domingo, 7 de novembro de 2010

"O Enigma de Kaspar Hauser", por Lucas Freire Rafael


Façamos um teste: imagine uma situação bizarra, curiosa e única, algo que você jamais ouviu falar muito menos presenciou. Pronto, pensou? Imaginou? Tenha certeza que Werner Herzog já pensou algo igual ou mais obscuro e muito provavelmente já exista um filme que trate do tema. Baseado em fatos reais, o filme O Enigma de Kaspar Hauser é uma prova disso. Como reagir diante de um ser já adulto que não lê, escreve nem sequer fala? Que nunca aprendeu funções básicas do ser humano como andar e gesticular? E que jamais entrou em contato com outro ser humano? Herzog reúne todas essas questões curiosas e singulares num único filme e personagem e com isso, aproveita para nos propor uma visão diferente e mais profunda da sociedade. E você? Como reagiria?

No ano de 1829, um velho encapuzado à lá Zé do Caixão cria, desde o seu nascimento, um rapaz que supostamente é seu filho. Por algum motivo não revelado, este velho o prendeu, logo após seu nascimento, num calabouço e lá o deixou. Amarrado pela cintura e sem entrar em contato com ninguém mais, o senhor encapuzado o mantém preso, em condições precárias de alimentação e de higiene. É comum imaginar que tal velho deva ter algum distúrbio mental, seja louco, maníaco ou qualquer coisa do gênero, mas não, isso não procede. Não é possível dizer o porquê mais algo naquele senhor transparece o contrário, ele me parece ser lúcido e equilibrado. Maldade também é algo que não enxergo neste velho. Imagino que tais atitudes dele tenham um propósito bem mais obscuro do que simples loucura ou malícia.

Logo ao início do filme, depois que vimos do que se trata aquele enclausurado, o senhor que o cria dá início a trama: ele, rapidamente, faz ensinamentos breves de como escrever e falar algumas poucas palavras, se manter ereto e andar, em seguida ele o leva para uma rua qualquer da cidade de Nuremberg. Neste ponto temos a trama instalada: um ser adulto que não possui nenhuma educação no que diz respeito a funções e reações básicas do ser humano é literalmente jogado no meio de uma sociedade no século XIX.

Esse ato do senhor de o deixar em praça pública me pareceu estritamente pensado. Imagino que tudo feito por ele tem um propósito experimental. Desde o nascimento de Kaspar Hauser (assim o chamam pois essas duas palavras foram as primeiras que aprendeu a escrever), tudo foi meticulosamente elaborado para então, na sua fase adulta, dar início a um experimento que não está diretamente ligado a ele, mas sim, à sociedade que o encontrará.

O filme pode ser dividido em duas fases: a primeira (e menos interessante) demonstra o Kaspar Hauser nos seus primeiros momentos com a cidade e seus moradores, todo o processo de aprendizado, de reconhecimento e de descobertas, tanto da sociedade que o acolheu, quanto do próprio Kaspar Hauser. Pareceu interessante? Também pensei isso, até assistir os primeiros momentos da segunda parte. A passagem da primeira para a segunda fase se dá quando um professor o encontra e o salva em um circo que o exibia numa espécie de freakshow. Logo em seguida, a história dá um pulo e encontramos Kaspar Hauser muito bem instruído, já sabendo se comunicar, escrever e se tratar, até certo ponto, com todos a sua volta.

E aí está, talvez, o verdadeiro propósito do ser Kaspar Hauser. Nesta segunda parte, ele passa, em determinados momentos, a questionar alguns valores daquela sociedade e esses questionamentos passam a intrigar os indivíduos e estudiosos que atentam a seu caso. Como esse rapaz, que há tão pouco foi inserido na sociedade, já consegue questionar e argumentar sobre certos costumes e valores vigentes? Como ele, que não possui uma visão de mundo (na óptica deles) é capaz de tal feito?

Para explicitar tais questionamentos, direi aqui dois momentos do filme. O primeiro se trata quando Kaspar Hauser conversa com a governanta da casa em que mora e pergunta a ela “para que servem as mulheres?” e, conformada com sua situação, a senhora responde que a função dela é servir seu patrão, o professor. Kaspar Hauser indignado tenta inflamar a situação e passa a questioná-la mais e mais, porém, ela alega ser apenas uma governanta e que sua função não passa e nem nunca passará da simples servidão,

O segundo momento é quando um estudioso e matemático vai até a Kaspar Hauser lhe fazer uma visita com a intenção de entender mais a complexidade do caso dele. Neste encontro, o matemático propõe-lhe um enigma cuja saída é apenas uma, não existindo outras respostas ou soluções. É interessante frisar que nessa ocasião, a mesma governanta que foi questionada sobre sua importância, estava presente e desde o início da conversa entre Kaspar Hauser e o estudioso, afirmava e reafirmava que ele jamais seria capaz de responder tal enigma. Pois então, o enigma é proposto e Kaspar H. não sabe responder, o estudioso então lhe dá a única e complexa resposta. Alguns segundos depois, Kaspar H. diz “existe uma segunda resposta para esse enigma”, o matemático, assustado, não acredita e então, com uma simples e óbvia resposta, ele desconstrói toda a lógica do grande estudioso. A partir daí, o matemático fica inconformado com tal resposta e não lhe dá crédito algum por tal solução, afirmando que para tal enigma a lógica deveria ser usada e não a dedução.

Nesses dois momentos é possível enxergar uma necessidade, ou instinto, de Kaspar Hauser ir contra aqueles valores da sociedade. As indagações feitas por ele durante todo o filme soam de forma simples, humilde e singela, sem qualquer pretensão intelectual ou culta. Essas indagações também não são simplesmente jogadas ao léu e esquecidas ou deixadas de lado na cena seguinte. Com o desenrolar do filme, Kaspar Hauser vai aderindo uma incompatibilidade com aquele mundo, aquela sociedade e em determinado momento, durante uma cerimônia e diante de todos da mais alta sociedade local, Kaspar Hauser, visto como alegoria intelectual pelos presentes, afirma num súbito desespero que preferia o calabouço que vivia a sua situação atual.

Ao seu final, quando menos se imagina, o velho encapuzado que havia criado Kaspar Hauser retorna, sorrateiramente, e mata sua própria criação. Pode-se pensar que tal ato foi, mais uma vez, premeditado, como se a sociedade precisasse de mais uma teste: o enfrentamento da morte de Kaspar Hauser. A cena final é claramente uma representação da suposta reação da sociedade com o assassinato. Depois da autópsia realizada em seu corpo, é constatado que em seu cérebro havia deformidades, seu cerebelo era hipertrofiado enquanto outras regiões eram pouco desenvolvidas. E então, o escrivão da cidade, sai da autópsia com notória felicidade, pois havia descoberto o enigma de Kaspar Hauser e o porquê de todas aquelas reações e questionamentos dele. Essa atitude do escrivão só comprova a necessidade da sociedade de transpor para outras áreas, neste caso o cientificismo, a solução para questões bem mais profundas, tão mais profundas que até fogem a nossos conhecimentos. Bem, de uma forma ou de outra, Kauspar Hauser cumpriu sua missão.

É possível identificar que o “enigma” existente no título do filme não se trata do mistério envolvendo a origem de Kaspar Hauser, mas sim, diz respeito à real função deste ser inserido na sociedade. Suas indagações e seus questionamentos permeiam o povoado de Nuremberg com o propósito de incitar valores jamais pensados por eles. Durante certo tempo, é possível acreditar que Kaspar Hauser está surtindo efeito naquele núcleo, mas logo somos surpreendidos (ou não) com a verdadeira reação da sociedade, no caso, o conformismo diante de uma solução cética dada ao caso Kaspar Hauser. Enigma? Não! O caso Kaspar Hauser está devidamente arquivado e engavetado, e se depender de nós mesmos, permanecerá assim. Pois afinal, existe medo maior para a sociedade do que questionar seus próprios valores?

Um comentário:

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