe
• John Carradine - Dr. Bernardo
• Anthony Quayle - O Rei
• Gene Wilder - Dr. Doug Ross
• Lynn Redgrave - A Rainha
• Ian Abercrombie - Bernardo