quarta-feira, 12 de novembro de 2008

"Eu me apaixono pela voz das pessoas" por André Antonio


Luzes de neon piscando em placas de motéis; calçadas escuras de pedra, apenas iluminadas por um ou outro poste elétrico de luz vermelha; paredes descascadas de casas antigas que hoje funcionam como hotéis baratos. Se você acha que essa descrição não corresponde ao cartão postal de Buenos Aires, imagine-a em funcionamento com a fotografia granulada, as cores estouradas, a aceleração ou a diminuição da velocidade do obturador da câmera de Wong Kar-Wai. Sim: a descrição corresponde é a um filme de Wong. A cidade futurista de ficção científica em 2046 (2004) já estava presente aqui, em Felizes juntos (1997) e mesmo antes na filmografia do diretor.

Parece que até se Wong for filmar na Cochinchina teremos como resultado o mesmo tipo de filme onde os personagens estão nesse mesmo ambiente, e o espectador fica bêbado, imerso numa espécie de voluptuosismo melancólico (e eu, pelo menos, fico morrendo de vontade de comer comida chinesa depois e com a trilha sonora na cabeça). Wong é um esteta que vem desenvolvendo um estilo pessoal desde Dias selvagens (1991). Mas esse auteur também mergulhou há tempos nas águas profundas da arte pós-moderna. Aí temos, junto com essa coerência estilística, ao mesmo tempo uma heterogeneidade formal esquizofrênica. Em Felizes juntos, por exemplo, passamos rapidamente e sem remorso de um road movie, para um drama romântico (Wong é podre de romântico), para um filme sobre amizade, para um videoclipe pop (a trilha sonora parece estampar isso, ora com composições sem letra, ora com hits americanos, ora com lamentos latinos).

Mas esse estilo-wong-kar-wai não é pura forma em que se deve enquadrar uma história. A própria temática mais cara a Wong exige essa forma: alguém que está apaixonado louca e irremediavelmente por outra pessoa não pode concretizar esse amor (geralmente porque a outra pessoa se afasta mais e mais). Daí que o olhar da câmera é o olho choroso e nostálgico desse alguém, cuja percepção de mundo foi dilatada pela não-realização do desejo. Os enquadramentos são construídos, aí, sempre atrás de vidros com letras comerciais coloridas neles. O slow motion e a trilha estão impregnadas de nostalgia pelo que se viveu ou pelo que, dolorosa e paradoxalmente, não se viveu. Tema e forma estão em relação dialética e orgânica. E tal relação foi desenvolvida até a excelência de um ponto-limite em Amor à flor da pele (2000). 2046 e o ainda mais fraco Um beijo roubado (2007) comprovam isso.
Em Felizes juntos, claro, a temática do sofrimento pelo amor continua presente. O fato de o par ser composto por dois homens parece não trazer nenhuma dificuldade, incomodo ou novidade radical para o exercício artístico de Wong. Pelo contrário, o diretor explora as possibilidade estéticas de algumas cenas homoeróticas ou do imaginário gay (banhos no banheiro coletivo do açougue, jogos de futebol com companheiros de trabalho suados, banheiros e cinemas onde os homens “se pegam”, dentre outras) e as costura organicamente em seu estilo pessoal. Fora que essa temática, não explorada aqui de forma “ativista” (pelo menos não explicitamente ou como o foco do filme), produz um dos diálogos mais lindos de todo o longa: quando uma moça convida Chang (Chen Chang) para ir ao cinema, ele recusa grosseiramente. Aí Lai Yiu-Fai (Tony Leung Chiu Wai) pergunta o porquê. Chang responde: “Não gosto da voz dela. Eu me apaixono pela voz das pessoas”.
Mas a temática do amor ferido, não importando se homossexual, é explorada, aqui, em uma chave específica que permeia todo o filme: o deslocamento. Se o cinema exterioriza e concretiza, com sua ilusão do real, nossos temores, desejos e dramas interiores (quem diz isso é Slavoj Žižek em O guia do pervertido ao cinema [2006]), então nada melhor para conhecermos o relacionamento instável de Ho Po-Wing (Leslie Cheung) e Fai que eles saírem de Hong Kong e para a Argentina e se sentirem perdidos lá do mesmo jeito. Posteriormente, temos uma das seqüências mais belas do filme: uma montagem clíptica de algumas imagens de uma Buenos Aires escura e underground e ao mesmo tempo colorida e cintilante, ao som da música I have been in you, de Frank Zappa. Ela nos mostra a sublimação do amor ferido de Fai pela percepção do mundo como um fluxo perene e irrevogável. As coisas passam, se modificam, se deslocam e nós temos que lidar com isso. Se esse tema é velho em arte e mesmo na filosofia, a estética pós-moderna se abraça a ele melancólica e peremptoriamente. Essa sublimação de Fai já começa a se esboçar quando o personagem Chang aparece: ele é um viajante que erra pelo mundo sem rumo e se torna um grande amigo de Fai. Nesse sentido, Felizes juntos é a exageração poética da frase de Terry Eagleton em A idéia de cultura (2003, UNESP, p. 94): “o migrante não pode ir para casa, ao passo que o cosmopolita não tem casa para onde ir”.

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