Em Still Life, temos um edifício que, quando menos se espera, entra em processo de decolagem, como um foguete. O filme se apresentava até então sob um regime de imagem realista: a partida daquele imenso objeto para céu quebrou as coordenadas da realidade – o mundo se tornou, por um instante, irreconhecível, inlocalizável, um espaço destituído de nome e de sentido. Somente quando o edíficio abandona o chão temos a dimensão da realidade para qual o cinema de Zhang-ke se dirige: estamos em um lugar que parece se quebrar e se refazer em uma velocidade vertiginosa. O mundo para o qual Zhang-ke se insurge é uma China marcada por uma modernização acelerada e inebriante, onde uma população imensa de trabalhadores são levados a reboque, sem compartilhar as conquistas do desenvolvimento econômico – um país marcado pelo subdesenvolvimento e, ao mesmo tempo, perdido em meio a uma inflação crescente de signos do capitalismo. Nesse mundo em movimento acelerado, Zhang-ke reescreve idéia de cinema político, nos oferecendo uma sensibilidade histórica extremamente apurada, a captar as transformações por que passa seu país.
O Mundo é o quarto longa-metragem do cineasta e possivelmente seu filme mais ambicioso. O filme registra o cotidiano dos trabalhores de um enorme parque temático em Beijing – chamando sugestivamente de O Mundo -, onde os turistas vindos de todos os cantos da China podem passear por reproduções de grandes monumentos e pontos turísticos do planeta. Tao (Tao Zhao), uma dançarina do parque, trabalha muito e vive seus pequenos momentos de prazer, em meio a brigas com seu namorado Taisheng (Taisheng Chen), o reecontro com um antigo companheiro (Jing Dong Liang) e a amizade com uma imigrante russa (Alla Shcherbakova). Zhang-ke, no entanto, procura beleza não propriamente na narrativa da personagem, mas na interação de suas criaturas com o espaço ao seu redor. A opção por uma câmera distanciada e com larga profundidade de campo nos permite acompanhar o dia-a-dia dos personagens evolto pela paisagem opulenta e sedutora do parque. Como Antonioni, referência evidente para o cineasta chinês, Zhang-ke propõe uma poética do espaço, em que uma Torre Eiffel dissolvida na paisagem, um travelling lateral que revela as pirâmides do Egito ou um World Trade Center de aparência indestrutível, constrói uma atmosfera de completo irrealismo e deshierarquizam a importância do primeiro plano em relação ao último.
A opção de construir beleza a partir do atrito com a paisagem, no entanto, não é uma estratégia apenas de ordem estética: Zhang-ke constrói o espaço em O Mundo como uma cartografia das tensões econômicas e políticas que marcam a China no tempo presente. É nesse espaço que nos oferece a ilusão da centralidade que o cineasta nos apresenta as pequenas misérias da juventude chinesa – o parque se torna o emblema da condição periférica no capitalismo globalizado, em que os países subdesenvolvidos vivem a ilusão da prosperidade internacionalizada. Signos completamente desterritorializados, os monumentos do parque são destituídos de memória, objetos que se oferecem apenas aos atos repetitivos dos turistas - vemos os visitantes tentando segurar a Torre de Pisa, em pose para foto, ou visitando um grotesco Vaticano em miniatura, repetitivamente, como em um ato de encantamento autônomo, pré-fabricado. A própria Tao pode se transformar em variados personagens sem que isso, no entanto, altere sua vida – uma dançariana indiana, uma dama do Japão imperial, uma aeromoça de um avião que nunca vai partir.
O regime do simulacro que Zhang-ke desenha, no entanto, não é uma realidade monocromática: no interior dela mesma, os personagens desenvolvem seus momentos de intimidade e afeto, que fazem suas vidas parecerem maior do que aqueles monumentos sem história. Tao pode voar em um tapete mágico com seu namorado, mesmo que seja apenas dentro de uma televisão: é a partir da tecnologia que a juventude chinesa tece suas afetividades, onde mensagens de celular podem romper a ordem estética do filme, instaurando pequenos instantes de leveza e fantasia. Dessa forma, as conversas de Tao na lavanderia com sua amiga russa é um campo para se desenvolver o entendimento, como as conversas nos quartos de motel com o namorado constroem o não-entendimento entre eles: a vida de Tao é tão flutuante como a da própria China.
A relação de Zhang-ke com a estética do espetáculo é ainda bastante ambígua: mesmo que o cineasta contraste o mundo do gigantismo do parque com a atenção ao pequeno na construção dos personagens, não podemos dizer que há propriamente uma rejeição ao mundo do espetáculo. Se as coreografias de dança cheias de luz e cor são o espaço da impessoalidade, onde Tao pode vestir variadas máscaras, variadas roupas para se tornar objeto de uma beleza industrial, é o próprio espetáculo que permite Zhang-ke desenvolver seus momentos mais preciosos de mise-en-scene. Não por acaso, O Mundo é um filme marcado por suntosos travellings, cores histéricas e um ritmo um tanto ágil para o padrão de seu cinema: estamos no território da sedução, do movimento, do estímulo ao sentidos - O Mundo se permite infiltrar pela lógica da própria realidade que o cineasta procura analisar. Entre a monumentalidade de sua fotografia e a pequeneza da vida, a construção da História no presente nos escorre pelos dedos.
O momento mais bonito do filme, não por acaso, é uma cena atravessada pela lógica do espetáculo. Tao descobriu que o namorado era infiel, sua vida se arruinou completamente, ela, saberemos logo em seguida, cometerá suicídio. Antes de entrar no palco, nós a vemos no seu camarim, no entanto, vestida de noiva. Ela conversa com sua supervisora tendo ao fundo o Arco do Triunfo. Não havia ainda começado a nevar naquele inverno, elas comentam, quando um chafariz irrompe inesperadamente na paisagem com seu jorro imenso de água. O plano em questão – em que um evento, sem sentido aparente além de sua própria pregnância surge no fundo da imagem – já se tornou característico do cinema de Jia Zhang-ke, no modo como inunda a seqüência com uma beleza sempre indecifrável. O plano, entretanto, apenas introduz o que vem a seguir: assistimos agora Tao em uma coreografia exuberante, em que mulheres de branco desfilam no palco sob neve artificial. O inverno que não veio, o casamento que não veio, a beleza que não veio: tudo se encontrou e se refez por um instante. O espetáculo tornou-se, naquele fragmento de tempo, íntimo, sincero, sanguíneo. A seqüência deve ficar na minha cabeça ainda por um bom tempo.
"O espetáculo tornou-se, naquele fragmento de tempo, íntimo, sincero, sanguíneo."
ResponderExcluirQue texto lindo!