sábado, 25 de outubro de 2008

"Estranhos no paraíso (Jim Jamursch, 1984)" por Hermano Callou


Uma mulher imóvel, em um aeroporto, olha um avião que corta o céu. A mulher apanha suas malas, demostrando certa apatia, e sai pelas bordas do enquadramento. Ficamos ainda por alguns segundos com a "sobra" do imagem: o espaço vasto e vazio onde presenciamos a partida de um outro avião. O que se insinua nesse primeiro plano de Estranhos no Paraíso é o mundo em trânsito e, ao mesmo tempo, monótono que o filme vai investigar. Saberemos logo em seguida que a mulher se chama Eva (Eszter Balint), uma imigrante húngara que acaba chegar aos Estados Unidos. O novo mundo não se mostra para ela um lugar muito agradável: edíficios abandonados, ruas vazias, um espaço pobre e sujo que parece pouco receptivo para os que vem de fora. Eva, no entanto, põe o seu toca-fitas para funcionar e inunda o ambiente com I Put a Spell on You, interpretada por Jay Hawkins. O ato de Eva anuncia que, de algum modo, ela não vai se dobrar para aquele espaço.


Estranhos no Paraíso nos apresenta, em seguida, Willie (John Lurie), primo de Eva, um húngaro há anos morando nos Estados Unidos, sem interesse algum pela sua cultura de origem. Sua vida é transformada pela intromissão da prima. Willie, irritado pela lembrança do seu país materializada na sua frente, e Eva, pouco disposta a aceitar as verdades e os hábitos americanos, dão início a uma relação de mal-entendidos. O não-entendimento pode se esconder em um vestido, um almoço, uma canção, um jogo “estúpido”: o cotidiano se torna um pequeno campo de batalha, em que os personagens assumem suas diferenças. O entendimento entre eles, no entanto, vai ser construído, a partir de uma afetividade que, aos poucos e aos tropeços, vai sendo formada. Eva e Willie, jutamente com um Eddie (Richard Edson), um simpático amigo americano, iniciam uma amizade que possibilita a viagem que os três fazem a Florida.


Segundo longa-metragem de Jim Jarmusch, Estranhos no Paraíso, já apresenta o interesse do diretor em pôr mundos completamente distintos para dialogar. Se em Down by Law temos um mal-humorado cafetão, um DJ e um bizarríssimo imigrante italiano que, divindo a mesma cela em uma prisão, são forçado a passar os dias juntos, a conversar e a se entenderem, em Estranhos no Paraíso temos Willie, Eddie e Eva como um curioso trio que logo nos conquista simpatia. Jarmusch, no entanto, apresenta seu olhar no filme em questão em uma versão mais melancólica, em que o paraíso americano é construído como um lugar estranho, tedioso, sem brilho, de pessoas vivendo a esmo. Um sol pintado em um muro com a mensagem “Welcome to Florida” soa, nesse sentido, particularmente irônico em uma paisagem desabitada, que parece pouco sedutora aos nossos personagens viajantes.


Eva, elemento estranho naquele espaço, opera como possibilidade de compreensão da cultura daquele lugar: o olhar estrangeiro que o próprio Jarmusch assume a partir dela possibilita que se olhe ao redor sem o véu do hábito. O dia-a-dia americano passa a ser questionado juntamente com as pequenas verdades cotidianas que ele naturalizava. O diretor soube, nesse sentido, inserir pequenos detalhes, capazes de falar da sociedade em questão: Eddie fala com intimidade da paisagem de Cleveland sem nunca ter estado lá - estamos em um mundo em que a imobilidade se confunde com a vibração de imagens de todos os lugares. Eva, por ser um espaço em que a cultura daquele lugar não pode se infiltrar totalmente, funciona também como uma espécie de impulso de mudança – é graças a ela, afinal, que os personagens abandonam o marasmo e seguem em viagem.


Em uma época em que o cinema independente americano tem freqüentemente se comportado como uma espécie de “escadinha” para novos diretores entrarem em Hollywood, Jarmusch nos chama a atenção por reinvindicar um olhar enviesado, que se traduz no trato bastante particular que o autor tem com o cinema. Respondendo a um estado da arte em que as fronteiras entre alta arte e cultura de massa se dissolvem – erguendo uma filmografia poderosa ao dialogar tanto com o cinema moderno quanto com a tv ou a música pop -, Jarmusch propõe em Estranhos no Paraíso uma poética de palavras gastas e banais, que adquirem beleza com seu traçado. A piada que Willie tenta contar, mas que lhe foge à cabeça, as conversas durante a viagem, o lago que os personagens foram visitar, mas que encontram congelado: o cineasta constrói, com o bom humor que lhe é característico, situações que ficam na memória por sua delicadeza. São esses momentos, justamente, que colocam Estranhos no Paraíso como um filme particulamente bonito na história do cinema independente americano.

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