quarta-feira, 12 de novembro de 2008

"O Mundo é Deles" por Bernardo Mendes


A frase inicial, e também final, do filme O Ódio (La Haine, Mathieu Kassovitz, 1995) sintetiza a forma como são encarados os problemas sociais existentes nos sítios de exclusão, de uma maneira geral, ao redor do mundo. Mesmo com a particularidade de cada lugar, o combate à violência continua sendo feito através da repressão, ou seja, mais violência. “Essa é a história de uma sociedade que cai, mas que diz, como para se reconfortar: até aqui tudo bem, até aqui tudo bem. Mas o importante não é a queda, e sim a aterrissagem”. Os personagens centrais dessa história, um trio criado no subúrbio de Paris, onde etnias diversas se encontram em um mesmo local de (sobre)vivência, conseguem enxergar que eles próprios são problemas secundários em uma cidade que está mais preocupada com a sua imagem perante o mundo, e que, mesmo assim, a exclusão deles, estrangeiros mal-quistos, só será solucionada quando a bomba explodir, quando o conjunto habitacional, quieto em seu lugar de reclusão, interferir na vida do centro e expandir sua revolta.



A “sociedade que cai” é aquela que tem o poder de decisão sobre os demais, e para ela, se “até aqui está tudo bem”, não há porque buscar solução imediata para essa periferia. Em uma Paris reclusa, de prédios iguais, problemas iguais e pensamentos parecidos, vivem Hubert (Hubert Koundé), um africano; Said (Said Taghmaoui), um mulçumano; e Vinz (Vincent Cassel), um judeu. A representação de um conglomerado de origens em um único lugar aponta o perfil do bairro, onde estão também amontoados, asiáticos, sul-americanos, caribenhos, e demonstra um conflito real, causado principalmente pela xenofobia, criadora de um repúdio que desconhece esses habitantes menos nobres de Paris. E com o infortúnio do trocadilho, nem Vinz, nem Said, nem Hubert, nem todos desse bloco habitacional margeado, são aclarados pelas luzes da cidade-luz, nem têm poder sobre ela, como na cena metafórica em que tentam apagar a iluminação da torre Eiffel com um estalar de dedos, e, apesar de contatarem que isso é coisa de filme, as luzes se apagam logo após desistirem.



O ódio é o que lhes resta. O repúdio às instituições repressoras, como a polícia, viés do próprio Estado, que os ignora, os reprime e os condena sem trazer soluções reais, é o que eles aprendem e o que as outras gerações absorvem. A prova do que o filme condena está na própria história desse conflito que, cada vez mais, toma corpo. Em diversas cenas, as crianças mostradas, ainda com uma certa infância ao brincar nos parques, tomam como aprendizagem aquilo que vêem e que também sofrem. O conflito retratado nesse enredo de Kassovitz, já se sabe, é real, e se deu no início da década de 90. Mas as revoltas nessa mesma periferia parisiense continuam e tiveram outros tantos episódios nos anos 2000, o último deles em novembro de 2007. O ódio perpassou, a dinâmica continua. Vinz, talvez o mais impulsivo dos três personagens, ao responder o questionamento de Hubert, que põe em discussão a questão da violência que gera mais violência, diz que a escola dele foi na rua e que ela ensina que não reagir é o mesmo que dar a outra face para apanhar.



Abdel Ahmed é o jovem torturado pela impassível polícia francesa, que no subúrbio é mais truculenta, como observa Said. É este mesmo Abdel, agora internado em estado grave, quem gera a revolta dos amigos contra essa mesma polícia, criando um clima de tensão, mostrada no início em imagens documentais televisivas, que resulta em carros queimados, delegacia invadida e jovens mortos. A raiva contida em Vinz, personagem explosivo que ambiciona ganhar destaque no combate ao sistema, o faz jurar matar um policial (e conseqüentemente, adquirir respeito) caso o seu amigo torturado, e em coma, morra. Mas há uma sensibilidade e uma fraqueza em Vinz que o impede de fazê-lo. Ele, o único que ainda não foi preso, quer ganhar o status, quer combater também, pois o único meio de reconhecimento é ser visto. O centro, local do desafortunado passeio que fazem durante a madrugada, é aquele lugar repressor, indesejado, onde eles não estão à vontade. O ódio perpassa a exclusão e o ambiente suburbano, e no centro, “na aterrissagem”, outras gangues disseminam esse ódio, e criam núcleos seccionados de falsas ideologias que recriminam outras falsas ideologias. O subúrbio, enfim, chama atenção do centro, e traz para si o foco das preocupações.



Na voz de um ‘burguês’, o mal dos subúrbios é aquele que rompe o ambiente, a paz das classes centrais, a sobriedade de um salão de arte, mas que é, no entanto, uma palavra que se revolta à sua maneira, na sua peculiaridade contida na desinformação, na falta do que é básico e que, conseqüentemente, os inclui num todo, como educação, por exemplo. Mas, mesmo assim, não há como respeitar quem não os respeita. Não adianta querer entender que violência gera mais violência, pois a cara já foi dada à tapa e agora é hora de revidar, de pôr para fora o ódio. É necessário equilibrar a balança, como diz Vinz. Não adianta viver dentro do sistema e ser dele o rato. Na sobrevivência de dois mundos dentro de um só, Said, Hubert e Vinz vão além de meros personagens. Eles representam também os jovens mortos a quem Kassovitz dedica o filme. Nesse mal dos subúrbios franceses, a marca interessante que fica dessa narrativa, simples em sua forma e em seu conteúdo, é a ironia da frase que os três observam em um outdoor no meio da rua, e os faz (e nos faz) refletir: “O Mundo é Seu”.

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