domingo, 30 de novembro de 2008

“Vamos lavar as nossas roupas juntos?” por Rafael Acioly




A cidade de Londres é, certamente, uma cidade cosmopolita e uma das principais representante do que se convencionou “centro do sistema”. Em Minha adorável lavanderia de Stephen Frears (My Beautiful Laundrette, Reino Unido, 1985) – segundo filme do diretor inglês - é um filme que mostra o porquê do desejo de estar no centro. Talvez esta seja uma afirmação escorregadia e categórica, porém útil para contextualizar o primeiro elemento que me chamou a atenção neste filme. Para bem de uma fidelidade com a película, o patriarca de uma tradicional família paquistanesa de migrantes afirma: “neste maldito país, que odiamos e amamos, você pode ter tudo que quiser. Está tudo à disposição. É por isto que eu acredito na Inglaterra. Você só tem que saber como espremer as tetas do sistema.” O homem em questão é o Tio empresário de Omar. Este último é o personagem principal.

A declaração do paquistanês pode ser personificada a partir da significativa daquelas pessoas que se movem em buscas de algo melhor, ou fazem de tudo em prol de conquistas financeiras. E com o tio de Omar, não fora diferente. Em outros filmes, com é o caso de Os Imorais (1990) Frears aborda a temática da ânsia por dinheiro onde não se impõe limites. Aqui, a questão também é abordada seja nos negócios legítimos do patriarca e as suas práticas ostensivas do “desembaraçamento” para os maus pagadores, mas também, nas negociações criminosas de uma dos amigos da família e compatriota, que inclui nos seus ganhos dinheiro oriundo do tráfico de drogas.

Na periferia de Londres, portanto, tudo isto acontece enquanto Omar aceita o desafio de fazer da velha lavanderia “Powders” (pó) um espaço limpo e de negócios rentáveis. “Há dinheiro na sujeira” como foi lhe dito, neste caso sujeira pode, também, ter o sentido irônico de se referia à situação periférica.

Em meio a todas estas questões Omar vive in-betweens entre as vontades idealistas do seu pai, que está sempre lembrado ao jovem o seu desejo “você tem que ir para a universidade”, pois para ele o Centro é o lugar de expansão cultural. Contradizendo, portanto, com os desejos mercantilistas do tio. Além disto, Omar sofre com o preconceito dos estigmas, pois são nos traços faciais os indicio das origens de sua família migrante.

Mas o grande conflito de Omar está em não saber realmente de onde ele é, já que, de um lado a família do Tio vive no nicho fechado culturalmente nas suas origens; por outro, ele sabe que nasceu em Londres e no seu espírito desbravador em nada combina com o conservadorismo que lhe é cobrado. Em meio à rivalidade entre os indesejáveis imigrantes e os punks desertores, Omar ainda vive as injúrias de ter “roubado” o líder daquele grupo, que agora vive um romance homossexual com Omar.

Ao propor todo o entrelaçamento destes temas Stephen Frears constrói a atmosfera da película com cenas preenchida por uma sonoplastia envolvente, muitas vezes ritualística, que complementa a câmera. De frente à tela, às vezes nos sentimos dentro de uma lavanderia, ou em uma grande piscina, para lavarmos juntos as nossas roupas sujas.

"O Bandido da luz vermelha" por Leonardo Nóbrega



O centro deste texto é o filme O Bandido da Luz Vermelha, dirigido em 1968 por Rogério Sganzerla. Não se encerra, porém, na análise do filme como algo findo em seus noventa minutos de projeção. Se fosse dessa forma, não faria sentido escrever sobre um filme que já foi tantas vezes pensado, repensado, medido, pesado e colocado no seu devido lugar, se é que lhe cabe um lugar. Pretendo fazer algumas reflexões sobre construções presentes no filme, seu diálogo com a realidade, e seu enquadramento histórico, relacionando a alguns outros fatores relevantes. Tudo baseado em algumas teorias que são importantes para se pensar as questões levantadas.

A loucura explosiva surge de todos os lados e toma forma na linguagem anárquica de Rogério Sganzerla, em O Bandido da Luz Vermelha. O filme foi rodado em 1968, um ano após a prisão de João Acácio Pereira da Costa, bandido que atordoou a polícia paulista por seis anos até ser preso em 67. Cometia sempre seus crimes com um pano amarrado no rosto e carregando uma lanterna de luz vermelha.

Rogério Sganzerla tinha 22 anos quando realizou esse filme, que acabou por se tornar o seu mais conhecido. Falar da revolução causada pelo filme já virou um lugar comum. Depois desse filme, vários outros passaram a utilizar a cultura de massa, os gibis, programas sensacionalista de rádio, todas as referencias presentes em O Bandido. Como afirma Ismail Xavier, “o bandido inspira o rótulo de “estética do lixo”, associado posteriormente a todo um cinema agressivo que fez um inventário do grotesco e da violência sem o mesmo humor de Sganzerla e apresentando uma visão infernal do país” (XAVIER, 2001: 67).
O contexto histórico trás um enquadramento que ajuda no entendimento do que acontece com o filme. O filme é gravado num momento histórico, pós golpe militar, em que o pensamento de esquerda estava perplexo pelos caminhos políticos tomados no país. A resposta no filme vem com a falta de ideais políticos, sem a presença da revolução como salvação social, está no vazio dos personagens, nos clichês melodramáticos dos locutores de rádio, na ineficiência do delegado Cabeção e principalmente na falta de expectativa em que vivem as pessoas. A qualidade de terceiro mundo do Brasil é sempre lembrada. A boca do lixo está sempre prestes a explodir. O “Quem sou eu?”, uma auto-interrogação constantemente feita pelo bandido (Paulo Villaça) revela a crise de identidade que passa, não só um projeto da esquerda de uma unidade de classe, mas uma recorrência a falta de lugar no mundo em que todos se encontram. Dessa forma, pode-se notar que:
“A denominação de Cinema Marginal, ou “Udigrudi”, foi cunhada, pela crítica, para aglutinar cineastas que vinham da Boca do Lixo, zona de prostituição que também congregava produtoras de pornochanchadas, em São Paulo, como foi o caso de Rogério Sganzerla, que se juntou à intelectualidade carioca, representada principalmente pelo cinema de Julio Bressane. Nascia, ali, um abismo estético e um contraponto entre estas duas escolas: uma absolutamente comprometida com os ideais políticos do CPC, e a outra voltada para os ideais libertários da vanguarda e para a tradição de deboche e ironia da arte brasileira, iniciada principalmente com Oswald de Andrade” (CANUTO, Roberta, 2006:15).

“Em política o chamado “grito do Ypiranga” inaugurou a deformação da realidade de que ainda não nos libertamos e nos faz viver num como sonho de que só nos acordará alguma catastrophe bemfeitor”. [i]Nota-se assim um caminho a ser traçado e que vai perdendo espaço para o militantismo de esquerda que quer dar um caminho para o “povo” seguir. Esse ideal, totalmente abalado pelo golpe militar, perde espaço para uma outra forma de resistência política: menos direta, menos engajada, porém muito mais agressiva e impactante.

Essa noção identitária de um grupo homogêneo, que no marxismo vinha tomando forma de classe operária, que tomaria o poder da burguesia, já vinha sendo teoricamente questionado e considerado obsoleto. No pensamento estruturalista se via uma busca pelo pensamento universal, uma noção de totalidade, mesmo que já se estivesse abandonando uma idéia do sujeito como central. A publicação por Foucault de L'arquéologie du savoir apresenta grandes mudanças em relação ao anterior Les mots et les choses. Com essas mudanças pode-se perceber uma tentativa de romper com seu pensamento estruturalista anterior. Faz uma tentativa de união com a histórica, de forma a desconstruir a história de dentro para fora, à maneira de Nietzsche (projeto que vai iniciar o chamado pós-estruturalismo).
O grande passo de Lárquéologie du savoir é levar em consideração o nível da prática, do engajamento político, a partir da noção de prática discursiva. A ruptura que se estabelece com o estruturalismo é de se afirmar que as relações discursivas não são internas ao discurso. O que acontece com essa desconstrução da disciplina histórica é o abandono da busca pela continuidade e grandes sínteses, trazendo à tona a pluralização como local privilegiado. Dessa forma, o arqueólogo se coloca então como um relativista, não tendo a necessidade de fazer relações de causalidade, mas sim fazendo aflorar o que se esconde em baixo das várias camadas da sociedade. Dessa forma, a introdução desse conceito fundamental de Foucault, da pratica discursiva, tem grande importância para o que está sendo pensando aqui, pois possibilita um nível de análise em que o sujeito não tem importância enquanto indivíduo, mas tem extrema importância o local de onde o discurso está sendo proferido. A analise do discurso não se importa com a formação gramatical da frase mas sim com as condições sociais que possibilitaram a formação de tal frase, com as condições históricas que lhe deram base, com o local de onde a frase está sendo proferida. Nesse sentido, o sujeito não existe de forma exterior a frase mas é, sim, parte dessa frase, dessa modalidade enunciativa, é uma função desse mesmo anunciado.
Tomando como base essa reflexão, não importa de início quem foi Rogério Sganzerla, mas sim quais as condições que propiciaram o surgimento de seus filmes e da sua inovação na linguagem cinematográfica. Alguns apontamentos quanto as condições de surgimento já foram feitas: as influencias de Oswald de Andrade, de Mário de Andrade, de todo um pensamento antropofágico que acabou por sofrer um processo de desconstrução no momento em que foi necessário dar uma resposta (ou um grito qualquer) contra a política que vinha sendo feita no Brasil e os rumos que as coisas vinham tomando.

O filme inicia com um letreiro anunciando: “um gênio ou uma besta”. E logo vem a voz em off do bandido da luz vermelha: “quem sou eu?”. Isso já inicia o filme marcando sua estética com uma mistura pop, de cultura de massa, lembrando sempre o esdrúxulo, o grotesco, ao ironia, o riso, cenas de ação constante misturadas com reflexões existencialistas. Letreiro continua: “os personagens não pertencem a esse mundo mas ao terceiro mundo”. A constituição em si de uma unidade terceiro mundista já apresenta uma ironia. No decorrer do filme, essa frase vai se repetir, principalmente numa voz em off enquanto passa alguma cena bizarra. É uma idéia sempre de lembrar a característica periférica de onde se fala, de onde essas coisas podem acontecer. Como o locutor afirma “trata-se de um far-west do terceiro mundo”. A condição antropofágica fica clara. Num momento mais a frente, aparece outro personagem central, o delegado Cabeção. Essa personagem apresenta ao mesmo tempo o que há de grotesco na condição de periferia terceiro mundista como uma ironia aos filmes hollywoodianos em que os policiais são heróis que logo resolvem os casos mais difíceis. Em O bandido da luz vermelha, todos são anti-heróis, esperam qualquer oportunidade para colocar o outro para trás, e nesse caos imenso que é sintetizado na Boca do Lixo, um anão negro profecia: terceiro mundo vai explodir, quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar”. De imediato o delegado Cabeção dá a ordem: “prende esse anão boçal”.

A presença do riso, do cômico, grotesco, irônico, no filme de Sganzerla, entra em consonância com o estudo que Bakhtin fez do livro Gargantua e Pantagruel de Rabelais. Dessa forma, ele afirma que: “O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas canarvalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, uma e indivisível” (BAKHTIN, 1977: 4). Essa cultura carnavalesca é referencia o tempo inteiro no filme, tanto na figura do anão, como o delegado como em tantas outras passagens.

Um ponto importante a se analisar é a construção que se dá entre realidade e ficção. O bandido do filme é uma livre inspiração no bandido que aterrorizou São Paulo até 1967, quando foi preso depois de seis anos cometendo crimes. As características de grotesco que o filme trás estão intimamente relacionadas com o João Acácio Pereira da Costa, o verdadeiro bandido. Coloco abaixo alguns trechos de uma reportagem feita logo após sua saída da prisão (ele foi solto depois de passar trinta anos preso). “Chamado de Bandido da Luz Vermelha, a tradução para o português do pseudônimo de Caryl Chessman, condenado na Califórnia em 1948 à câmara de gás, por crime sexual e seqüestro, e executado em 1960. O original se destacava pela inteligência, fez sua própria defesa no tribunal e se tornou conhecido como o símbolo contra a pena de morte, abolida na Califórnia doze anos depois de sua execução. Acácio aprovou a comparação e comprou uma lâmpada vermelha para sua lanterna. "Eles gostaram, me deram a idéia e eu repeti. Fiz outros assaltos assim. Os jornais mesmo é que me deram a idéia de ser o Luz Vermelha", disse em 1968, em uma entrevista para o jornal Última Hora”.
“Chamava a atenção de juízes e promotores um traço da personalidade de Luz Vermelha. Ele confessava os crimes como se estivesse contando vantagens. Apesar de condenado por quatro homicídios, disse ao juiz que havia matado "uns quinze". Dos 88 processos pelos quais foi condenado, nenhum esteve ligado a crime sexual, apesar da fama. Na semana passada, chegou a posar nu para um jornal de Santa Catarina, que acabou desistindo de publicar as fotos. O advogado de Luz Vermelha, José Luiz Pereira, tentou vender à imprensa a possibilidade de realizar um ensaio fotográfico do ex-presidiário sem roupa. "É o sonho dele", disse”. “Um promotor que acompanhava a rotina dos presos na cadeia relata que Luz Vermelha ignorou as centenas de cartas de mulheres com proposta de namoro. Casou-se com o cozinheiro Bernardino Marques, que cumpria pena por ter matado a sogra. Quando o cozinheiro deixou a prisão, Acácio não teve outros relacionamentos, mergulhando num ciclo de surtos psicóticos, e chegou a ser internado no manicômio judiciário”.[ii]

Dos relatos vistos na reportagem pode-se ter uma clara idéia da relação entre o grotesco como estética e construção dos personagens no filme e o próprio bandido que inspirou o enredo. Faz-se lembrar agora um trecho de Oscar Wilde em que ele firma que “a vida imita a arte”. Com essa tese que parece, a principio tão impossível, depois dos casos relatados fica mais fácil entende que relação existe entre realidade e arte. Ambos estão sempre se relacionando diretamente, porém, continua Wilde, “só a arte nos proporciona a beleza. (...) Em uma palavra, a vida é o melhor, ou antes, o único discípulo da arte” (WILDE: 54). Pode-se perceber que a o cotidiano num primeiro momento não imita a criação artística porém a partir da formalização da arte, o olhar sobre o mundo, a vida, a natureza, passa a ser moldado pela obra de arte. Num segundo momento pode-se ter então atos que são influencia direta da arte. O mito que virou o bandido da luz vermelha tem tudo a ver com essa relação. Nesse caso, não só o filme mas todo o discurso midiático em cima do seus crimes, fizeram dele um mito, e ele próprio passou a viver essa realidade mítica.

“Depois de analisar o laudo psiquiátrico de Acácio feito quando ele foi preso e o outro, escrito pouco antes de sair, o psiquiatra Claudio Cohen, professor de medicina legal da USP, arriscou um diagnóstico do criminoso. Acácio seria um limítrofe, patologia catalogada no Código Internacional de Doenças. Não tem a personalidade formada e, por isso, age de acordo com a expectativa das pessoas (grifo meu). É instável emocionalmente e de sexualidade confusa. Aparenta ser esquizofrênico, mas demonstra inteligência ao criar métodos de assalto. Dentro desse quadro, agirá como um homem bom enquanto dele se esperar que seja bom”.[iii]

O filme segue de forma sempre tragicômica, com as referência já citadas e cultua pop, marginal, estética grotesca, sempre utilizando a presença do kitsch, em consonância o a atmosfera estético-intelectual proposta pelo filme. Aparecem ainda a prostituta Janette Jane, o candidato a presidente pela boca do lixo, J. B. da Silva, a máfia Mão Negra e vários outros elementos que devem esperar por um outro momento para serem refletidos.

O Bandido dá o deslize que termina na sua descoberta ao manter um caso com Janette Jane (Helena Inês), a prostituta por quem se apaixona e que acaba o entregando à polícia. Longe de um final comum, até pela tragicomédia montada no filme, em que o bandido ri o tempo inteiro da polícia e que o envolvimento da máfia na Boca do Lixo faz lançar a candidato um político corrupto, longe de um filme comum, o final surpreendente revela ainda mais a coexistência da comédia e da tragédia. O fim irônico, bandido e policial abraçados, deixa o “lixo” como mensagem e a certeza de que “viver no Brasil é encarar a violência, grossura e tolice onipresentes; um mundo onde a lucidez possível é o riso paródico” (XAVIER, 2001: 68)

Depois das tentas reflexões já feitas nesses quarenta anos do filme, não faria mais sentido escrever/refletir sobre ele se não fosse por sua constante atualidade. Serve ainda para lembrar aos mais céticos que as totalidades e mesmo as causalidades não fazem sentido algum. O grotesco está ai sempre para exagerar. Seja nas reflexões feitas por Bakhtin ou mesmo na presença da estética do exagero (lixo) de Sganzerla, o principal a se lembrar e que o riso está ai para salvar a todos, ou mesmo para enfiar todos de vez no buraco. Como lembra brilhantemente o bandido: “quando a gente não pode nada a gente avacalha e se esculhamba”!.

[i] Introdução escrita por Paulo Prado em 1924 ao livro Pau Brasil de Oswald de Andrade.
[ii] Revista Veja, 1997.
[iii] Idem


Bibliografia:
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil, 1925.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, 1977. Editora Hucitec.
CANUTO, Roberta. O Bandido da Luz Vermelha [manuscrito] : por um cinema sem limite. 2006. Orientadora : Profa. Dra. Vera Casa Nova. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Paris: Gallimard, 1971.
VEJA (revista), 1997. Acessado em 28 de novembro de 2008. Endereço eletrônico: http://64.233.169.132/search?q=cache:C21i1xRQMI0J:veja.abril.com.br/030997/p_030.html+entrevista+bandido+da+luz+vermelha&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br
XAVIER, Ismail. Do Golpe Militar à Abertura: a resposta do cinema de autor in Cinema Brasileiro Moderno, 2001. Paz e Terra. São Paulo.
WILDE, Oscar. Intenções. Tradução de Paulo Barreto (João do Rio). Aaaa. Livraria Império.

"Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961)" por Rafael Reines





O início da década de 60 foi bastante fértil para a “British New Wave”, que teve como principais diretores Tony Richardson, Karel Reisz, John Schlesinger e Lindsay Anderson. O primeiro chegou a ganhar um Oscar em 1963 com Tom Jones, mais suas maiores contribuições para o movimento foram “The Loneliness of the Long Distance Runner” e “Um Gosto de Mel (A Taste of Honey)”, que foi uma perfeita adaptação para as telas da peça de Shelagh Delaney, que também co-escreveu o roteiro junto a Richardson. Um Gosto de Mel foi um divisor de barreiras do cinema britânico, abordando temas inéditos até então, tendo como protagonista uma jovem de classe média baixa, relações inter-racias e um personagem homossexual. Richardson conseguiu organizar todos esses elementos com uma enorme sutileza e sensibilidade, criando uma obra única que marcou completamente não só o cinema britânico, mais que também entrou para a história do cinema.

A solitária Jo (Rita Tushingham), uma adolescente sem nenhuma perspectiva de futuro, vive com uma mãe negligente e alcoólatra, a promiscua Helen (Dora Bryan) que se muda constantemente para não pagar aluguel. Após um rápido romance com o marinheiro negro Jimmy (Paul Danquah), ela fica grávida, enquanto isso, sua mãe está muito ocupada cuidando do seu casamento com o boêmio Peter (Robert Stephens) para lhe dar alguma atenção. Jo decide viver por conta própria, com a ajuda de seu amigo gay Geoff (Murray Melvin) e tenta assim, formar a sua própria versão para uma família feliz.

Todo ambientado na Inglaterra do pós-guerra nos anos 50, a fotografia do filme impressiona pelo seu grau de realismo, o diretor de fotografia Walter Lassally conseguiu reproduzir com um naturalismo impressionante a Manchester do período pós-guerra. Tanto a iluminação natural de Lassally nas externas, como o bom posicionamento de câmera nas cenas internas, capturaram perfeitamente a atmosfera industrial e urbana da época .

Para todos interessados na história do cinema, Um Gosto de Mel de Tony Richardson é um ótimo exemplo da “British New Wave” dos anos 60. Grandes atuações, uma fotografia magnífica e o poder dos diálogos de Delaney, que escreveu toda a obra, todos esses fatores contribuíram para fazer desse filme uma das maiores referências desse cinema.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Estranhos no Paraíso (Stranger than Paradise, Jim Jamursch, 1984)" por Guilherme Carréra



Temos um casal em um quarto. A fotografia em preto-e-branco, os enquadramentos firmes, as camas mal feitas. Willie (John Lurie) tenta dormir, enquanto o telefone toca. Eva (Eszter Balint) acende cigarros e se movimenta pouco pelo cômodo. Ambos húngaros. Na cidade de Nova York, transformam-se em dois estrangeiros. A aparente adaptação de um e a languidez preguiçosa da outra são contrapontos que dão contorno à estratégia discursiva de Jim Jamursch. O diretor norte-americano elabora um olhar de estrangeiro para filmar seu próprio país em “Estranhos no paraíso” (Stranger than paradise, Estados Unidos, 1984), um exercício delicado sobre estradas, quartos de hotel e parcerias.

O longa-metragem dividido em três atos me parece imbuído de um profundo senso de deslocamento. Um permutar constante, que ora cessa em um local, ora se descortina e desembesta em busca de outros ares. Willie, o húngaro que reside na capital nova-iorquina há algum tempo, não quer mais ser húngaro. “Me chame de Willie”, diz, negando seu nome original, ao receber sua conterrânea no apartamento. Eva vem de longe, vem de Budapeste. A pedido de uma tia, Willie aceita abrigá-la por alguns dias. A co-habitação dos dois é o conteúdo de “O Novo Mundo”, título da primeira parte do filme.

Por mais que a territorialidade seja um dos focos aqui, a materialização da cidade (ou das cidades, já que o filme é uma espécie de road movie) nunca se dá por completo. A Nova York cartão postal, com o Empire State imponente, o Central Park gélido e as grandes avenidas que cruzam essa grande metrópole não são alvos da câmera jarmuschiana. A isso tudo ele prefere breves planos de Eva andando por uma rua de prédios classe média, com pichações nas paredes e calçadas vazias. Jamursch não quer o óbvio, não quer a cidade pela cidade. O que o olhar ordinário renega, “Estranhos no paraíso” se predispõe a tornar cenário. O estranhamento da húngara em solo americano repercute em diálogos com Willie. A junkie food ianque, símbolo de uma praticidade torta, é motivo para Eva indagar sobre o tipo de alimentação. O “TV food” reúne carne, batata, salada, com direito à sobremesa. “Mas a carne nem parece carne, de onde ela vem?”, questiona Eva. “Da vaca”, limita-se Willie.

Passada a temporada da estadia, Eva parte para Cleveland, seu destino final. Antes disso, conhece Eddie (Richard Edson), amigo de Willie. Eddie completa a trinca-protagonista do filme. O personagem é dotado de um humor involuntário, mas muito suave. A comédia em Jamursch nunca é escrachada, a predominância é da sutileza. Juntos, os três se reencontrarão no que se pode chamar de segundo segmento, “Um ano depois”, quando os amigos ganham dinheiro em um jogo de cartas e partem para Ohio, a fim de visitar a jovem. Na estrada, Eddie deixa escapar que não sabia que o amigo era europeu. “Sou tão americano quanto você!” é a resposta incisiva de um Willie entre seu passado e seu presente, entre o Leste Europeu e a América. O reencontro com Eva na lanchonete os coloca novamente como trio. A influência da Nouvelle Vague em “Estranhos no paraíso” pincela de Truffaut a Godard: a tríade composta pode lembrar ao espectador o célebre “Jules e Jim” lírico-truffauniano, assim como a desconstrução e a ausência de identidade fixa de qualquer criação godardiana.

Em “Paraíso”, última parte do filme, Willie e Eddie, que haviam decidido ir embora de Ohio, cogitam voltar para apanhar Eva e seguirem juntos para a Flórida. Assim o fazem. Com óculos escuros comprados ao chegarem à Flórida (“agora parecemos turistas de verdade”, brada um deles), os três se instalam em um quarto de hotel. As praias no inverno, a neblina que sobe e um grau de intimidade que nunca se concretiza entre o trio decoram a ambiência. Por mais próximos que estejam, Eva e Willie ou Eva e Eddie parecem não se conectar, não se deixar conhecer uns aos outros. Por desconfiança ou por falta de tato para criarem uma relação menos distante e mais calorosa, se isso não configura observação brasileira em excesso.

O vento forte que passa enquanto Eva está sentada próxima ao mar é uma seqüência simples e eficaz. O paraíso com belas mulheres de biquíni e o clima de veraneio imaginado por Eddie cede espaço para uma Flórida longe do estereótipo idealizado. O que se passa na cabeça daquela mulher, suas angústias e dúvidas não são verbalizadas, e Jamursch parece dizer que seu objeto de interesse é, por conseguinte, o não-dito. A construção de suas imagens e sua narrativa episódica prezam por certos silêncios, seja enquanto dois amigos bebem uma cerveja, seja enquanto Eva passeia em frente a uma gift shop meio abandonada. Paira sobre o filme um laconismo sincero.

Elemento precursor do que já se institucionalizou denominar “cinema independente norte-americano”, ou simplesmente cinema indie, “Estranhos no paraíso”, paradoxalmente, está bem distante do que se vê hoje com o rótulo desse tipo de produção. Longe da presunção de psicologizar excludentes, Jamursch, com o auxílio de uma poderosa trilha sonora que percorre os deslocamentos tanto físicos como imaginativos, tenta criar uma atmosfera sem dissonâncias e gritarias. Seu filme é coeso e quase sussurado. Embora as discussões se façam presente, o tom é de serenidade e de contemplação. Para mim, resvalando em certa apatia juvenil, tendo Eva, sentada diante daquele mar, como a moça sem grandes esperanças.

O senso de deslocamento que vai interligando estradas, quartos de hotel e parcerias ocasionais é retratado em dois planos generosos de beleza visual. A cena de abertura, quando vemos Eva com sua mala e sacola ainda no aeroporto, vendo um avião decolar. E uma das últimas seqüências, quando Eddie olha um outro avião alçar seu vôo. Nos dois momentos, a aeronave preenche a tela e rouba a atenção do espectador. Os dois seres ali embaixo, olhando, oprimidos pelos ritos de passagem que aqueles vôos significam, em espaços diferentes, sob ângulos distintos. “Viemos para um lugar diferente e tudo parece igualzinho”. A inocente e anterior constatação de Eddie ao trocar Nova York por Ohio talvez se oponha ao rito de passagem daquele avião. Talvez se deslocar fisicamente não signifique, de fato, mudar.

"Exótica" por Mariane Bigio



Impossível não começar falando do título: “Exótica”, que acaba por condensar o que o longa de Atom Egoyan é de fato. Mas ao contrário do que possa parecer, não há nada de óbvio nem superficial no enredo deste filme. Além de ser o nome do strip-club onde grande parte da trama toma corpo, o título se explicita nas trilhas escolhidas – geralmente de origem árabe – na decoração “tropical” do club, nos personagens – geralmente descendentes de orientais – , na loja de animais exóticos. O “ser exótico” é aqui, também, o ser além (ex) do que se vê (ótico), o que significa que é preciso mais do que apenas olhar para compreender o que Egoyan pretende. Mais que isso, o “ser exótico” é abordar temas, espaços e fatos que estão além de uma ótica hollywoodiana.

O diretor canadense é, ele mesmo, um exemplo do multiculturalismo: origem armênia, nascido no Egito, e traz esta vivência para dentro da narrativa. A não linearidade é uma característica por ele utilizada, e chega, até mesmo, a confundir-nos um pouco, sobre o por quê do comportamento dos personagens.

A Dançarina do strip-club, Christina, faz uma apresentação “vip” para o mesmo cliente (Francis), todas as noites. Francis leva e traz sua sobrinha diariamente de sua casa, e sempre lhe oferece um pagamento em dinheiro. O dono da loja de animais exóticos (Sr. Pinto) freqüenta diariamente o balé, sempre com um ingresso extra... o que esses personagens pretendem? Ou melhor, o que o diretor espera que pensemos? O que ele pretende?

Até que cenas retrospectivas (flash-back) apareçam, as dúvidas são imanentes. Aos poucos os por quês vão sendo explicados, os comportamentos, fundamentados, e tudo ganha um sentido mais claro. As vidas dos personagens estão interligadas por uma tragédia. O então Dj do strip-club, Eric, e Christina encontraram no campo o corpo sem vida da filha de Francis; antes disso Christina tinha sido Babá da menininha – é provável que a reviravolta em sua vida (de babá à striper) tenha sido causada por essa tragédia; Francis, que fiscaliza a loja de animais exóticos, aproveita-se da situação de ilegalidade da loja para fazer com que Sr. Pinto se aproxime de Christina, quando ele próprio foi afastado de Exótica, por ter tocado na dançarina....enfim tudo começa a se encaixar. Francis, na verdade, busca reviver os momentos com sua filha através da convivência com pessoas próximas a ela.

Além de tecer uma história comovente, Atom Egoyan trata de temáticas como o contrabando, a violência, o homossexualismo, entre outras, que fazem parte da realidade contemporânea. Mostra quais os rumos mais prováveis daqueles oriundos de outros países/culturas, ao chegarem em território Primeiro Mundista. Sutilmente propõe uma redefinição do significado de cultura, contestando limites e fronteiras, julgando o preconceito. Quando um personagem refere-se aos animais da lojinha, Egoyan nos deixa subentendida a condição dos que fazem parte dessa trama: “só por que são exóticos, não significa que não suportam os extremos, afinal lá fora é a selva”.

"O Ódio (Mathieu Kassovitz, França, 1995)" por Guilherme Carréra




A urgência das imagens de “O ódio” (La Haine, França, 1995) remete a um desejo de filmar a tensão do agora. Seus personagens se atraem e se repelem com a mesma facilidade com que se locomovem. O deslocamento constante dos protagonistas é filmado com peculiar interesse. Eles exploram cada esquina, cada rua da cidade. Vão da periferia ao centro. Circulam entre os transeuntes sem se misturar. Carregam consigo os próprios dilemas, não sabendo muito bem como lidar nem como resolvê-los. Tal movimentação resulta em um filme jovem. Com uma montagem editando seqüências que se passam ao longo de um dia, o ritmo da produção é construído com as possibilidades de se narrar aquele contemporâneo de forma instigante. E o ar jovial só contribui para se construir uma obra que parece pulsar, enquanto seus personagens discutem, correm e gritam.

Mathieu Kassovitz tinha 28 anos quando dirigiu este longa-metragem. Vincent Cassel ainda não era considerado um dos grandes nomes de sua geração. A popificação da violência tarantinesca era uma novidade que se alastrava pelo mundo com o lançamento de “Pulp Fiction” e o aval de uma Palma de Ouro. O contexto em que “O ódio” emergiu o coloca como exemplar de um cinema interessado no que está se passando. Essa idéia de gerúndio é bastante notória na produção: o trio principal é acompanhado durante 24 horas, suas ações se sucedem e o levam para situações subseqüentes. O clima um tanto quanto documental deixa claro que Kassovitz quer diagnosticar um tempo histórico específico.

Passado na periferia parisiense, “O ódio” está à margem do centro. A primeira metade do filme se passa nessa espécie de gueto, onde Vinz (Vincent Cassel), Hubert (Hubert Koundé) e Said (Said Taghmaoui) convivem. Um judeu, um negro e um árabe, respectivamente. Os três personificam identidades distintas, co-habitando as franjas da civilização. Na periferia, dançam hip hop, entram e saem de suas casas, fumam maconha e gritam uns com os outros. Gritam muito, como se gritando, pudessem ser ouvidos de alguma forma. Quando se deslocam para o centro da capital francesa, algo soa estranho para o espectador, acostumado com o dia-a-dia dos jovens nas vizinhanças. A Paris filmada parece ser uma outra cidade. O trio não se encaixa naqueles cartões postais.
A fotografia em preto-e-branco contrasta com os cortes bruscos das imagens. O relógio que expõe ao público em que hora do dia se passa o acontecimento retratado, ao mesmo tempo em que cria a cronologia do cotidiano, sinaliza para o imediatismo dos fatos. Tudo acontece muito rápido, em um fluxo de eventos ininterruptos, fazendo de “O ódio” um filme verborrágico por excelência. A todo o tempo alguém está falando, comentando, dialogando. Comunicar-se é deliberadamente um objetivo. O experenciar do dia-a-dia também entra através da TV na casa dos personagens. Em uma seqüência, mãe e filho estão comendo à mesa, enquanto a televisão expõe imagens dos atentados e da violência ocorridos na vizinhança. Devidamente instalados naquele espaço, circulando e convivendo com os populares, ninguém, entretanto, parece estar satisfeito com a condição disponível. “Estou de saco cheio desse lugar, tenho que partir daqui” é o que exterioriza Hubert, cansado da vida que leva e das oportunidades nulas.

Essa tensão entre os que vivem nos subúrbios e os habitantes das redondezas dos Champs Elysées ganha momentos curiosos. Quando uma equipe de reportagem vai até o local onde o trio mora, querendo entrevistá-los sobre um atentado que houve no dia anterior, um deles indaga (gritando, obviamente): a gente tem cara de marginal ou o quê? E em uma situação oposta, quando os três circulam pelo centro de Paris e passam por policiais, notam uma diferença simples, mas que quer dizer muito. “Por aqui eles chamam as pessoas de ‘senhor’”, constatam. O discurso de Kassovitz é paradoxalmente contido. Ele não faz um filme panfletário, muito menos sociológico. “O ódio” está focado no que acontece com Vinz, Hubert e Said, se apropriando do comportamento tipicamente jovem de se deslocar, para a partir daí representar a cidade e suas tensões.

Perto do fim do filme, os jovens entram em uma festa de penetras e se dão mal cantando duas mulheres. Não perdem tempo e tentam assaltar um carro. O plano dá errado e eles fogem da polícia. Depois de perderem o metrô de volta para casa, optam por perambular pelas ruas. Em resposta a um outdoor publicitário que diz “o mundo é seu”, um dos jovens pára diante da frase. Sem titubear, não pensa duas vezes. Ele reescreve-a: “o mundo é nosso”. Esse é o ponto de vista aparente de “O ódio” ao enxergar o mundo pelos olhos da juventude. Essa sede de mundo é o guia. Essa vontade irrefreável de abraçar o universo e tudo que com ele vier.

"O mundo" por Laíse Queiroz



“Veja o mundo sem sair de Beijing” nos dá a deixa inicial de O Mundo, que se passa em um parque temático e traz a história das pessoas que trabalham neste intrigante lugar, e suas relações, tanto com outras pessoas quando com o parque e com o mundo exterior. O parque possui réplicas em tamanho menor de todos os grandes monumentos de diferentes partes do mundo (tem desde a sua própria Torre Eiffel até as Torres Gêmeas, passando pela Grécia).

Logo no começo, o parque recebe estrangeiros para fazerem parte de seu elenco de apresentações, e seus passaportes são imediatamente “interceptados”, para que fiquem sob os cuidados de um responsável, indicando que os performers russos agora estariam presos “no mundo”. O filme mostra o tempo inteiro o quão as pessoas estão presas naquele lugar, e é pontuado por animações que, em geral, trazem imagens de fugas. Seja quando mostra uma menina voando, ou um homem indo embora a cavalo, identificando o forte desejo que as pessoas dali têm de ir embora.

O diretor Jia Zhang-Ke também traz o grande contraste, e encantamento da parte dos chineses, em relação às culturas estrangeiras, seja em relação aos próprios nomes seja em relação a objetos utilizados, e às tentativas de comunicação entre pessoas que não falam a mesma língua. Em uma das cenas aparecem uma chinesa e uma estrangeira tentando se comunicar enquanto lavam as roupas. E elas conseguem. Fato curioso é que essa parte não tem legendas, o que deixa o espectador na mesma situação dos personagens, tentando entender somente por gestos línguas completamente diferentes.

O Mundo mostra o tempo todo o fascínio dos chineses que trabalham no parque temático com o mundo estrangeiro. Musica pop, pôsteres de filmes ocidentais (como Titanic), e a ocidentalização da cultura. Em uma das cenas dois personagens folheam um catálogo de moda estrangeira, e uma delas, que vende itens importados, comenta que pessoas dali têm atração por coisas de fora.

“Dê-nos um dia e lhe mostraremos o mundo”. As relações refletem as principais características do parque temático: A artificiliadade e o alto nível de aprisionamento. Em um dos casais, a menina é completamente sufocada pela desconfiança do namorado, que sempre pergunta onde ela esteve, e, quando ela finalmente toma coragem e tenta terminar o namoro, ele põe fogo no próprio casaco, ainda em seu corpo. Eles acabam casando. A artificialidade nos é mostrada no relacionamento de Tao, a protagonista, com seu namorado, que tenta a todo o momento se aproveitar do sentimento dela. Em uma das cenas lês aparecem discutindo e segundos depois começam a posar para uma espécie de montagem em vídeo do parque, onde aparecem felizes e acenando.

Na relação entre irmãos e amigos mostrada em O Mundo o caráter artificial também surge em vários momentos, e fica claro que o dinheiro vem na frente de qualquer afeto. Quando Irmãzinha, um dos amigos, está quase morrendo, pede pra escrever uma carta. Os amigos e irmãos lêem o que foi escrito e começam a chorar copiosamente. Depois nos é revelado que a carta nada mais continha do que a listagem de todas as suas dívidas.

- É lindo!
- Não tanto pra mim.
- Você esteve aqui um tempo.

Esse diálogo, em que Tao elogia uma construção nos remete a situação em que ela própria se encontra com o dia-a-dia no parque: apesar de todos ali terem uma enorme admiração pelo que vem de fora, no parque, onde eles têm “o mundo”, se sentem presos e perderam a capacidade de se encantar com tudo aquilo. A grande questão do filme talvez seja essa, somada ao fato de que apesar de não satisfazerem seus encantos pelo mundo exterior com a artificialidade do parque, e sentirem-se aprisionados ali, sentem-se satisfeitos em relações tão artificiais quanto, e que as aprisionam ainda mais.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

"Por um cinema mais humano" por Anderson Barretto





O amor e suas desventuras é uma temática marcante na carreira de Wong Kar Wai, diretor de filmes de grande carga poética, cheios de sensibilidade. Em “Felizes Juntos” (Happy Together, 1997) não poderia ser diferente, tratando do amor entre iguais, o diretor esbanja o seu olhar apurado e traduz os mais distintos sentimentos. Fiel ao seu histórico de filmar em vários lugares num mesmo filme, Kar Wai conta a conturbada relação entre dois rapazes que saem de Hong Kong e partem para a Argentina, assim, simplesmente – um desejo dos personagens se refugiarem no “fim do mundo”, no sul da América do Sul – uma cultura totalmente diferente.

A relação entre os dois jovens é também peculiar, não por serem do mesmo sexo, mas por não saberem ao certo que tipo de relação eles têm. São amigos, namorados que aos poucos vão descobrindo um ao outro e a si mesmos. Para isso percorrem um caminho tortuoso, num submundo interior repleto de grandes explosões de sentimentos reprimidos, exorcizados ironicamente graças ao amor. É uma relação de amor e ódio, com brigas e agressões físicas e verbais, passeando por ciúme, ingratidão, ressentimento, culpa, dúvida... Sentimentos possivelmente identificados pelos cidadãos de Hong Kong ao verem-se “libertos” da Inglaterra, exatamente no ano de produção de “Felizes Juntos” – 1997 – uma época marcada pelo reencontro. Assim, Kar Wai utiliza os dois personagens pra traduzir o clima de distanciamento da realidade, traduzindo o contexto da época, refletindo com isso, todas as perturbações que a solidão pode causar.


As cenas do casal, algumas até com certo erotismo, não servem como estereotipagem dos tipos homossexuais representados no filme, pelo contrário, trazem tamanha naturalidade, afastando qualquer tipo de preconceito, uma vez que podem ser facilmente identificadas por qualquer casal, hétero ou não. Fai e Po-Wing vivem se reconciliando, sem perceber que apostam numa relação “sem futuro”, onde os momentos de paz quase não existem, apesar de ser bastante nítido o forte sentimento que nutrem um pelo outro.

Felizes Juntos mostra um amor violento, pessimista, fruto talvez de uma revolta contida e reprimida, claramente uma busca pela identidade dos protagonistas, o que é visível desde o início do filme quando são apresentados a partir dos seus passaportes com suas fotos e nacionalidades. Mais adiante, os dois encontram-se perdidos nas estradas sul-americanas, induzindo à questão: “até que ponto eles estão perdidos?”. Longe de qualquer insegurança, o casal tem determinação, e levados pelo sonho de conhecer a cataratas de Iguaçu, transmitem para o público uma atmosfera atemporal, carregada de nuances e impressões. No entanto, apenas quando o casal se separa, os personagens caem em si, se reconhecem auto-exilados num país subdesenvolvido, literalmente “do outro lado do mundo” e recordam toda a odisséia repleta de dificuldades que enfrentaram. Transitaram por entre becos, lugares escuros, conheceram o lado sombrio e avesso da Argentina, num ângulo contrário ao encanto e sedução do desconhecido, uma espécie de Hong Kong de “cabeça para baixo”, longe do lar que nunca puderam encontrar.

Won Kar Wai não é um diretor popular , mas sim é um diretor de impressões, prefere sugerir a ser explícito, seja nas palavras ou nos acontecimentos, aborda sempre o subentendido, pede um certo esforço ao espectador, que automaticamente se vê intrigado com tantos sinais colocados à sua frente. O diretor explora essas sugestões também na belíssima fotografia do filme, utiliza a cor como poucos, tratando-a como uma expressão dos sentimentos. Nas cenas em preto e branco, brinca com os tons de cinza, fugindo muitas vezes do alto contraste, indiretamente sugerindo um anti-radicalismo ao nos fazer pensar que as coisas não precisam necessariamente ser de um jeito ou de outro, há sempre muitas opções... E assim, o filme vai traduzindo nuances, o tempo, a memória, permitindo a aceitação de tudo e de todos, contribuindo sutilmente para uma abordagem mais humana e universal do cinema.

"Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961)" por Eduardo Rios



“Um gosto de mel”, filme dirigido por Tony Richardson em 1961, é exemplar na representação de sujeitos, posições e identidades periféricas. A película narra um pedaço da vida de Jo (Rita Tushingham), uma adolescente em busca de respostas para seus conflitos existenciais, para o seu modo de viver e enxergar a vida. A protagonista possui uma relação de pólos com sua mãe Helen (Dora Bryan): por vezes sentem falta da outra, por vezes já não mais se suportam; por vezes cuidam da outra, por vezes são indiferentes.

Os diálogos entre mãe e filha são um espetáculo à parte no filme, pois são nesses momentos que o naturalismo consegue aparecer com mais força nas conversas e interpretações. Os assuntos abordados não necessariamente apresentam continuidade. São facilmente trocados ou intercalados, como na vida real. Se as duas personagens começam a falar da idade da mãe, uma delas avista uma peça de roupa e pergunta se a outra acha bonito aquele vestuário, o qual já remeterá a outro assunto, e assim por diante. Fica bastante claro, no decorrer do filme, o choque entre esse naturalismo que começa a se infiltrar no cinema e entre o cinema tradicional da época, identificado em elementos como a trilha sonora e a impostação de voz dos atores, principalmente a de Dora Bryan.
Além da própria mãe, Jo se relaciona com outras duas pessoas. Um marinheiro negro (Paul Danquah), com quem vive uma paixão que termina por gerar uma gravidez; além de Geoff (Murray Melvin), um homossexual com quem a protagonista vive um amor de irmãos. Os personagens vem e vão da vida de Jo sem muitas despedidas calorosas ou cartas extensas, apenas poucas palavras ou um pequeno bilhete assinam o adeus. Na verdade, o filme tenta mostrar uma solidão vivida por várias pessoas da classe operária da Inglaterra. Todos possuem orgulho e carência demais. Todos querem ter uma companhia, mas não abrem mão de dizer as verdades que os incomodam. É como se a relação entre os personagens estivesse permeada pelo gosto do mel. Um gosto bom, saudável, que alimenta; mas rapidamente pode tornar-se enjoativo e causar náuseas, ânsias de vômito. O gosto é repudiado, mas perante a fome, volta a saciar.

Toda a trama é embalada por aparições de um grupo de crianças que sempre estão correndo e brincando. Quando os personagens estão em busca de algo ou alguém, mas não sabem como encontrá-lo, sempre recorrem às crianças, que possuem a resposta ou a atitude certa. É como se em meio aquele caos da cidade que provoca solidão, os garotinhos despreocupados com os “problemas da vida” estivessem envoltos de companheiros e cheios de alegria, sem medo de se sujarem em lamas ou poças. Eles estão despidos de preconceitos e prontos para entregarem uma luz aos olhos vagos de Jo na última cena do filme. A metáfora está embutida no gosto que os infantes possuem por coisas doces. Essas crianças parecem não enjoar nunca do gosto de mel.

"O mundo" por Mariane Bigio




Parece pretensioso. E é. Mas consegue corresponder, sem esforços, aos seus objetivos. O Mundo é um Parque Temático localizado na Pequim contemporânea, que é, na verdade, uma réplica dos mais famosos e monumentais espaços existentes nos cinco continentes. O Mundo é uma metáfora do mundo. Réplica do mundo globalizado onde mesmo a grandeza parece pequena, onde as distâncias geográficas – e não-geográficas – são facilmente transpostas, onde as fronteiras são híbridas, e as pessoas, prisioneiras de livre trânsito.

O Mundo que Jia Zhang constrói é extremamente complexo. No meio dele estão os relacionamentos e conflitos humanos, vivenciados por personagens que tem um mesmo objetivo: ser alguém no mundo. E isso significa que todos estão em Pequim em busca de emprego e novas possibilidades. São cidadãos mundanos, desterritorializados, no contexto histórico de uma China - que parece ser também desterritorializada, ou pelo menos desnorteada, por excesso ou falta de referências - pós-revolução cultural.

O diretor utiliza-se de uma proposta estética diferente, chegando a usar, inclusive, “intervenções gráficas surreais” ¹ – animações – quando do uso do celular pelos personagens – aliás o celular é de suma importância (encontra-se até no cartaz do filme), símbolo da industrialização, além de permitir a comunicação, ainda que , quase sempre, superficial, entre os personagens, ele é responsável pelo desfecho da trama, quando a dançarina Tao descobre a traição de seu namorado e decide tirar a vida de ambos. Além dos inserts, o filme de Jia Zhang possui um ritmo mais lento notável – talvez em resposta ao ritmo frenético em que as coisas e filmes acontecem no mundo pós-moderno e capitalista.

Neste Mundo, há a amizade, quase muda, entre Anna (russa) e Tao. Parece-nos que ao cruzar as fronteiras do Parque as possibilidades são desastrosas. Anna, ao fazê-lo torna-se prostituta, e é com muito pesar que Tao recebe (percebe) a notícia. Parece-nos também que os espaços além do Parque são espaços de trânsito e de transição.

O longa de Jia é um filme em que se pode notar uma nova proposta (ou mesmo nova escola) estética e narrativa, além de uma multitemática – política, comunicação, identidade, história, relacionamentos, intimidade – daí sua complexidade. Ele é “multi” ao sugerir as soluções ou curas – “alguém tem um band-aid?” – ao sentimento de ser prisioneiro do mundo (e dO Mundo), ao sentimento de falta de intimidade e de um espaço próprio, ao sentimento de ser traído, ao sentimento de não pertencer a esse mundo (e aO Mundo)... entre tantos outros sentimentos deploráveis aos quais os personagens são submetidos: o passaporte, o amor e a morte.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

"Exotica (Atom Egoyan, Canadá, 1994)" por Eduardo Rios



Aviso: esse texto tem spoilers...


Mistério, ambientes exóticos, personagens bizarros e uma trama, a princípio, desconexa. São esses os elementos que tornam o filme de Atom Egoyan, diretor canadense nascido no Egito e de origem armênia, tão singular. O título é originado a partir do nome de uma boate de strip-tease do filme. O dancing-bar possui uma decoração bastante mesclada, uma mistura de fauna e flora tropicais com elementos de decoração do Egito e do Oriente Médio, cenário suficientemente mesclado e estranho para simbolizar a obra de Egoyan em si e os componentes da mesma. A boate “Exótica” também possui uma trilha sonora de musicas eletrônicas com ritmos orientais, a exemplo de “Everybody knows”, na voz de Leonard Cohen; além de um visual cenográfico repleto de espelhos. Esse últimos parecem representar os desdobramentos e reflexos que a história adquire a partir de cada personagem.


A trama gira em torno de quatro protagonistas um tanto estranhos, cada qual possuidor de um vício. Francis (Bruce Greenwood) é um cliente fiel do bar “Exótica” que tem como principais vícios pagar uma dança individual a uma mesma stripper e dar dinheiro a uma garota para quem sempre dá carona por motivos inicialmente desconhecidos. Christina (Mia Kirshner) é a garota que sempre dança para Francis e que também encontrou nesse ato seu vício. Eric (Elias Koteas) é a alma do “Exótica”, é um narrador o qual “invade a mente” dos clientes para, através de sua voz, convencê-los a comprar uma dança individual. Seu vício é desejar Christina. Por fim, o último personagem principal é Thomas (Don McKeller), um vendedor de animais que descobre o prazer de levar homens de outra estrutura cultural e financeira à sua casa para ter relações com eles.


A partir do desenvolvimento das histórias, o roteiro, o qual faz uso de flashbacks, revela os personagens e a situação principal de forma lenta e gradativa. As impressões iniciais que tínhamos dos protagonistas mudam bastante até o final do filme. O que parecia ser um amor secreto de Eric torna-se um ciúme infantil. Christina, a dançarina experiente, aos poucos revela sua carência e imaturidade. Thomas, um homem atrapalhado e correto, na verdade é traficante de espécies raras de animais. E Francis, o senhor de meia-idade que parecia ser o mais obsessivo de todos os personagens é um contador que está transtornado por ter perdido sua mulher e, recentemente, sua filha, vítima de crime brutal.


Os vícios dos quatro crescem no decorrer da história, e descobre-se que as individualidades específicas de cada um, mesmo sendo particularidades, dependem das individualidades e vontades dos outros, por mais bizarros que sejam os costumes. Cada um deve um favor ou um rancor ao outro. E é através desses favores ou rancores que a trama chegará ao ápice no seu final. E o mais legal é que apesar dos mistérios serem revelados apenas nos últimos minutos da película, Egoyan não deixa que tudo se torne um grande suspense. É apenas um filme misterioso que tem como personagem central o exotismo dos lugares e das pessoas, as quais, apesar das particularidades, vivem numa cadeia de dependências.

domingo, 16 de novembro de 2008

"O mundo" por Hermano Callou



Em Still Life, temos um edifício que, quando menos se espera, entra em processo de decolagem, como um foguete. O filme se apresentava até então sob um regime de imagem realista: a partida daquele imenso objeto para céu quebrou as coordenadas da realidade – o mundo se tornou, por um instante, irreconhecível, inlocalizável, um espaço destituído de nome e de sentido. Somente quando o edíficio abandona o chão temos a dimensão da realidade para qual o cinema de Zhang-ke se dirige: estamos em um lugar que parece se quebrar e se refazer em uma velocidade vertiginosa. O mundo para o qual Zhang-ke se insurge é uma China marcada por uma modernização acelerada e inebriante, onde uma população imensa de trabalhadores são levados a reboque, sem compartilhar as conquistas do desenvolvimento econômico – um país marcado pelo subdesenvolvimento e, ao mesmo tempo, perdido em meio a uma inflação crescente de signos do capitalismo. Nesse mundo em movimento acelerado, Zhang-ke reescreve idéia de cinema político, nos oferecendo uma sensibilidade histórica extremamente apurada, a captar as transformações por que passa seu país.

O Mundo é o quarto longa-metragem do cineasta e possivelmente seu filme mais ambicioso. O filme registra o cotidiano dos trabalhores de um enorme parque temático em Beijing – chamando sugestivamente de O Mundo -, onde os turistas vindos de todos os cantos da China podem passear por reproduções de grandes monumentos e pontos turísticos do planeta. Tao (Tao Zhao), uma dançarina do parque, trabalha muito e vive seus pequenos momentos de prazer, em meio a brigas com seu namorado Taisheng (Taisheng Chen), o reecontro com um antigo companheiro (Jing Dong Liang) e a amizade com uma imigrante russa (Alla Shcherbakova). Zhang-ke, no entanto, procura beleza não propriamente na narrativa da personagem, mas na interação de suas criaturas com o espaço ao seu redor. A opção por uma câmera distanciada e com larga profundidade de campo nos permite acompanhar o dia-a-dia dos personagens evolto pela paisagem opulenta e sedutora do parque. Como Antonioni, referência evidente para o cineasta chinês, Zhang-ke propõe uma poética do espaço, em que uma Torre Eiffel dissolvida na paisagem, um travelling lateral que revela as pirâmides do Egito ou um World Trade Center de aparência indestrutível, constrói uma atmosfera de completo irrealismo e deshierarquizam a importância do primeiro plano em relação ao último.

A opção de construir beleza a partir do atrito com a paisagem, no entanto, não é uma estratégia apenas de ordem estética: Zhang-ke constrói o espaço em O Mundo como uma cartografia das tensões econômicas e políticas que marcam a China no tempo presente. É nesse espaço que nos oferece a ilusão da centralidade que o cineasta nos apresenta as pequenas misérias da juventude chinesa – o parque se torna o emblema da condição periférica no capitalismo globalizado, em que os países subdesenvolvidos vivem a ilusão da prosperidade internacionalizada. Signos completamente desterritorializados, os monumentos do parque são destituídos de memória, objetos que se oferecem apenas aos atos repetitivos dos turistas - vemos os visitantes tentando segurar a Torre de Pisa, em pose para foto, ou visitando um grotesco Vaticano em miniatura, repetitivamente, como em um ato de encantamento autônomo, pré-fabricado. A própria Tao pode se transformar em variados personagens sem que isso, no entanto, altere sua vida – uma dançariana indiana, uma dama do Japão imperial, uma aeromoça de um avião que nunca vai partir.

O regime do simulacro que Zhang-ke desenha, no entanto, não é uma realidade monocromática: no interior dela mesma, os personagens desenvolvem seus momentos de intimidade e afeto, que fazem suas vidas parecerem maior do que aqueles monumentos sem história. Tao pode voar em um tapete mágico com seu namorado, mesmo que seja apenas dentro de uma televisão: é a partir da tecnologia que a juventude chinesa tece suas afetividades, onde mensagens de celular podem romper a ordem estética do filme, instaurando pequenos instantes de leveza e fantasia. Dessa forma, as conversas de Tao na lavanderia com sua amiga russa é um campo para se desenvolver o entendimento, como as conversas nos quartos de motel com o namorado constroem o não-entendimento entre eles: a vida de Tao é tão flutuante como a da própria China.

A relação de Zhang-ke com a estética do espetáculo é ainda bastante ambígua: mesmo que o cineasta contraste o mundo do gigantismo do parque com a atenção ao pequeno na construção dos personagens, não podemos dizer que há propriamente uma rejeição ao mundo do espetáculo. Se as coreografias de dança cheias de luz e cor são o espaço da impessoalidade, onde Tao pode vestir variadas máscaras, variadas roupas para se tornar objeto de uma beleza industrial, é o próprio espetáculo que permite Zhang-ke desenvolver seus momentos mais preciosos de mise-en-scene. Não por acaso, O Mundo é um filme marcado por suntosos travellings, cores histéricas e um ritmo um tanto ágil para o padrão de seu cinema: estamos no território da sedução, do movimento, do estímulo ao sentidos - O Mundo se permite infiltrar pela lógica da própria realidade que o cineasta procura analisar. Entre a monumentalidade de sua fotografia e a pequeneza da vida, a construção da História no presente nos escorre pelos dedos.

O momento mais bonito do filme, não por acaso, é uma cena atravessada pela lógica do espetáculo. Tao descobriu que o namorado era infiel, sua vida se arruinou completamente, ela, saberemos logo em seguida, cometerá suicídio. Antes de entrar no palco, nós a vemos no seu camarim, no entanto, vestida de noiva. Ela conversa com sua supervisora tendo ao fundo o Arco do Triunfo. Não havia ainda começado a nevar naquele inverno, elas comentam, quando um chafariz irrompe inesperadamente na paisagem com seu jorro imenso de água. O plano em questão – em que um evento, sem sentido aparente além de sua própria pregnância surge no fundo da imagem – já se tornou característico do cinema de Jia Zhang-ke, no modo como inunda a seqüência com uma beleza sempre indecifrável. O plano, entretanto, apenas introduz o que vem a seguir: assistimos agora Tao em uma coreografia exuberante, em que mulheres de branco desfilam no palco sob neve artificial. O inverno que não veio, o casamento que não veio, a beleza que não veio: tudo se encontrou e se refez por um instante. O espetáculo tornou-se, naquele fragmento de tempo, íntimo, sincero, sanguíneo. A seqüência deve ficar na minha cabeça ainda por um bom tempo.

"Família rodante" por Lara Asfora


O diretor Pablo Trapero consegue englobar de forma inteligente todas as relações entre os membros de uma típica família Argentina, através de uma história simples e engraçada expondo a individualidade de cada um, como seus sonhos, medos e anseios, dentro do universo familiar. Trapero trata com o cuidado os dramas pessoais vividos por seus personagens.


Por causa de um convite para ser madrinha do casamento de uma sobrinha em sua região natal (Misiones), recebido no dia do seu aniversário, Dona Emilia convoca toda a família para cruzar o país numa viagem coletiva no trailer de um de seus genros, Oscar. Sendo assim os integrantes da família superam todos os obstáculos e ingressam numa jornada, onde as quatro gerações terão que passar dias convivendo em um mesmo ambiente, e se sentem no dever de demonstrar uma felicidade e uma união aparente.


O autor explora vários temas através da vida dos personagens: como a sexualidade adolescente que começa a aflorar representada pela atração não correspondida que Yanina sente pelo primo Gustavo; a traição que ocorre dentro da família abordada através da antiga paixão abafada de Ernesto por Marta que vem à tona, por eles estarem vivendo atualmente crises conjugais; a gravidez prematura de uma jovem inconseqüente que transfere a responsabilidade de criar a criança para os pais representada pela história de Paola e Cláudio. Esses temas são abordados de maneira sutil e perspicaz pelo diretor, na qual há uma resolução com naturalidade dos dramas.


O filme é o retrato de uma classe média decadente, que tem que lidar da melhor maneira possível com os problemas manifestados repentinamente, demonstrando a conhecida atitude latina que pra tudo “dá um jeito”, como se pode ver na cena na qual a família rodante passa por guardas rodoviários. Oscar, com a habilitação vencida, tenta persuadir a autoridade através do clássico discurso da vítima.


A paisagem exposta mostra uma Argentina bem diferente da conhecida, uma Argentina precária, que se assemelha com a vida dos personagens. Se o telespectador se viu em algum dos personagens, não é coincidência, pois houve claramente a intenção de Trapero de fazer surgir uma identificação entre o público e os dramas comuns e rotineiros vividos pelos seus personagens.

"Felizes Juntos (Happy Together, Wong Kar Wai, 1997)" por Hermano Callou


Ao falar da visualidade como uma construção histórica, Jameson¹ define o tempo presente como um universo que se tornou profundamente visual, em que a circulação e o consumo acelerado de imagens por todo o mundo nos permite falar de uma estetização da realidade. Se o cinema contemporâneo encontrou na preferência por narrativas do mínimo ou por um esvaziamento da própria idéia de narratividade uma resposta dialética ao regime de imagem que marca o presente, o cinema de Wong kar Wai encontrou na própria saturação de signos sua forma de resistência: o cineasta, ao esposar as armas do inimigo, o enfrenta em seu próprio território. O cinema que o diretor oriundo de Hong-Kong desenvolveu é construído por uma lógica do excesso de imagens: o uso de diferentes lentes e filtros, cores e texturas, acelerações e desacelerações da imagem, constroem um todo que encontra sua coesão no próprio transbordamento. A beleza que surge no meio disso tudo nos oferece a possibilidade de refletir sobre as formas de se experienciar as imagens no nosso tempo.

Felizes Juntos é uma exemplar desse universo, em que podemos ver Wong Kar Wai explorando os recursos visuais que lhe são característicos com um senso marcante de desequilíbrio. Se o trabalho mais recente do diretor - Um beijo roubado - representou a transformação de seu estilo em um reprodução de si mesmo, Felizes Juntos nos oferece um Wong Kar Wai ainda dissonante, em que sua forma de fazer filmes se apresentava desregrada e cheia de vontade cinema. Lai Yiu-fai (Tony Leung Chiu Wai) e Ho Po-wing (Leslie Cheung ) são dois imigrantes de Hong-Kong que vivem na Argentina uma conflituosa relação de amor. Entre os momentos de intimidade na cama ou no sofá e as brigas que parecem sempre selar o fim da relação, os personagens constroem um relacionamento cíclico, marcado pela palavra “recomeço”. A construção visual e sonora do filme materializa, por sua vez, o sofrimento dos dois rapazes: o cinema de Wong Kar Wai traduz o universo de suas criaturas na forma acelerada e desejosa com que fabrica imagens, em que os cortes abruptos, a música que inunda os cenários e a textura quase agressiva da imagem edificam uma realidade emotiva instável, que precisa ser experimentada pelo corpo.

A própria palavra corpo parece central para entender Felizes Juntos. Na construção de seus personagens amantes, não há propriamente o desenvolvimento de uma psicologia – em seu mundo de paixões fugazes, o que se desenha é uma espécie de somatografia dos afetos. O modo como nos aproximamos de Lai Yiu-fai e Ho Po-wing é menos um entendimento de ordem psicológica do que um engajamento de ordem táctil: vemos apenas dois corpos que reagem ao mundo, corpos cheios de raiva e paixão, que se amam e se empurram, se esfregam e se batem, em um movimento de instabilidade expansiva. Poucas vezes, ainda é preciso dizer, pôde-se fazer no cinema uma câmera interagir com tanta organicidade com os corpos de seus atores, a captar, em cada gesto um sentimento e em cada músculo um desejo. O mundo sensualizado de Wong Kar Wai encontra, portanto, nos seus próprios atores o ponto de convergência do transbordamento: elogio ao corpo como espaço de expansão da dor e do prazer, Felizes Juntos deshierarquiza a oposição entre superfície e profundidade, ao fazer um filme que procura dar conta da experiência da epiderme.
Nem tudo é pura sensação em Felizes Juntos, entretanto: se em um primeiro momento estamos no território da história de amor entre dois rapazes, aos poucos o filme de Wong Kar Wai se torna uma fábula sobre corações partidos e sobre a lembrança que temos dos outros. Nesse sentido, o cineasta brinca com seus símbolos baratos, cuja obviedade é ela própria determinante de nossa identificação e encantamento. A decoração Kistch de uma pensão vagabunda pode guardar os segredos do amor: um abajur colorido com a inscrição de uma cachoeira pode significar a utopia da felicidade a dois para Lai Yiu-fai e Ho Po-wing. Um garoto pode carregar a tristeza dos outros em um gravador e a levar para o fim do mundo. Os cigarros que todos fumam podem traduzir o peso das coisas passageiras – o uso da câmera lenta por Wong Kar Wai tenta cristalizar o instante, antes que ele se dissipe junto com a fumaça. Felizes Juntos revela quando os amantes se separam e quando aqueles dias confusos na Argetina tornam-se memória. Wong Kar Wai, no entanto, saber eternizar em grãos e ruídos o escorrer dessas coisas que passam.
1. JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.

"Estranhos no paraíso" por Rafael Acioly




Estranhos no Paraíso - 1984 (Stranger Than Paradise EUA / Alemanha) de Jim Jarmusch figura o caminho do Velho para o Novo Mundo: um problema de migração comum no início do século XX que levavam as pessoas para o além-mar em busca do paraíso. Peculiar, portanto, seria pensar esta lógica dentro de uma relação tríade com suas singularidades sobre os esteios daquela questão macro. Fazendo uso de uma linguagem singela, Jim Jarmusch propõe aos espectadores ir conhecendo algo possível de ser visto, até mesmo sem cores.
O cenário desta película é Nova York ou o Novo Mundo – a primeira das três partes do filme. Na verdade, uma Nova York suburbana, suja, habitada por operários e por parte da escória social desocupada do oficio dos operários preocupada em ganhar a vida no mundo da jogatina. Tal realidade, contudo, não cabe uma compreensão moralista de Jim Jarmusch, mas sim, para usar um discurso jocoso do que seria o paraíso-novo. É aqui que a jovem húngara Eva vai passar os seus primeiros dez dias no Novo Mundo.



Ao chegar ao Novo Mundo Eva, vai morar com o seu primo Béla, também húngaro, mas que se declara assimilado pelos hábitos americanos, como podemos ver na sua fala: “é assim que se come na América. Tenho a minha carne, tenho as minhas batatas, tenho os meus legumes, tenho as minhas sobremesas e nem preciso lavar as louças” fazendo claras menções aos hábitos liberalistas. E por já se considerar America, Bela faz questão de ser chamado de Willie. Willie levava uma vida pacata, sem seriedade cujos segredos serão revelados durante o convívio com sua prima. Assim como o seu apartamento, que de início mais parece um quarto com apenas uma cama, aos poucos uma interessante fotografia vai revelando que naquele pequeno quarto cabem duas camas. Mais adiante percebemos que não se trata de um quarto, pois há uma cozinha com mesa, armários e alguns eletros domésticos e assim, como nós espectadores nos surpreendemos com o espaço, Eva vai fazendo mudar a vida do seu primo. Abrindo as coisas, como um armário que apenas o dono sabe fechá-lo, ela vai conhecendo seu primo Willie e percebe que há semelhanças entre eles além do parentesco e da naturalidade.


Eddie, amigo de Willie, é o terceiro personagem da tríade. Figura uma ingenuidade bastante passiva e fiel a Willie. Os três irão à busca do verdadeiro paraíso. Para Eva, o paraíso está em poder conquistar algo que podemos deduzi ter-lhe sido prometido quando estivesse no “Novo Mundo”: talvez melhores condições de vida, algum emprego. Contudo, a sua personalidade sugere-nos um espírito aventureiro que apostaria em uma viagem de férias com os seus dois amigos desocupados. Já Willie, parece ter ido à América acompanhado pelo modismo e a vontade jovial de ser um “jovem moderno novairoquino”. As impressões são aditivos nesta película que Jim Jarmusch usa de maneira curiosa nos cortes entre os longos planos. De igual maneira os intervalos entre cenas também são longos – duram mais ou menos 5 segundos – dando margem a impressões e imaginações, pois se percebe que algumas coisas aconteceram naquele intervalo, mas não exatamente o que.


Um destes intervalos figura a passagem de um ano que representa a passagem para a segunda parte da película. Neste ano passado durante a história, Eva estivera separada dos seus Amigos – Willie e Eddie – já que fazia parte da sua ida ao Novo Mundo ficar com sua tia, que residia noutra cidade. Após ganhar um bom dinheiro em jogos, Willie e Eddie decidem partir ao encontro de Eva ou o Paraíso, a terceira e última parte do filme.


Enfim o paraíso, lugar pouco frio, mais claro, próximo ao oceano. É no Paraíso aonde as coisas se tornam surpreendentes onde não deveriam existir sotaques e diferenças. Mas, tudo isto aparece combinado de maneira contingente quando uni a malandragem tipicamente “novo-mundista” e a ingenuidade pouco ambientada para compor um final inusitado, e por que não engraçado, como propõe Jim Jarmusch ao falar dos “Estranhos” no e do “Novo Mundo”.

"Pablo Trapero: Ampliando as fronteiras" por Anderson Barretto


Família Rodante (Argentina, 2004) é um convite a uma festa em família, e este fato já anuncia o que está por vir: alegrias, brigas, amores proibidos, confusões, cumplicidades... Pablo Trapero, mergulhou fundo no universo familiar, conseguindo, dessa maneira, realizar uma obra bastante sensível e memorialista, por mais que não seja uma autobiografia. Família Rodante é um ‘road movie’ e conta a “jornada” de uma família que atravessa a Argentina por conta do casamento de uma parente desconhecida. As doze pessoas viajam por dois dias num mesmo veículo, uma “casa andante”, e assim podemos imaginar o que pode acontecer quando muitas pessoas convivem num mesmo ambiente – ainda mais num ambiente pequeno e desconfortável, principalmente sendo da mesma família.


O filme é um retrato da cultura latino-americana, o que proporciona uma enorme identificação, até mesmo para os brasileiros, tão “diferentes” dos vizinhos de língua espanhola. Por mais que não tenha sido esta a intenção do autor – retratar a realidade de uma determinada classe social “menos favorecida” de um país “em desenvolvimento”, o filme consegue realizar tal proeza com bastante naturalidade. Em diversos momentos, certas situações “denunciam” o caráter peculiar do que podemos chamar de “estilo de vida sul-americano”, especialmente no que diz respeito ao aspecto econômico; atitudes como conferir o troco, reclamar o preço, tentar um suborno – características do famoso “jeitinho brasileiro” que aqui se revela “jeitinho argentino”, ou, generalizando, modo de vida e sobrevivência da cultura subdesenvolvida latino-americana.


Mas a economia é apenas um dos aspectos “rodados” no filme, a própria estrutura familiar já é algo diferente da cultura norte-americana, veiculada nos filmes hollywoodianos, onde a família, quando não desmembrada, é constituída apenas por mãe, pai e filho. Na família rodante temos mãe, filhas, genros, netos, primos, tias, cunhados... Entretanto, essa família não se destaca apenas pelo número, mas também por outras características, isto é, existe uma idéia muito peculiar de “família”, que abrange sentimentos regidos pela obediência e pelo respeito, valores constantemente desvirtuados no cinema e na sociedade atual.


Nos diálogos do filme, o aparente “caos” é o retrato da mais pura normalidade, ou seja, tudo é justificado, mesmo que de forma superficial, pelos acontecimentos subseqüentes, afinal, não seria possível retratar todas as diferenças humanas num único filme, além disso, numa família nem tudo é completamente explicado e esclarecido, sempre há segredos, intrigas, medos... Dessa forma, por mais que seja uma exaltação aos costumes latino-americanos, Família Rodante é um filme humano, pois apresenta um caráter universalizante, onde o realismo representado pelas relações familiares proporciona, além da identificação, um alerta aos valores do homem e da família – uma instituição constantemente depredada dentro e fora da mídia.


O diretor, ao propor uma ampliação e uma aproximação do universo familiar, aproxima também a câmera das imagens, proporcionando inteligentes planos fechados, numa concepção de um verdadeiro “porta-retrato” familiar. Ou seja, Trapero utiliza a câmera para mostrar a intimidade não só de uma família, mas também da maneira de como ela é vista, e assim, o filme, repleto de closes, quase não tem planos gerais. Há uma preocupação equilibrada em emoldurar as cenas, conferindo à obra um caráter cada vez mais intimista.


A familiaridade, portanto, é o ponto principal do filme, uma obra, talvez, desmerecida por muitos simplesmente por não estar inserida num contexto hollywoodiano, (inclusive por trazer um elenco praticamente desconhecido, quase amador). Por outro lado, a obra traz valores até mais intensos do que grandes sucessos de público e crítica mais populares, e “centrais” como Casamento Grego’ e ‘Pequena Miss Sunshine’.


Família Rodante atinge o seu objetivo: aproximar. O olhar de Trapero, atento e aparentemente despretensioso, reafirma suas características “periféricas”, isto é, tem o cuidado especial ao fazer as escolhas, revelando assim o seu caráter humilde e particular. A câmera de Trapero funciona como um outro personagem, vai além da relação ‘mainstream’ entre o cinema e o público, e dessa maneira, faz com que o espectador não mais esteja passivamente vendo um filme, e sim percebendo uma realidade pelo fato de se sentir dentro dela.