domingo, 16 de novembro de 2008

"A Loucura, a Rotina e a Humanidade em Montenegro (Dusan Makavejev, 1981) " por Bernardo Sampaio Mendes



Montenegro (Dusan Makavejev, 1981) mostra Marylin Jordan (Susan Anspach), uma esposa insatisfeita com o casamento, tolhida em sua liberdade, em sua sexualidade, em sua busca de vida. O filme, que se passa em Estocolmo, se inicia com a constatação da rotina. É quando Marylin vê que, em seus 37 anos, “nunca havia passeado por Paris com a capota do carro aberta e os cabelos ao vento”. A aproximação dos 40 anos a faz repensar no seu estilo de vida e a loucura toma o ambiente não só da esposa, como de todos os personagens. Aliás, é característica forte de Montenegro esse humor seco e irônico presente em quase todos os momentos do filme, que o tornam uma comédia sutil, ao pôr em questão a visão do homem, da família, do dinheiro e da traição. As atitudes (ou não-atitudes) de um marido que pouco liga para os problemas da esposa, sejam eles sexuais, sentimentais ou o que for, geram uma personagem louca que o enfrenta através de um questionamento sublinhado na maluquice, na intervenção do hábito diário, foco principal de sua amargura.

O marido, Martin Jordan (Erland Josephson), mais preocupado com seus devidos problemas e com as suas viagens exóticas (o interessante é notar Recife no meio delas), nas quais sua esposa nunca está presente, busca ajuda em um psiquiatra, sendo isso, talvez, o máximo que ele faz por ela. A pergunta feita no começo, ao se comparar macaco e homem, parece se dirigir à prisão familiar instalada na família Jordan, detentora de uma boa casa em frente ao lago, boas mobílias e cama, mas que carrega uma desestrutura, uma desarmonia. “A um macaco em um zoológico uma pequena garota dirige uma pergunta: porque você vive aí? Viver na sua terra não seria melhor?”. Em comparação com a vida do primata, preso em um refúgio que lhe é desconhecido, enjaulado, está a vida da própria Marylin, uma estrangeira (ela é americana) em um país estrangeiro, em uma casa que está alheia a ela. A solução, portanto, como toda boa solução, é transformar o ambiente, criar uma intervenção, um elemento perturbador da rotina que possa denunciar o problema, que possa ser visto e que seja o porta-voz da sua voz, mas que acaba não sendo.


Nessa ironia já citada, Makavejev, diretor iugoslavo, põe em questão a ostentação através de uma linguagem bizarra, absurda. Numa das cenas, Marylin está num clube de encontros femininos, onde donas de casas trocam experiências relacionadas a casa, à moda, e, quem sabe, ao sexo. Vemos um desfile onde um comerciante de casacos de pele ressalta a beleza de uma bizarra peça que parece ser feita da calda de diversos esquilos. Nessa agudez de zombaria, baseada na crítica a uma sociedade, que por si só já é louca, parece estar escondido o sorriso malicioso, de canto de boca, que Makavejev solta, e parece nos expor um outro mundo, um mundo surreal, que embora pareça outro, é, bem na verdade, o nosso.
No aparato de personagens estranhos montados nessa história, além do avô louco e das crianças, que ao longo do filme passam a adquirir certas atitudes não mais que reais, está também o psiquiatra Dr. Pazardjian (Per Oscarsson), um personagem que, como alerta sua própria secretária (um tanto esquisita também), só está interessado em dinheiro. Aparentemente vaidoso, de gestos finos e pausados, o médico aparece experimentando (não por coincidência) um casaco de pele. Pazardjian acaba por iniciar, através de um amigo comum, uma relação que vai se tornando cada vez mais estreita com Martin, algo que ultrapassa a simples análise da esposa a beira da loucura.

Na sua indiferença (e todos parecem ser indiferentes), Martin pouco liga em viajar sem a esposa, e Marylin, ao notar que tem a oportunidade de embarcar também nessa viagem, pouco liga em deixar os filhos aos cuidados do avô, que pretende viver mais uns 17 anos e ainda arrumar uma esposa. Ao se desencontrar do marido no aeroporto e perder o vôo, Marylin se junta a um grupo de imigrantes iugoslavos e, na constatação de que tudo aquilo é uma farsa e que ela está pronta para trocar de ambiente, passa a viver por uns dias com eles em um bar que também é destilaria clandestina.

Nesse bar, a rasa humanidade do homem é exposta. É lá onde ocorrem brigas, onde se bebe muito, se comemora, se alegra, se vive. Onde o sexo é o sentimento natural inerente, mas é onde também se encontram a podridão e a loucura (nada mais que o real) de uma maneira sublinhada, bem como no subtítulo do filme. Temos, portanto, as pérolas dessa boa esposa (seu colar está quase sempre presente nas cenas) e os porcos do Zanzi Bar, local de encontro dessa minoria imigrante que parece excluída de uma realidade confortável, como a de Marylin.

Montenegro, que dá nome ao filme, é o tratador do zoológico. Por ironia ganhou este apelido, mas é natural da Sérvia. O ambiente de leste europeu, seu clima, suas relações, estão presentes nessa vivência e numa estranheza cultural que é acentuada, mas que chega a se assemelhar com o estilo de vida intenso dos latino-americanos. Na dialética da linguagem montada pelo diretor, no paralelo que ele constrói, Montenegro é quem cuida dos animais. É ele quem dá de comer aos macacos. A prisão dos macacos é também a jaula de Marylin, e ele a liberta. Mas assim, como eles, somos também animais e é isso que Makavejev pontua. Podemos, nós, confiar em nós mesmos, se somos também sujeitos a sentimentos conflitantes e a instintos naturais que nos remetem a um passado selvagem? Quem sabe até não sejamos mais animais que os próprios animais.

Mas isso já foi dito, comparado e colocado em questão. Makavejev, no entanto, sabe utilizar uma maneira própria de demonstrar isso, acentuando a nossa loucura diária, apontando que estamos nos extremos, entre porcos e pérolas. Tudo isso construído a partir de uma narrativa que carrega um sarcasmo sadio, destacando num mesmo espaço fílmico a dramaticidade da questão humana, a denúncia da rotina e da loucura, e a comédia refutada no exótico e no grotesco. Um filme que, sim, é baseado em fatos reais, no real cotidiano, no corriqueiro, naquilo que a gente vive todo dia. Montenegro é uma daquelas frutas envenenadas, mas que, no entanto, ao invés de nos matar, nos faz refletir melhor.

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