domingo, 16 de novembro de 2008

"O ódio" por Hermano Callou



Em certo momento de O Ódio, vemos na paisagem uma campanha publicitária com a seguinte sentença: “Le Monde est à Vous”. A palavra “Vocês”, entretanto, não parece abarcar os três personagens principais do filme, indivíduos pertencentes a uma juventude parisiense entregue à miséria e à violência: Vinz (Vincent Cassel), um judeu, Hubert (Hubert Kounde), um negro, Säid (Saïd Taghmaoui), um descendente de árabe, todos moradores de um mesmo conjunto habitacional na periferia de Paris. Não por acaso, na cena em questão, um dos personagens intervém no cartaz publicitário, fazendo uma ligeira mudança na última palavra da mensagem: lemos agora “Le Monde est à Nous”. A alteração assinala não apenas o sentimento de não pertencer ao grupo de pessoas para qual aquela mensagem é dirigida, como também um inconformismo, o desejo de não baixar a cabeça para aqueles que o excluem. O Ódio persegue esse estado de espírito tenso, em permanente conflito com o mundo ao redor, nos oferecendo uma visão da capital francesa como um espaço marcado pela pobreza e pela violência étnica.

O Ódio retrata o cotidiano dos três personagens durante o dia em que um amigo do trio, Abdel (Abdel Ahmed Ghili), está hospitalizado, devido a um confronto com a polícia. Acompanhamos as andanças dos três rapazes pela cidade, onde cometem pequenos delitos e vivem a atmosfera de um assassinato eminente. Em uma época que o cinema francês se tornou especialista em comédias cheias de boas maneiras e drama burguês insípido, O Ódio assinala um caminho periférico: um cinema que expõe as fraturas da França com raiva e nervosismo, em que cada imagem e cada corte do filme serve de plataforma para uma estética da agressividade. Mesmo quando a própria idéia de cinema “urgente”, com sua câmera na mão e sua tematização das margens, se tornou um fetiche muito bem assentado no mercado de cinema dito alternativo, O Ódio nos chama atenção por sua coragem, pela intensidade de seu resultado e, sobretudo, por sua sensibilidade em registrar um momento histórico específico da França. O filme nos surpreende quando descobrimos que foi lançado no meio dos anos 90, quando as tensões étnicas na capital francesa ainda não eram tão abertamente problematizadas.
Mesmo que O Ódio esteja atento a uma conjuntura social eminentemente francesa, sua tematização da condição periférica em um país central, onde é possível entrever como as fronteiras étnicas e sociais se reescrevem no capitalismo globalizado, o coloca como um filme relevante em uma pespectiva internacional. A imagem de nossos três personagens, em determinada cena, diante da paisagem de Paris – com sua Torre Eiffel imponente e emblemática – parece construir uma atmosfera de não-pertencimento semelhante a de outras realidades de exclusão e opressão que marcam o tempo presente. Um momento particularmente inspirado do filme surge logo em seguida, quando assistimos a um dos personagens brincando de tentar apagar as luzes da torre estalando os dedos: ironia que materializa a um só tempo uma impotência e um desejo de subversão. O Ódio, mesmo uma década depois de seu lançamento, ainda nos soa como um filme notável, cheio de energia e vontade de ir ao encontro do presente. A imagem de Vincent Cassel, possivelmente em seu melhor papel, por onde vemos cada músculo do seu rosto tensionar uma agressividade absurda, deve ficar na memória por um bom tempo.

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