quinta-feira, 20 de novembro de 2008

"Por um cinema mais humano" por Anderson Barretto





O amor e suas desventuras é uma temática marcante na carreira de Wong Kar Wai, diretor de filmes de grande carga poética, cheios de sensibilidade. Em “Felizes Juntos” (Happy Together, 1997) não poderia ser diferente, tratando do amor entre iguais, o diretor esbanja o seu olhar apurado e traduz os mais distintos sentimentos. Fiel ao seu histórico de filmar em vários lugares num mesmo filme, Kar Wai conta a conturbada relação entre dois rapazes que saem de Hong Kong e partem para a Argentina, assim, simplesmente – um desejo dos personagens se refugiarem no “fim do mundo”, no sul da América do Sul – uma cultura totalmente diferente.

A relação entre os dois jovens é também peculiar, não por serem do mesmo sexo, mas por não saberem ao certo que tipo de relação eles têm. São amigos, namorados que aos poucos vão descobrindo um ao outro e a si mesmos. Para isso percorrem um caminho tortuoso, num submundo interior repleto de grandes explosões de sentimentos reprimidos, exorcizados ironicamente graças ao amor. É uma relação de amor e ódio, com brigas e agressões físicas e verbais, passeando por ciúme, ingratidão, ressentimento, culpa, dúvida... Sentimentos possivelmente identificados pelos cidadãos de Hong Kong ao verem-se “libertos” da Inglaterra, exatamente no ano de produção de “Felizes Juntos” – 1997 – uma época marcada pelo reencontro. Assim, Kar Wai utiliza os dois personagens pra traduzir o clima de distanciamento da realidade, traduzindo o contexto da época, refletindo com isso, todas as perturbações que a solidão pode causar.


As cenas do casal, algumas até com certo erotismo, não servem como estereotipagem dos tipos homossexuais representados no filme, pelo contrário, trazem tamanha naturalidade, afastando qualquer tipo de preconceito, uma vez que podem ser facilmente identificadas por qualquer casal, hétero ou não. Fai e Po-Wing vivem se reconciliando, sem perceber que apostam numa relação “sem futuro”, onde os momentos de paz quase não existem, apesar de ser bastante nítido o forte sentimento que nutrem um pelo outro.

Felizes Juntos mostra um amor violento, pessimista, fruto talvez de uma revolta contida e reprimida, claramente uma busca pela identidade dos protagonistas, o que é visível desde o início do filme quando são apresentados a partir dos seus passaportes com suas fotos e nacionalidades. Mais adiante, os dois encontram-se perdidos nas estradas sul-americanas, induzindo à questão: “até que ponto eles estão perdidos?”. Longe de qualquer insegurança, o casal tem determinação, e levados pelo sonho de conhecer a cataratas de Iguaçu, transmitem para o público uma atmosfera atemporal, carregada de nuances e impressões. No entanto, apenas quando o casal se separa, os personagens caem em si, se reconhecem auto-exilados num país subdesenvolvido, literalmente “do outro lado do mundo” e recordam toda a odisséia repleta de dificuldades que enfrentaram. Transitaram por entre becos, lugares escuros, conheceram o lado sombrio e avesso da Argentina, num ângulo contrário ao encanto e sedução do desconhecido, uma espécie de Hong Kong de “cabeça para baixo”, longe do lar que nunca puderam encontrar.

Won Kar Wai não é um diretor popular , mas sim é um diretor de impressões, prefere sugerir a ser explícito, seja nas palavras ou nos acontecimentos, aborda sempre o subentendido, pede um certo esforço ao espectador, que automaticamente se vê intrigado com tantos sinais colocados à sua frente. O diretor explora essas sugestões também na belíssima fotografia do filme, utiliza a cor como poucos, tratando-a como uma expressão dos sentimentos. Nas cenas em preto e branco, brinca com os tons de cinza, fugindo muitas vezes do alto contraste, indiretamente sugerindo um anti-radicalismo ao nos fazer pensar que as coisas não precisam necessariamente ser de um jeito ou de outro, há sempre muitas opções... E assim, o filme vai traduzindo nuances, o tempo, a memória, permitindo a aceitação de tudo e de todos, contribuindo sutilmente para uma abordagem mais humana e universal do cinema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário