Temos um casal em um quarto. A fotografia em preto-e-branco, os enquadramentos firmes, as camas mal feitas. Willie (John Lurie) tenta dormir, enquanto o telefone toca. Eva (Eszter Balint) acende cigarros e se movimenta pouco pelo cômodo. Ambos húngaros. Na cidade de Nova York, transformam-se em dois estrangeiros. A aparente adaptação de um e a languidez preguiçosa da outra são contrapontos que dão contorno à estratégia discursiva de Jim Jamursch. O diretor norte-americano elabora um olhar de estrangeiro para filmar seu próprio país em “Estranhos no paraíso” (Stranger than paradise, Estados Unidos, 1984), um exercício delicado sobre estradas, quartos de hotel e parcerias.
O longa-metragem dividido em três atos me parece imbuído de um profundo senso de deslocamento. Um permutar constante, que ora cessa em um local, ora se descortina e desembesta em busca de outros ares. Willie, o húngaro que reside na capital nova-iorquina há algum tempo, não quer mais ser húngaro. “Me chame de Willie”, diz, negando seu nome original, ao receber sua conterrânea no apartamento. Eva vem de longe, vem de Budapeste. A pedido de uma tia, Willie aceita abrigá-la por alguns dias. A co-habitação dos dois é o conteúdo de “O Novo Mundo”, título da primeira parte do filme.
Por mais que a territorialidade seja um dos focos aqui, a materialização da cidade (ou das cidades, já que o filme é uma espécie de road movie) nunca se dá por completo. A Nova York cartão postal, com o Empire State imponente, o Central Park gélido e as grandes avenidas que cruzam essa grande metrópole não são alvos da câmera jarmuschiana. A isso tudo ele prefere breves planos de Eva andando por uma rua de prédios classe média, com pichações nas paredes e calçadas vazias. Jamursch não quer o óbvio, não quer a cidade pela cidade. O que o olhar ordinário renega, “Estranhos no paraíso” se predispõe a tornar cenário. O estranhamento da húngara em solo americano repercute em diálogos com Willie. A junkie food ianque, símbolo de uma praticidade torta, é motivo para Eva indagar sobre o tipo de alimentação. O “TV food” reúne carne, batata, salada, com direito à sobremesa. “Mas a carne nem parece carne, de onde ela vem?”, questiona Eva. “Da vaca”, limita-se Willie.
Em “Paraíso”, última parte do filme, Willie e Eddie, que haviam decidido ir embora de Ohio, cogitam voltar para apanhar Eva e seguirem juntos para a Flórida. Assim o fazem. Com óculos escuros comprados ao chegarem à Flórida (“agora parecemos turistas de verdade”, brada um deles), os três se instalam em um quarto de hotel. As praias no inverno, a neblina que sobe e um grau de intimidade que nunca se concretiza entre o trio decoram a ambiência. Por mais próximos que estejam, Eva e Willie ou Eva e Eddie parecem não se conectar, não se deixar conhecer uns aos outros. Por desconfiança ou por falta de tato para criarem uma relação menos distante e mais calorosa, se isso não configura observação brasileira em excesso.
O vento forte que passa enquanto Eva está sentada próxima ao mar é uma seqüência simples e eficaz. O paraíso com belas mulheres de biquíni e o clima de veraneio imaginado por Eddie cede espaço para uma Flórida longe do estereótipo idealizado. O que se passa na cabeça daquela mulher, suas angústias e dúvidas não são verbalizadas, e Jamursch parece dizer que seu objeto de interesse é, por conseguinte, o não-dito. A construção de suas imagens e sua narrativa episódica prezam por certos silêncios, seja enquanto dois amigos bebem uma cerveja, seja enquanto Eva passeia em frente a uma gift shop meio abandonada. Paira sobre o filme um laconismo sincero.
Elemento precursor do que já se institucionalizou denominar “cinema independente norte-americano”, ou simplesmente cinema indie, “Estranhos no paraíso”, paradoxalmente, está bem distante do que se vê hoje com o rótulo desse tipo de produção. Longe da presunção de psicologizar excludentes, Jamursch, com o auxílio de uma poderosa trilha sonora que percorre os deslocamentos tanto físicos como imaginativos, tenta criar uma atmosfera sem dissonâncias e gritarias. Seu filme é coeso e quase sussurado. Embora as discussões se façam presente, o tom é de serenidade e de contemplação. Para mim, resvalando em certa apatia juvenil, tendo Eva, sentada diante daquele mar, como a moça sem grandes esperanças.
O senso de deslocamento que vai interligando estradas, quartos de hotel e parcerias ocasionais é retratado em dois planos generosos de beleza visual. A cena de abertura, quando vemos Eva com sua mala e sacola ainda no aeroporto, vendo um avião decolar. E uma das últimas seqüências, quando Eddie olha um outro avião alçar seu vôo. Nos dois momentos, a aeronave preenche a tela e rouba a atenção do espectador. Os dois seres ali embaixo, olhando, oprimidos pelos ritos de passagem que aqueles vôos significam, em espaços diferentes, sob ângulos distintos. “Viemos para um lugar diferente e tudo parece igualzinho”. A inocente e anterior constatação de Eddie ao trocar Nova York por Ohio talvez se oponha ao rito de passagem daquele avião. Talvez se deslocar fisicamente não signifique, de fato, mudar.
O longa-metragem dividido em três atos me parece imbuído de um profundo senso de deslocamento. Um permutar constante, que ora cessa em um local, ora se descortina e desembesta em busca de outros ares. Willie, o húngaro que reside na capital nova-iorquina há algum tempo, não quer mais ser húngaro. “Me chame de Willie”, diz, negando seu nome original, ao receber sua conterrânea no apartamento. Eva vem de longe, vem de Budapeste. A pedido de uma tia, Willie aceita abrigá-la por alguns dias. A co-habitação dos dois é o conteúdo de “O Novo Mundo”, título da primeira parte do filme.
Por mais que a territorialidade seja um dos focos aqui, a materialização da cidade (ou das cidades, já que o filme é uma espécie de road movie) nunca se dá por completo. A Nova York cartão postal, com o Empire State imponente, o Central Park gélido e as grandes avenidas que cruzam essa grande metrópole não são alvos da câmera jarmuschiana. A isso tudo ele prefere breves planos de Eva andando por uma rua de prédios classe média, com pichações nas paredes e calçadas vazias. Jamursch não quer o óbvio, não quer a cidade pela cidade. O que o olhar ordinário renega, “Estranhos no paraíso” se predispõe a tornar cenário. O estranhamento da húngara em solo americano repercute em diálogos com Willie. A junkie food ianque, símbolo de uma praticidade torta, é motivo para Eva indagar sobre o tipo de alimentação. O “TV food” reúne carne, batata, salada, com direito à sobremesa. “Mas a carne nem parece carne, de onde ela vem?”, questiona Eva. “Da vaca”, limita-se Willie.
Passada a temporada da estadia, Eva parte para Cleveland, seu destino final. Antes disso, conhece Eddie (Richard Edson), amigo de Willie. Eddie completa a trinca-protagonista do filme. O personagem é dotado de um humor involuntário, mas muito suave. A comédia em Jamursch nunca é escrachada, a predominância é da sutileza. Juntos, os três se reencontrarão no que se pode chamar de segundo segmento, “Um ano depois”, quando os amigos ganham dinheiro em um jogo de cartas e partem para Ohio, a fim de visitar a jovem. Na estrada, Eddie deixa escapar que não sabia que o amigo era europeu. “Sou tão americano quanto você!” é a resposta incisiva de um Willie entre seu passado e seu presente, entre o Leste Europeu e a América. O reencontro com Eva na lanchonete os coloca novamente como trio. A influência da Nouvelle Vague em “Estranhos no paraíso” pincela de Truffaut a Godard: a tríade composta pode lembrar ao espectador o célebre “Jules e Jim” lírico-truffauniano, assim como a desconstrução e a ausência de identidade fixa de qualquer criação godardiana.
Em “Paraíso”, última parte do filme, Willie e Eddie, que haviam decidido ir embora de Ohio, cogitam voltar para apanhar Eva e seguirem juntos para a Flórida. Assim o fazem. Com óculos escuros comprados ao chegarem à Flórida (“agora parecemos turistas de verdade”, brada um deles), os três se instalam em um quarto de hotel. As praias no inverno, a neblina que sobe e um grau de intimidade que nunca se concretiza entre o trio decoram a ambiência. Por mais próximos que estejam, Eva e Willie ou Eva e Eddie parecem não se conectar, não se deixar conhecer uns aos outros. Por desconfiança ou por falta de tato para criarem uma relação menos distante e mais calorosa, se isso não configura observação brasileira em excesso.
O vento forte que passa enquanto Eva está sentada próxima ao mar é uma seqüência simples e eficaz. O paraíso com belas mulheres de biquíni e o clima de veraneio imaginado por Eddie cede espaço para uma Flórida longe do estereótipo idealizado. O que se passa na cabeça daquela mulher, suas angústias e dúvidas não são verbalizadas, e Jamursch parece dizer que seu objeto de interesse é, por conseguinte, o não-dito. A construção de suas imagens e sua narrativa episódica prezam por certos silêncios, seja enquanto dois amigos bebem uma cerveja, seja enquanto Eva passeia em frente a uma gift shop meio abandonada. Paira sobre o filme um laconismo sincero.
Elemento precursor do que já se institucionalizou denominar “cinema independente norte-americano”, ou simplesmente cinema indie, “Estranhos no paraíso”, paradoxalmente, está bem distante do que se vê hoje com o rótulo desse tipo de produção. Longe da presunção de psicologizar excludentes, Jamursch, com o auxílio de uma poderosa trilha sonora que percorre os deslocamentos tanto físicos como imaginativos, tenta criar uma atmosfera sem dissonâncias e gritarias. Seu filme é coeso e quase sussurado. Embora as discussões se façam presente, o tom é de serenidade e de contemplação. Para mim, resvalando em certa apatia juvenil, tendo Eva, sentada diante daquele mar, como a moça sem grandes esperanças.
O senso de deslocamento que vai interligando estradas, quartos de hotel e parcerias ocasionais é retratado em dois planos generosos de beleza visual. A cena de abertura, quando vemos Eva com sua mala e sacola ainda no aeroporto, vendo um avião decolar. E uma das últimas seqüências, quando Eddie olha um outro avião alçar seu vôo. Nos dois momentos, a aeronave preenche a tela e rouba a atenção do espectador. Os dois seres ali embaixo, olhando, oprimidos pelos ritos de passagem que aqueles vôos significam, em espaços diferentes, sob ângulos distintos. “Viemos para um lugar diferente e tudo parece igualzinho”. A inocente e anterior constatação de Eddie ao trocar Nova York por Ohio talvez se oponha ao rito de passagem daquele avião. Talvez se deslocar fisicamente não signifique, de fato, mudar.
Muito legal esse blog!
ResponderExcluirGostei dos textos e dos filmes que vocês escolheram.