domingo, 16 de novembro de 2008

"Felizes Juntos (Happy Together, Wong Kar Wai, 1997)" por Hermano Callou


Ao falar da visualidade como uma construção histórica, Jameson¹ define o tempo presente como um universo que se tornou profundamente visual, em que a circulação e o consumo acelerado de imagens por todo o mundo nos permite falar de uma estetização da realidade. Se o cinema contemporâneo encontrou na preferência por narrativas do mínimo ou por um esvaziamento da própria idéia de narratividade uma resposta dialética ao regime de imagem que marca o presente, o cinema de Wong kar Wai encontrou na própria saturação de signos sua forma de resistência: o cineasta, ao esposar as armas do inimigo, o enfrenta em seu próprio território. O cinema que o diretor oriundo de Hong-Kong desenvolveu é construído por uma lógica do excesso de imagens: o uso de diferentes lentes e filtros, cores e texturas, acelerações e desacelerações da imagem, constroem um todo que encontra sua coesão no próprio transbordamento. A beleza que surge no meio disso tudo nos oferece a possibilidade de refletir sobre as formas de se experienciar as imagens no nosso tempo.

Felizes Juntos é uma exemplar desse universo, em que podemos ver Wong Kar Wai explorando os recursos visuais que lhe são característicos com um senso marcante de desequilíbrio. Se o trabalho mais recente do diretor - Um beijo roubado - representou a transformação de seu estilo em um reprodução de si mesmo, Felizes Juntos nos oferece um Wong Kar Wai ainda dissonante, em que sua forma de fazer filmes se apresentava desregrada e cheia de vontade cinema. Lai Yiu-fai (Tony Leung Chiu Wai) e Ho Po-wing (Leslie Cheung ) são dois imigrantes de Hong-Kong que vivem na Argentina uma conflituosa relação de amor. Entre os momentos de intimidade na cama ou no sofá e as brigas que parecem sempre selar o fim da relação, os personagens constroem um relacionamento cíclico, marcado pela palavra “recomeço”. A construção visual e sonora do filme materializa, por sua vez, o sofrimento dos dois rapazes: o cinema de Wong Kar Wai traduz o universo de suas criaturas na forma acelerada e desejosa com que fabrica imagens, em que os cortes abruptos, a música que inunda os cenários e a textura quase agressiva da imagem edificam uma realidade emotiva instável, que precisa ser experimentada pelo corpo.

A própria palavra corpo parece central para entender Felizes Juntos. Na construção de seus personagens amantes, não há propriamente o desenvolvimento de uma psicologia – em seu mundo de paixões fugazes, o que se desenha é uma espécie de somatografia dos afetos. O modo como nos aproximamos de Lai Yiu-fai e Ho Po-wing é menos um entendimento de ordem psicológica do que um engajamento de ordem táctil: vemos apenas dois corpos que reagem ao mundo, corpos cheios de raiva e paixão, que se amam e se empurram, se esfregam e se batem, em um movimento de instabilidade expansiva. Poucas vezes, ainda é preciso dizer, pôde-se fazer no cinema uma câmera interagir com tanta organicidade com os corpos de seus atores, a captar, em cada gesto um sentimento e em cada músculo um desejo. O mundo sensualizado de Wong Kar Wai encontra, portanto, nos seus próprios atores o ponto de convergência do transbordamento: elogio ao corpo como espaço de expansão da dor e do prazer, Felizes Juntos deshierarquiza a oposição entre superfície e profundidade, ao fazer um filme que procura dar conta da experiência da epiderme.
Nem tudo é pura sensação em Felizes Juntos, entretanto: se em um primeiro momento estamos no território da história de amor entre dois rapazes, aos poucos o filme de Wong Kar Wai se torna uma fábula sobre corações partidos e sobre a lembrança que temos dos outros. Nesse sentido, o cineasta brinca com seus símbolos baratos, cuja obviedade é ela própria determinante de nossa identificação e encantamento. A decoração Kistch de uma pensão vagabunda pode guardar os segredos do amor: um abajur colorido com a inscrição de uma cachoeira pode significar a utopia da felicidade a dois para Lai Yiu-fai e Ho Po-wing. Um garoto pode carregar a tristeza dos outros em um gravador e a levar para o fim do mundo. Os cigarros que todos fumam podem traduzir o peso das coisas passageiras – o uso da câmera lenta por Wong Kar Wai tenta cristalizar o instante, antes que ele se dissipe junto com a fumaça. Felizes Juntos revela quando os amantes se separam e quando aqueles dias confusos na Argetina tornam-se memória. Wong Kar Wai, no entanto, saber eternizar em grãos e ruídos o escorrer dessas coisas que passam.
1. JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.

Um comentário:

  1. Este filme é maravilhoso, assim como Amor à Flor da Pele.
    Bela crítica.

    Abração.

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