segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"O Ódio (Mathieu Kassovitz, França, 1995)" por Guilherme Carréra




A urgência das imagens de “O ódio” (La Haine, França, 1995) remete a um desejo de filmar a tensão do agora. Seus personagens se atraem e se repelem com a mesma facilidade com que se locomovem. O deslocamento constante dos protagonistas é filmado com peculiar interesse. Eles exploram cada esquina, cada rua da cidade. Vão da periferia ao centro. Circulam entre os transeuntes sem se misturar. Carregam consigo os próprios dilemas, não sabendo muito bem como lidar nem como resolvê-los. Tal movimentação resulta em um filme jovem. Com uma montagem editando seqüências que se passam ao longo de um dia, o ritmo da produção é construído com as possibilidades de se narrar aquele contemporâneo de forma instigante. E o ar jovial só contribui para se construir uma obra que parece pulsar, enquanto seus personagens discutem, correm e gritam.

Mathieu Kassovitz tinha 28 anos quando dirigiu este longa-metragem. Vincent Cassel ainda não era considerado um dos grandes nomes de sua geração. A popificação da violência tarantinesca era uma novidade que se alastrava pelo mundo com o lançamento de “Pulp Fiction” e o aval de uma Palma de Ouro. O contexto em que “O ódio” emergiu o coloca como exemplar de um cinema interessado no que está se passando. Essa idéia de gerúndio é bastante notória na produção: o trio principal é acompanhado durante 24 horas, suas ações se sucedem e o levam para situações subseqüentes. O clima um tanto quanto documental deixa claro que Kassovitz quer diagnosticar um tempo histórico específico.

Passado na periferia parisiense, “O ódio” está à margem do centro. A primeira metade do filme se passa nessa espécie de gueto, onde Vinz (Vincent Cassel), Hubert (Hubert Koundé) e Said (Said Taghmaoui) convivem. Um judeu, um negro e um árabe, respectivamente. Os três personificam identidades distintas, co-habitando as franjas da civilização. Na periferia, dançam hip hop, entram e saem de suas casas, fumam maconha e gritam uns com os outros. Gritam muito, como se gritando, pudessem ser ouvidos de alguma forma. Quando se deslocam para o centro da capital francesa, algo soa estranho para o espectador, acostumado com o dia-a-dia dos jovens nas vizinhanças. A Paris filmada parece ser uma outra cidade. O trio não se encaixa naqueles cartões postais.
A fotografia em preto-e-branco contrasta com os cortes bruscos das imagens. O relógio que expõe ao público em que hora do dia se passa o acontecimento retratado, ao mesmo tempo em que cria a cronologia do cotidiano, sinaliza para o imediatismo dos fatos. Tudo acontece muito rápido, em um fluxo de eventos ininterruptos, fazendo de “O ódio” um filme verborrágico por excelência. A todo o tempo alguém está falando, comentando, dialogando. Comunicar-se é deliberadamente um objetivo. O experenciar do dia-a-dia também entra através da TV na casa dos personagens. Em uma seqüência, mãe e filho estão comendo à mesa, enquanto a televisão expõe imagens dos atentados e da violência ocorridos na vizinhança. Devidamente instalados naquele espaço, circulando e convivendo com os populares, ninguém, entretanto, parece estar satisfeito com a condição disponível. “Estou de saco cheio desse lugar, tenho que partir daqui” é o que exterioriza Hubert, cansado da vida que leva e das oportunidades nulas.

Essa tensão entre os que vivem nos subúrbios e os habitantes das redondezas dos Champs Elysées ganha momentos curiosos. Quando uma equipe de reportagem vai até o local onde o trio mora, querendo entrevistá-los sobre um atentado que houve no dia anterior, um deles indaga (gritando, obviamente): a gente tem cara de marginal ou o quê? E em uma situação oposta, quando os três circulam pelo centro de Paris e passam por policiais, notam uma diferença simples, mas que quer dizer muito. “Por aqui eles chamam as pessoas de ‘senhor’”, constatam. O discurso de Kassovitz é paradoxalmente contido. Ele não faz um filme panfletário, muito menos sociológico. “O ódio” está focado no que acontece com Vinz, Hubert e Said, se apropriando do comportamento tipicamente jovem de se deslocar, para a partir daí representar a cidade e suas tensões.

Perto do fim do filme, os jovens entram em uma festa de penetras e se dão mal cantando duas mulheres. Não perdem tempo e tentam assaltar um carro. O plano dá errado e eles fogem da polícia. Depois de perderem o metrô de volta para casa, optam por perambular pelas ruas. Em resposta a um outdoor publicitário que diz “o mundo é seu”, um dos jovens pára diante da frase. Sem titubear, não pensa duas vezes. Ele reescreve-a: “o mundo é nosso”. Esse é o ponto de vista aparente de “O ódio” ao enxergar o mundo pelos olhos da juventude. Essa sede de mundo é o guia. Essa vontade irrefreável de abraçar o universo e tudo que com ele vier.

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