domingo, 7 de novembro de 2010

“O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni, por Renato Souto Maior


Ensurdecedora pode ser a atmosfera aparentemente silenciosa de um espaço ambientado apenas por um som de ventilador, ao fundo, uníssono, em tom constante. Em meio a um barulho pontual e sobressaltado – o ruído do aparelho a girar realmente tem seu volume aumentado e potencializado diante dos outros sons da cena – do eletrodoméstico, temos, em preto e branco, profundamente marcados, Monica Vitti e seu gestual típico de incomunicabilidade já visitado e averiguado em outras produções do diretor Michelangelo Antonioni. O tédio cai sob os personagens como uma manifestação pesada e difícil de ser ignorada ou subjugada. Apesar da tentativa inicial de ambos – obviamente um casal – em circular e lidar um com o outro de forma natural, dentro do espaço de um apartamento, logo se instala a agonia, e o fingimento não se torna mais sustentável, resultando na partida da mulher. Vitti troca algumas palavras, saí do espaço até então sufocante, e ganha às ruas de um bairro italiano tipicamente burguês, em condições estranhas, de deserto absoluto; mal se vê alguma movimentação no espaço urbano. Toda a primeira passagem de “Eclipse” retrata o fim de uma relação; não necessariamente o fim, mas o começo de um desfecho irreversível, prestes a desabar. O silêncio do casal prestes a se separar dialoga com outra passagem do filme, onde a ação se passa em ambiente totalmente contrário ao desértico bairro em que Vitti mora: uma bolsa de valores. Aqui, Antonioni delata o tempo, em momento arrastado, longo, deixando o espectador inquieto, agoniado, e frustrado. É um corte brusco entre uma paisagem aberta, ampla, vazia e silenciosa para um espaço claustrofóbico, barulhento, sufocador, repleto de doses elevadas de “algazarra” e gritaria, típicas de um ambiente como este, onde a presença de mulheres torna o quadro um tanto destoante de seu “aspecto natural”. A mãe da personagem de Vitti procura o local por motivos financeiros, apenas, enquanto a filha se vê “atormentada” por meros conflitos amorosos. É neste lugar que Vitti encontra o personagem de Alan Delon (Piero), jovem efusivo, em contraposição ao amargurado semblante de Vittoria (Vitti). O encontro se dá, então, em momento adverso de ambos; para ela, a crise de um relacionamento recém acabado, para ele a possibilidade de conquistá-la.

A posição dos atores em cena é realmente fabulosa; Antonioni movimenta a câmera com sutileza, mas ao mesmo tempo força. É uma marca visível, a sua, de saber filmar, lindamente, seus atores em cena. A beleza estonteante e o entrosamento crível de Vitti e Delon ajudam, obviamente, na elevação das cenas almejadas, mas não se mostram como aspectos exclusivamente responsáveis pelo sucesso do que se alcança; sem os enquadramentos inspirados, a direção milimétrica e a fotografia marcante de Antonioni os dois poderiam passar por mais belo casal, e só. Muitas vezes o rosto intocável de Vitti é negado ao espectador, e a vemos, diversas vezes, apenas de costas, a caminhar; assim como Delon. São várias as situações onde a câmera acompanha o andar dos dois, sem cortes, por trás. Há uma passagem curiosa logo no começo do filme, quando Vitti simula uma dança africana, vestida e pintada a “caráter”, em um momento não muito claro, sem muita “coerência” dentro da narrativa; mais adiante Vittoria se depara com trabalhadores “negros” em uma localidade que mais parece um ponto distante do centro, em local mais bucólico. Ela é levemente intimidada pela presença dos dois trabalhadores, e talvez seja uma ligação possível entre a cena da dança africana forçada, – que é muito engraçada e mostra uma Vitti totalmente fora do padrão “blasé” e contido no qual nos acostumamos. A burguesia é retratada, novamente, como classe egoísta, desinteressada e evasiva, em um cotidiano atípico, de suspiros e lamentações a cerca de problemas de origem puramente sentimental, nada mais. A presença do jovem Piero (Delon) parece tirar Vittoria do marasmo em que sua vida se encontrava, mas temporariamente. O vazio das ruas ao decorrer da projeção dá espaço a um ambiente mais movimentado e habitado. Mas o tom desértico do espaço é sufocante, e gera imagens belíssimas de avenidas largas e ruas amplas desprovidas completamente de pessoas. Uma construção, ao final do longa, bastante investigada pela câmera de Antonioni, aparece meio que fora do contexto, mas pode ser associada em um paralelo entre a estrutura em início de obras e o próprio relacionamento dos dois, também novo, fresco e em via de ser construído. A recém separação de Vittoria, e a possibilidade, tão repentina, de novo envolvimento, podem estar associadas ao título do filme. Como em um eclipse Vittoria se encontra, justamente, entre estas duas realidades, em momento de intersecção, de trânsito. Se a interpretação seguir embasada na ideia deste fenômeno astronômico, ela também suscita e trás a tona a noção de passagem; a nova relação, assim, provavelmente não perdurará. É o olhar de Antonioni sob um rápido e breve acontecimento na vida dos dois. Um olhar igualmente espetacular, misterioso e belo, como o de um genuíno eclipse.

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