quarta-feira, 12 de novembro de 2008

"Um Mistério Exótico" por Bernardo Mendes



Não seria correto apontar que o nome “Exotica”, título do filme de Atom Egoyan, provém pura e simplesmente do nome da casa noturna onde se desenvolve a trama. A misteriosa e enigmática narrativa criada por este diretor canadense de ascendência armênia, e nascido no Egito, vai muito além do óbvio, é daqueles filmes que não se importam em esclarecer de modo definitivo seu enredo, desde seu início, e, muito menos, apresentar um desfecho claro que elucide toda a história em seus pormenores. Não se sabe, por fim, se exótica é a personagem Christina (Mia Kirshner), que apresenta números de dança num bar exótico, todo decorado com temas tropicais: coqueiros, samambaias, conchas do mar e falsos papagaios; ou se esse exotismo está em Thomas (Don McKeller), personagem auxiliar do filme, contrabandista de espécies animais raras.



“Afinal, lá fora é a selva, não?” é o que diz Francis (Bruce Greenwood), personagem central que une as histórias individuais ao longo do filme, ao passo em que mostra para qual direção a trama vai seguindo. Freqüentador dessa casa noturna onde Christina trabalha, Francis mantém com ela uma relação de cliente-dançarina que parece ser, a princípio, meramente profissional. Na casa, comandada por Zoe (Arsinée Khanjian), uma mulher de sotaque que dá continuidade à ocupação que foi da sua mãe, ainda trabalha Eric (Elias Koteas), um DJ que “anima” as noites do recinto e que é, na verdade, o grande incentivador do consumo dos clientes. Vigilante dos passos de Christina, Eric, simbolicamente agressivo e repleto de sentimentos guardados, tem um envolvimento frustrado com Zoe.


Egoyan não está preso à idéia de tempo linear ao qual se propõe grande parte dos filmes. Numa primeira vez em que se vê o filme, não há como se saber ao certo que imagem pertence a qual elemento fincado dentro da narrativa. O final é que acaba por nos demonstrar que existe algo a ser situado ou explicado em uma cena ou outra (a importância do irmão de Francis na trama, ou o que Christina e Eric faziam andando entre colinas no meio do mato junto a várias pessoas). Tudo vai se definindo aos poucos. Mas é apenas com um segundo olhar, que se consegue definir muito mais do filme, dissecar cada fala, a filosofia contida nela ou o seu resultado numa ação futura. Seria injusto detalhar cada desmembramento, cada motivo que vai sendo revelado dentro da história, pois é justamente isso que vai de encontro à proposta do diretor.


Assim como o mistério velado que esse filme guarda, os espelhos, representação de um certo voyerismo exibido em cada cena, guardam a observação solitária, o objeto desejado e a resultante necessidade de não ser visto, de não serem revelados os sentimentos, assim como permanece sem serem revelados os próprios motivos de cada personagem. É através do espelho que Eric idealiza uma Christina que ficou guardada como amante apenas em sua memória. E ele, detentor dos espaços da casa noturna, com o poder do olhar privilegiado do alto e do microfone, sufoca Christina ao se supor, também, no direito de decidir, mesmo que indiretamente, no futuro dela e naqueles estejam ao seu redor.


Francis, este amargurado personagem que encontra em Christina um meio de salvação para a sua vida repleta de dores e perdas recentes, ao mesmo tempo em que cativa a dançarina, desperta o ciúme contido em Eric. Outro ponto de equilíbrio emocional para Francis é Tracy (Sarah Polley), sua sobrinha. Detentora de uma maturidade invejável, a menina, que era a companhia da filha de Francis, é quem serve de ajuda emocional ao tio, enquanto pratica aulas de música em sua casa, e, paralelamente, pontua diálogos emocionais e filosóficos que o diretor nos coloca (talvez como questionamentos próprios) de modo significativo ao longo do filme. O pai da menina, Harold (Victor Garber), irmão de Francis, que parecia não ter grande importância na trama, é colocado em questão por Tracy: “Porque o papai fica tão diferente quando você está perto dele. Eu não gosto dele quando ele está junto de você.” E, com isso, parece que detendo de forma matemática todo o enredo do filme, Egoyan traz a tona, novamente, esse personagem que pouco aparece na história.


Sempre pontuado de uma música exótica de sonoridade árabe (a trilha sonora é um ponto forte e decisivo no ambiente misterioso que o filme de Egoyan vem propor), o bar (casa noturna) é um ponto de fuga para Francis, onde ele sabe que pode buscar alguma inspiração de vida que já não lhe existe mais. Ele e Christina, que possui o mesmo vazio por dentro, ao mesmo tempo em que não chegam nem a se tocar, dependem psicologicamente um do outro, e trocam sentimentos que ambos necessitam. Exotica é o sustento necessário dela, sempre inquieta e insatisfeita: “Nem todos fazem de sua vida o que realmente querem fazer, não é verdade?”, diz ela ao questionar as atitudes de Zoe, personagem com a qual seu relacionamento de amizade parece sempre estar ameaçado.


Lançado em 1994, o filme Exotica tornou-se um expoente do cinema canadense e lançou o nome do diretor Atom Egoyan, que, alguns anos depois, lançaria outro premiado filme, O Doce Amanhã, 1997, ganhador do Grande Prêmio do Júri do festival de Cannes desse mesmo ano. Nota-se nos filmes desse diretor nascido no Egito, a mesma preocupação com a profundidade nos particulares problemas de cada personagem e uma busca constante pela razão de ser de cada um deles, assim como o mergulho em seus sentimentos e um certo desapego às linhas narrativas convencionais. Egoyan, com esse nome igualmente exótico e essa mistura de cultura que já carrega consigo, soube criar determinadas atmosferas de suspense em filmes onde o drama pessoal é o fato que predomina. A sensibilidade é qualidade inerente a seus personagens, pois o ser humano, em si, carrega essa marca, e Egoyan, fugindo da dicotomia clássica de bem e mal, a transpõe para qualquer um deles.

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