Família Rodante (Argentina, 2004) é um convite a uma festa em família, e este fato já anuncia o que está por vir: alegrias, brigas, amores proibidos, confusões, cumplicidades... Pablo Trapero, mergulhou fundo no universo familiar, conseguindo, dessa maneira, realizar uma obra bastante sensível e memorialista, por mais que não seja uma autobiografia. Família Rodante é um ‘road movie’ e conta a “jornada” de uma família que atravessa a Argentina por conta do casamento de uma parente desconhecida. As doze pessoas viajam por dois dias num mesmo veículo, uma “casa andante”, e assim podemos imaginar o que pode acontecer quando muitas pessoas convivem num mesmo ambiente – ainda mais num ambiente pequeno e desconfortável, principalmente sendo da mesma família.
O filme é um retrato da cultura latino-americana, o que proporciona uma enorme identificação, até mesmo para os brasileiros, tão “diferentes” dos vizinhos de língua espanhola. Por mais que não tenha sido esta a intenção do autor – retratar a realidade de uma determinada classe social “menos favorecida” de um país “em desenvolvimento”, o filme consegue realizar tal proeza com bastante naturalidade. Em diversos momentos, certas situações “denunciam” o caráter peculiar do que podemos chamar de “estilo de vida sul-americano”, especialmente no que diz respeito ao aspecto econômico; atitudes como conferir o troco, reclamar o preço, tentar um suborno – características do famoso “jeitinho brasileiro” que aqui se revela “jeitinho argentino”, ou, generalizando, modo de vida e sobrevivência da cultura subdesenvolvida latino-americana.
Mas a economia é apenas um dos aspectos “rodados” no filme, a própria estrutura familiar já é algo diferente da cultura norte-americana, veiculada nos filmes hollywoodianos, onde a família, quando não desmembrada, é constituída apenas por mãe, pai e filho. Na família rodante temos mãe, filhas, genros, netos, primos, tias, cunhados... Entretanto, essa família não se destaca apenas pelo número, mas também por outras características, isto é, existe uma idéia muito peculiar de “família”, que abrange sentimentos regidos pela obediência e pelo respeito, valores constantemente desvirtuados no cinema e na sociedade atual.
Nos diálogos do filme, o aparente “caos” é o retrato da mais pura normalidade, ou seja, tudo é justificado, mesmo que de forma superficial, pelos acontecimentos subseqüentes, afinal, não seria possível retratar todas as diferenças humanas num único filme, além disso, numa família nem tudo é completamente explicado e esclarecido, sempre há segredos, intrigas, medos... Dessa forma, por mais que seja uma exaltação aos costumes latino-americanos, Família Rodante é um filme humano, pois apresenta um caráter universalizante, onde o realismo representado pelas relações familiares proporciona, além da identificação, um alerta aos valores do homem e da família – uma instituição constantemente depredada dentro e fora da mídia.
O diretor, ao propor uma ampliação e uma aproximação do universo familiar, aproxima também a câmera das imagens, proporcionando inteligentes planos fechados, numa concepção de um verdadeiro “porta-retrato” familiar. Ou seja, Trapero utiliza a câmera para mostrar a intimidade não só de uma família, mas também da maneira de como ela é vista, e assim, o filme, repleto de closes, quase não tem planos gerais. Há uma preocupação equilibrada em emoldurar as cenas, conferindo à obra um caráter cada vez mais intimista.
A familiaridade, portanto, é o ponto principal do filme, uma obra, talvez, desmerecida por muitos simplesmente por não estar inserida num contexto hollywoodiano, (inclusive por trazer um elenco praticamente desconhecido, quase amador). Por outro lado, a obra traz valores até mais intensos do que grandes sucessos de público e crítica mais populares, e “centrais” como Casamento Grego’ e ‘Pequena Miss Sunshine’.
Família Rodante atinge o seu objetivo: aproximar. O olhar de Trapero, atento e aparentemente despretensioso, reafirma suas características “periféricas”, isto é, tem o cuidado especial ao fazer as escolhas, revelando assim o seu caráter humilde e particular. A câmera de Trapero funciona como um outro personagem, vai além da relação ‘mainstream’ entre o cinema e o público, e dessa maneira, faz com que o espectador não mais esteja passivamente vendo um filme, e sim percebendo uma realidade pelo fato de se sentir dentro dela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário