O grande público talvez credencie o cinema inglês como aquele dotado de um certo academicismo. Obras inspiradas em cânones literários – vide recentemente adaptações de Jane Austen e Ian McEwan – que possuem a pompa de um épico bem realizado ou filme de época impecável em sua técnica costumam identificar a Grã-Bretanha internacionalmente. Apostar na produção britânica como à margem das grandes realizações causaria estranhamento em boa parte da platéia. Postos em oposição à indústria hollywoodiana, por exemplo, os representantes da Inglaterra passam a vestir uma indumentária periférica, sobretudo se olharmos mais atentamente para “Um gosto de mel” (A taste of honey, Inglaterra, 1961), dirigido por Tony Richardson.
Se assimilar a produção cultural latino-americana como fora do eixo central é uma percepção quase que automática, pensar os filmes britânicos dessa forma enriquece e amplia as variáveis em torno do conceito de cinema periférico: questões levantadas sobre as políticas de identidade seja ela racial, sexual ou religiosa; a tendência ao agrupamento de culturas e certa reverência, por outro lado, ao que é produzido em um determinado contexto sócio-cultural. O filme de Tony Richardson reúne elementos caros à discussão em torno da periferia e da identidade.
Lançado em 1961, os críticos dizem “Um gosto de mel” ser o equivalente feminino ao filme de François Truffaut, “Os incompreendidos” (Le 400 coups, França, 1959). No longa-metragem inglês, ao contrário de um protagonista-criança visto no filme de 1959, tem-se Jo (Rita Tushingham), uma adolescente que vive com a mãe em um subúrbio litorâneo. Baseado na peça homônima de Shelagh Delaney, o filme está centrado no que talvez se possa chamar de o último suspiro de inocência da jovem Jo. Sua passagem para a vida adulta, as situações-limite que deve enfrentar e uma angústia que a mesma parece não saber ao certo de onde vem agregam sensibilidade ao narrar da história.
A jovem Jo leva uma vida cigana junto à mãe, Helen (Dora Bryan). Ambas vivem uma relação conturbada, marcada pela ausência de uma figura paternal e a falta de informações sobre a mesma. Jo e Helen não conseguem estabelecer um diálogo ameno. A filha não gosta do jeito espevitado da mãe, que vive às voltas com namorados mais jovens. Quando Helen decide se casar novamente, o convívio forçado entre as duas acaba. Peter (Robert Stephens), oito anos mais jovem do que a parceira, a leva para morar em outro local e Jo se vê obrigada a se virar sozinha. Enquanto sua relação com a mãe muda de figura, dois homens surgem para modificar por completo o cotidiano de Jo.
Em um de seus passeios pela parte portuária da cidade, Jo conhece Jimmy (Paul Danquah). Os dois, em pouco tempo, se envolvem. O marinheiro negro por quem ela se apaixona ganha uma importância muito maior do que ela poderia imaginar. Jimmy é obrigado a partir, mas deixa em Jo, sem saber, o fruto do encontro fugaz entre ambos. Grávida, a garota encontra companhia nos braços de Geoffrey (Murray Melvin). Os dois logo passam a dividir um apartamento e, por mais que Geoff queira assumir o papel de pai para o futuro filho de Jo, ela não está disposta a se casar, chegando, inclusive, a dizer que o vê apenas como “uma irmã mais velha”. A relutância de Jo é compreensível. Perdida, a cumplicidade do novo amigo parece ser mais do que suficiente. Geoff é homossexual, mas “Um gosto de mel” não parece preocupado em fazer disso uma subtrama a ser polemizada. Aliás, os relacionamentos não-convencionais de Helen, o caso interracial de Jo e Jimmy e a homossexualidade de Geoff nunca são narrados com afetação. O tom do filme está sempre em busca de um lirismo que resulta em uma experiência tocante.
A possibilidade de um aborto, colocada por Geoffrey, não se confirma. Por mais que Josephine não disfarce seu crescente estado desesperançoso, explodindo com frases fortes (“Não quero ser mãe! Não quero ser mulher!”), ela talvez encontre naquele filho o rito de passagem imperativo que parece assolar o fim de sua adolescência. A amizade de Geoff é o conforto necessário para Jo, que nunca conseguiu ter com a mãe tamanha amabilidade (“Eu tentava segurar as mãos da minha mãe, mas ela sempre se desvencilhava”). “Um gosto de mel” herda certa verborragia de sua origem teatral, mas a mise-en-scène não sai prejudicada. A condução de Richardson vai além do clichê do teatro filmado.
Rita Tushingham carrega o filme em seu olhar. A menina sem rumo que odeia o amor e odeia a maternidade é construída com delicadeza por sua intérprete. O que Richardson filma vez por outra ganha uma materialização precisa, por mais complicado que seja filmar sentimentos. Quando Helen pergunta por que sua filha tem tanto medo do escuro, Jo deixa escapar a frase que talvez melhor defina a confusão que se passa no seu interior: “eu não tenho medo do escuro lá fora, eu tenho medo do escuro aqui dentro”. No apartamento, com as luzes apagadas, Helen vira-se para dormir.
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