segunda-feira, 10 de novembro de 2008

"Felizes Juntos (Happy Together, Wong Kar Wai, 1997)" por Guilherme Carréra



Quando Wong Kar Wai lançou “Um beijo roubado” (Hong Kong, China, França, 2007), muito se falou sobre o maneirismo que o diretor parecia ter assumido sem ressalvas. Uma vontade de retrabalhar velhos conceitos de seu cinema: as cores, os planos, os temas. Como uma espécie de pastiche de si mesmo, Kar Wai ao mesmo tempo se legitimava, sobretudo, como um autor. A repetição ou exercício de imagens que se viu existia para deixar claro para o espectador que aquele filme não era só mais um filme, e sim um elemento a mais para dar forma a uma filmografia indubitavelmente coesa. Em 1997, dez anos antes, às voltas com “Felizes juntos” (Hong Kong, 1997), Kar Wai ainda não dispunha do espaço que hoje tem frente às platéias ocidentais (“Um beijo roubado” foi seu primeiro filme em Hollywood, de certa forma marcando a entrada e, quem sabe, a profícua estadia do cineasta em terras norte-americanas). Aqui, o que parece clichê em seu filme mais recente ainda soa como novidade; o que simula um automatismo narrativo no norte-americano, ainda está livre de uma estrutura pré-moldada. “Felizes juntos” é a produção que antecede “Amor à flor da pele” (China, 2000) – filme responsável pelo sucesso e pela notabilidade adquirida pela grife oriental ao redor do globo. No exemplar de 97, Kar Wai conta a história de um casal chinês homossexual que desembarca na capital argentina para tentar uma nova vida.



Nas estradas que os levam até Buenos Aires, a fotografia em preto-e-branco é a testemunha do desenlace do casal. Vivendo sempre às turras em uma relação de idas e vindas, Fai (Tony Leung Chiu Wai) e Pong (Leslie Cheung) acabam nunca chegando às cataratas de Foz do Iguaçu, na fronteira com o Brasil. Esse local, transformado na tela em algo um tanto quanto mítico, possui uma força narrativa ensurdecedora. Nem tanto pela canção entoada por Caetano Veloso no início do filme quando nos são apresentadas as quedas d’águas (o mesmo “Cucurucurucucu Paloma” anos mais tarde visto e ouvido no almodovariano “Fale com ela”), mas pelo barulho firme que as mesmas produzem via imagens. Em “Felizes juntos”, muito do que se aponta como inerente ao estilo do cineasta pode ser encontrado ali. O uso das cores estabelece um diálogo dos mais certeiros. Abandonando a fotografia bicolor, Kar Wai investe no vermelho e no verde para criar a ambiência do quarto dividido por Fai e Pong – após o reencontro na cidade portenha. O apartamento-núcleo do filme é o cenário por excelência das discussões do casal, embora Buenos Aires também funcione como um personagem na trama. Esta representação da cidade, no entanto, é desviada do olhar mais previsível. A Buenos Aires filmada é o avesso do imaginado. Os personagens estão sempre circulando por bares e becos; as relações com os nativos elucidam a platéia sobre qual é a real situação de proletário na qual vivem os dois. Longe da premissa turística, portanto, Kar Wai insere seus personagens – e se insere – na cidade e não na sua idealização.



Os espelhos e os vidros situados entre as pessoas e as câmeras bem como o slow motion utilizado em cenas-chave no desenrolar da narrativa são pontos característicos da obra. O piscar das luzes seja nas boates ou no próprio apartamento garante um visual revestido de originalidade. A câmera lenta segue no mesmo caminho. Tal efeito ainda consegue ser mais sofisticado, vide o momento em que Fia acende um cigarro para Pong, instaurando o slow motion na seqüência. Além de solidificar uma estética própria, ao recurso cabe suspender determinadas ações, colocando-as em um patamar diferenciado. Em Buenos Aires, Fai começa a trabalhar em um bar, depois assume a cozinha de um restaurante chinês e por fim aceita ganhar um extra em um matadouro. Enquanto isso, Pong, literalmente de mãos atadas por conta de uma briga, parasita no pequeno apartamento, incitando discórdias ao mesmo tempo em que pretende resolvê-las. Fai, entretanto, não parece estar tão satisfeito quanto o companheiro. Embora acredite que aquele intervalo de tempo seja o mais feliz da vida de ambos, ele sabe que a situação tende a ficar cada vez mais insustentável. Antes da separação, Fai ainda insiste, inutilmente, em esconder o passaporte de Pong. Ele, disposto a seguir até querer tentar um novo recomeço, não abre mão do documento.



O deslocar constante dos dois protagonistas parece ser a sina de “Felizes juntos”, onde a inadequação gera o movimento. Sobre esses desvios de rota Kar Wai materializa um pensamento que reverbera para além do que é fílmico. Fai, agora sozinho, de volta ao Oriente, visita a família de Chang (Chen Chang), um amigo que fez na Argentina, funcionário do mesmo restaurante chinês em que trabalhou. Lá, no entanto, ele não encontra o amigo, mas sim uma foto sua. Olhando para ela e para seu entorno repleto de parentes, Fai começa a entender a vontade que o colega tinha de conhecer outros lugares. Fai, que sempre quis retornar para Hong Kong, num misto de bairrismo e medo do mundo, compreende que Chang era, nesse sentido, a sua oposição. Pois ele sim tinha realmente um lugar para onde sempre iria poder voltar.

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