quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"Escrita automática com câmera" por André Antonio




O início de Montenegro (Dusan Makavejev, 1981) mostra uma mulher loira (Susan Anspach) se aproximando de um lago, com o olhar perdido. Ao fundo, uma casa enorme, bonita, rica, provavelmente onde ela mora. Uma música pop-romântica dos anos 80 embala a cena. A letra fala de liberdade, fala que uma moça percebeu que nunca tinha passeado de carro em Paris com o vento nos cabelos. Esse tipo de inserção nesse tipo de universo diegético (mas também o próprio contexto de eu ter visto o filme numa disciplina da universidade chamada “Cinema periférico”) já me dizia tudo: eu estava prestes a assistir a um daqueles filmes de crítica social que mostram alguém cercado de valores burgueses querendo descobrir possibilidades e liberdades novas. Ótimo, adoro esse tipo de filme. Mas o desenrolar das seqüencias de Montenegro quebrou totalmente minhas expectativas. Porque nada no filme, simplesmente, parecia fazer sentido.
As ações dos personagens sistematicamente quebravam qualquer coerência ou identidade que o pobre espectador aqui tentava dar a eles. Os sentimentos deles não eram regulados por nenhuma lógica. Pai, mãe, filhos, avô, médico, todos agiam de forma irrevogavelmente louca num universo incansavelmente louco. Universo esse que propunha situações cada vez mais nonsense que as outras. Quando o esquisito grupo de iugoslavos – incluindo aquele com a faca enfiada na cabeça! – pára pra tirar uma foto como se fosse a coisa mais normal do mundo (nossa protagonista branca aceitando sorridente) achei que tinha chegado ao cúmulo. Mas não. Ainda viria o pai e o médico dançando uma música do ABBA (I love you, I do, I do, I do, I do, I do...) com seus robes brancos. Com o que eu me deparava, um filme totalmente sem objetivos, uma tiração de onda completa?
Finda a sessão, avaliei o filme apenas como algo que me fez ter um conjunto de sentimentos – predominando a surpresa, a perplexidade, o desnorteamento e o erotismo (e também o riso em cenas como a que o pai fala ao casal de filhos, cuja mãe está seqüestrada: “é tão mais tranqüilo quando sua mãe não está aqui!”). Só. Não sabia como classificá-lo (parece que temos necessidade disso, sob pena de adquirirmos uma chata inquietação). A única vaga e distante referência que me veio à mente foi David Lynch (uma ou outra cena me lembraram rapidamente das esquisitices específicas dele). Mas os dias se passaram, e o filme, vez ou outra, voltava à minha cabeça. É, acontece. Principalmente com bons filmes, que suscitam experiências legais. Foi a partir daí que quis escrever sobre Montenegro. Tarefa arriscada, por causa dessa minha relação com o filme. E porque nunca vi nenhum outro filme de Makavejev e, como se sabe, desde o início da idéia de auteur nos anos 50, as outras realizações de um mesmo diretor são cruciais para a interpretação de determinado texto dele. Por outro lado, sempre vemos por aí análises fílmicas comparando o filme X de um diretor com os outros dele. Pelo menos aqui daremos uma escapadela rápida desse “dogma”.
Esta resenha é apenas um breve comentário para tentar sugerir uma genealogia para Montenegro (afinal, segundo os pós-estruturalistas, todos os textos já foram escritos, todos os textos são intertextos...), partindo do contexto – em grande parte subjetivo – descrito acima. Essa genealogia é o Surrealismo (a pista de Lynch estava, por fim, correta). Não é novidade que essa vanguarda história surgida nas primeiras décadas do século XX se desenvolveu proficuamente no cinema (Buñuel, Bergman, Resnais, Lynch, para citar apenas esses quatro mais conhecidos...). Mas esse desenvolvimento acabou privilegiando uma dimensão específica do Surrealismo: a imagem onírica. Os cenários de Bergman, seus enquadramentos e fotografia, as narrativas circulares de Resnais e Lynch (o trabalho primoroso de som deste último), tudo isso faz com que os filmes deles nos tragam imagens que parecem ter sido capturadas em nossos sonhos mais inquietos, em nossas lembranças mais profundas, no fundo mais obscuro do nosso inconsciente. Surrealismo.
Mas isso faz com que se esqueça outra dimensão desse movimento artístico (fartamente explorada na pintura e literatura surreais do início do século passado e nos primeiros filmes de Buñuel): a escrita automática e a junção de elementos contraditórios para se atingir um nível maior de expansão da consciência. E o que Montenegro é senão a potencialização cinematográfica dessas duas coisas? Para assegurar essa minha hipótese, há as fortes seqüências com forte clima erótico no filme (Montenegro tomando banho pelado, o dildo no tanquezinho de guerra, a dança antes do sexo...) e as mortes (Montenegro morto, com sangue farto escorrendo, o envenenamento final da família inteira...). Onde há mais sexo e morte que em nosso inconsciente – onde o Surrealismo precisamente almeja chegar?
Esse viés específico do Surrealismo parece que não conseguiu encontrar muitos adeptos cinematográficos (talvez venha daí meu estranhamento para com o filme)... no entanto não deixa de ser interessante a forma com que ele tenta trazer à tona nosso id e quebrar assim as formas perceptivas do senso-comum. Nesse sentido, Montenegro está longe de parecer um filme apenas de “porra-louquice”. E quem sabe eu não estivesse certo ao achar que, desde o princípio, o filme (com uma branca adentrando os espaços escuros dos estrangeiros exóticos de seu país) é sobre querer encontrar espaços de liberdade e novas possibilidades?

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