quarta-feira, 1 de outubro de 2008

"Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961)" por Hermano Callou




Nos primeiros momentos de Um Gosto de Mel, Jo (Rita Tushingham) conversa com uma colega de classe no banheiro, enquanto lavam as mãos. A colega pergunta se ela vai para o baile do colégio, à noite. Jo não pode ir: não apenas não possui roupa apropriada, como precisa se mudar novamente com a mãe. A cena em questão possui uma função narrativa clara, um tanto óbvia, é certo: trata-se de nos apresentar a personagem e nos sugerir sua situação social – saberemos mais tarde, inclusive, que o motivo de tal “mudança” é a impossibilidade de pagar o aluguel. O que nos introduz ao tom do filme, no entanto, é o que nos surge em seguida: meio aborrecida com a inconveniência da colega, Jo lava o rosto cuidadosamente, até se distrair e sorrir de leve para o espelho; em seguida, a garota sopra as mãos ensaboadas e forma uma bolha de sabão. O título do filme se justifica por esse e outros instantes de leveza que dão um sabor adocicado ao trabalho de Tony Richardson.


Exemplar do cinema novo britânico, Um Gosto de Mel se filia à tradição do realismo lírico no cinema e estabelece profícuo diálogo com o neo-realismo italiano. Jo é uma adolescente teimosa, freqüentemente sarcástica, de personalidade um tanto aborrecida, filha de uma mulher (Dora Bryan) pobre e deslumbrada com os homens que ainda pode possuir. Jo encontra em um marinheiro negro (Paul Danquah) a possibilidade de arejar um pouco a vida opressiva que tem com a mãe. O marinheiro, no entanto, é obrigado a partir e a mãe se casa, deixando a filha sozinha. Jo resolve trabalhar e levar a vida como pode e, nesse intuito, acaba encontrando um amigo, Geoffrey (Murray Melvin), garoto homossexual que passa a ajudá-la a cuidar da casa. Quando se descobre grávida do marinheiro que amou, Jo terá que enfrentar o retorno inesperado da mãe, abandonada pelo homem com quem havia se casado.


Tony Richardson trabalha em locações reais – que impregnam o filme com sua atmosfera suja e velha – e atores até então pouco conhecidos - cuja presença em cena dão ao filme um pouco de espontaneidade. A história narrada, ao mesmo tempo em que se dirige a uma realidade social que o cineasta quer entender e criticar, permite que os personagens adquiram vida própria. Richardson não cai no esquematismo que se poderia esperar de um filme que trabalha tamanha variedade de questões sociais (questões de classe, etnia e sexualidade). A verdade que aos poucos se destila de seus personagens não se justifica, portanto, por estarem amparados em um tipo social definido (o marinheiro negro, o gay, a adolescente pobre grávida), mas pela construção dramática do filme, honesta e generosa, que permite que seus personagens desenvolvam formas particulares de reagirem ao mundo.


O interesse de Richardson não está propriamente na abrangência que as questões retratadas possuem (embora o filme, por esse lado, também seja importantíssimo): seu olhar se mostra atento, na verdade, às pequenas zonas de escoamento em que a vida ameaça se tornar mais agradável - um passeio de montanha-russa, uma piadinha feita para o namorado, fazer um bolo para uma pessoa querida, uma brincadeira. O momento mais interessante do filme, sem dúvida, corresponde ao relacionamento de Jo e Geoffrey: uma pequena união solidária, uma espécie de casamento casto que os coloca à procura de coisas que signifiquem o cotidiano e que dêem prazer. Procura que tem, ao seu modo, um sentido político: trata-se de responder ao inferno do mundo, já dado de antemão, buscando sobreviver em suas pequenas brechas – um lugar em que Jo e Geoffrey podem rir e enfrentar os problemas do mundo. Um paraíso particular – frágil, como a bolha de sabão do início do filme.


Se Um gosto de mel alcança tanta graça, muito se deve ao trabalho de Richardson: uma sensibilidade precisa, que articula realismo e lirismo. Se, por um lado, os bairros proletários onde os personagens vivem estão relacionados a uma realidade social que interessa a Richardson investigar, por outro, as locações escolhidas operam um pouco como paisagens afetivas, espaços carregados de uma atmosfera particular e, por vezes, um tanto etérea (pensemos nas ruas vazias em que Jo e seu namorado circulam à noite). É possível perceber, nesse sentido, pequenos momentos em que o cotidiano assume certo encantamento: Richardson se arma de uma espécie de escrita do detalhe, capaz de recolher pequenas banalidades e banhá-las de afeto. O final do filme é um exemplo claro dessa proposta: uma festa de rua, uma fogueira, Jo caminha meio desiludida, uma criança se aproxima e lhe entrega um fogo de artifício aceso, soltando pequenas faíscas. Os últimos dias para ela não foram fáceis, o futuro é completamente impreciso, mas aquele pequeno objeto em sua mão ainda insiste em faiscar. O final, um tanto nostálgico, nos lembra que o filme também é sobre amadurecimento, sobre viver e sair da adolescência.

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