O que as periferias de todo o mundo têm em comum? Pessoas vivendo à margem, obrigadas na maioria das vezes a conviver com sentimentos gerados pelas injustiças de um sistema cuja única certeza é a constante degradação dessa mesma realidade. O Ódio (La Haine, 1995) se passa na periferia parisiense e mostra muito mais do que um sentimento. Através das atitudes dos protagonistas, Mathieu Kassovitz, diretor do filme, revela também um contexto social e político, conjuntura muitas vezes mascarada ou colocada de maneira oculta ou implícita pelo cinema mundial. O filme destrói a imagem romântica e idealizada da “cidade luz” – a França que vemos é isenta de glamour, talvez também por essa razão o diretor optou pelo preto e branco. A realidade aqui apresentada não é fruto de imaginação, é a verdade nua, e no filme se revela com crueza e intensidade.
O impacto causado pelo preto e branco ganha muito mais força ao lado do silêncio, elemento bastante presente no filme. Os diálogos são acompanhados por longos trechos sem fala, apenas som, sem música, tal como a dura realidade representada pelas imagens. A trilha sonora, mesmo não aparecendo muito, tem um destaque fundamental na obra, agindo como mais um subsídio à disposição do diretor, que a utiliza de forma simbólica ao indiretamente introduzir mensagens “subliminares”, como em “non, je ne regrette rien” (não me arrependo de nada), clássico da música francesa que aparece remixada em ritmo de rap. Os ritmos “marginais” são os mais explorados no filme, e isso é percebido logo nos créditos iniciais, onde a música de Bob Marley – ícone do reaggae e símbolo de resistência à opressão – acompanha as imagens de confrontos reais entre civis e policiais.
O Ódio é um filme marginal, que trata de uma realidade também marginal. O fato de retratar a periferia de um país rico e “aparentemente perfeito” de maneira crua e impactante, já traduz a proposta da obra e justifica as escolhas do diretor. Beirando o documentário, Kassovitz utiliza imagem de arquivo, depoimentos dos personagens, relatos de acontecimentos, e constrói uma narrativa densa, mas nem por isso perde o ritmo, afinal, nos momentos onde o filme ganha tamanha intensidade temática, a câmera revela os acontecimentos de maneira bastante lenta, e assim alivia o “peso” das cenas.
A movimentação de câmera em “O Ódio” é diferenciada, uma vez que o diretor utiliza o plano-seqüência inúmeras vezes, ao ponto de acompanhar os personagens em suas aventuras pelas ruas da cidade, construindo cenas bem pensadas e criativas, onde os cortes quase não existem. Outra peculiaridade do filme é o uso de cortes bruscos, que funcionam como marcadores, com ruídos fortes e repentinos (explosões), na intenção de manter o ar de tensão que perpassa todo o filme. Explosões também de sentimentos, sobretudo do ódio (obviamente), uma vez que em todo o filme, os personagens centrais – revoltados com a tortura policial sofrida por um amigo – tentam a todo custo provar a força interior, e mostrar uns aos outros a sua maneira de “resistir”. Vinz, um judeu, impulsivo e arrogante, necessita ter uma arma para se sentir capaz de agir, escolhendo talvez o pior dos caminhos, alimentar a luta ao querer matar um policial, para “equilibrar” a situação. “O ódio só traz mais ódio”. Said, de origem árabe, mostra-se o tempo todo “perdido”, sem saber a quem se deixa influenciar. E Hubert, um boxeador negro, o mais centrado dos três, canaliza sua revolta no esporte, seu refúgio, que cai por terra com a destruição da escola, seu local de treinamento. “O mais importante não é a queda, mas sim a aterrissagem”.
Essa multiplicidade de tipos humanos é outra característica interessante do filme – personagens com peculiaridades, vítimas do mesmo sistema, unidos não apenas por razoes geográficas, mas também pela alienação e revolta crescente em suas vidas. A periferia, seja ela qual for, na França, nos EUA ou no Brasil, tem essas características – brancos, negros, árabes, judeus, africanos, diversas origens, diversas culturas, diferentes formas de lidar com as dificuldades... A violência é tida como uma resposta à exclusão. “Quem vira a outra face é otário”, frase que, se relacionada com o cinema brasileiro, é totalmente cabível em Cidade de Deus, sem falar de Tropa de Elite, fruto da mesma temática da obra de Kassovitz, num contexto nacional.
Assim, O Ódio é uma obra atual, impactante, e como se não bastasse, imensamente didática no sentido de funcionar como “painel” do que seria um cinema periférico, periferia também literal apontada em diversas cenas, sobretudo na imagem da torre Eiffel, ao longe, uma realidade tão próxima e ao mesmo tempo tão distante e impossível.
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