O principal risco de se escrever hoje sobre O Bandido da Luz Vermelha é o de celebrar o caráter de ruptura do cinema de Rogério Sganzerla dentro de um discurso crítico que o torne inofensivo. Quando nos encontramos com O Bandido hoje, temos que lidar com toda uma herança crítica que tomamos contato direta ou indiretamente e que se coloca, de alguma forma, como mediadora da obra. Podemos agora, portanto, saborear, tranqüilamente, a disformidade e o caráter dissidente do filme, seguindo passo a passo as linhas do mapa que já foram traçadas. O que se desenha, nesse intuito, é um filme sem arestas, sedimentado em um bom gosto cinematográfico que a própria obra parecia rejeitar, pelo menos no momento em que foi fabricada. Se ainda faz sentido ver e procurar escrever sobre O Bandido da Luz Vermelha é porque algo ainda se mantém em suspenso e ainda resiste. O filme de Sganzerla ainda pode ser um campo minado.
O Bandido da Luz Vermelha foi uma reação à institucionalização do Cinema Novo como porta voz da consciência nacional e a uma crise política que, de maneira muito geral, pode ser mapeada como uma crescente descrença em qualquer tipo de teleologia histórica. O sertão continuava seco, o mar permanecia em sua placidez azul e nada sugeria que a situação viesse a se alterar. Se Terra em Transe soube materializar o desespero da crise por uma teatralização trágica do fracasso político, O Bandido da Luz Vermelha escolheu o riso nervoso, a gargalhada agressiva, a irônia absoluta. Enquanto o Cinema Novo, nos seus primeiros momentos, sempre se manteve em uma distância segura da cultura de massa, O Bandido implodiu distinções em uma poética inclusiva e voraz, que soube se apropriar da tv, do noticiário sensasionalista, do filme de ficção cientifíca B, do filme noir, da chanchada e das revistas em quadrinhos. O amálgama que surgiu destilava um sarcasmo francamente sombrio sobre a possibilidade de um cinema político edificante e conscientizador e, ao mesmo tempo, violentava o bom gosto de uma classe média alta que havia aprendido a apreciar o Cinema Novo.
O que eu acabo de falar - nada muito novo, evidentemente, haja vista o que já se escreveu sobre o filme - contribui pouco para entender o que significa O Bandido da Luz Vermelha hoje. Ao colocar O Bandido em uma perspectiva histórica, pode-se enclausurá-lo como resposta imediata a uma certa conjuntura política e cinematográfica e, portanto, pacificar em uma interpretação totalizante o que o filme possui de caótico. O Bandido se inicia com um letreiro luminoso, em que se lê “um gênio ou uma besta”. Em seguida, em um corte tipicamente godardiano, nos deparamos com a imagem de uma esfinge. Ouvimos, em voice over, a pergunta “quem sou eu?”, proferida por o assim chamado Bandido da Luz Vermelha (Paulo Vilaça), um assaltante de casas de luxo de São Paulo. O personagem é uma esfinge que propõe a se próprio como questionamento: figura que o filme tenta o tempo todo decifrar, sem sucesso. Policiais vagabundos, locutores de rádio enlouquecidos e o próprio bandido lançam um volume desordenado de informações pouco críveis a respeito do persongem, que nunca se torna completamente apreensível.
Se a indagação metafísica do início do filme sugere que o enredo permitirá um aprofundamento psicológico do seu personagem, o desenvolvimento do filme trata de mandar essa idéia para longe. Não há posto de observação seguro: Sganzerla não estabelece um personagem unificado, mas o apresenta como um entrecruzamento de vozes que nunca alcança unidade ou coerência. A voice over do personagem, narrando sua infância pobre, nos sugere o marginal da ficção realista, sua imagem nos remete a uma iconografia noir de homens durões, as notícias de rádio dos seus assaltos desenham uma figura típica do jornalismo sensasionalista, o comportamento anárquico do bandido nos lembra certo herói de alguns filmes de Godard, o personagem parece, em alguns momentos, saído de uma história em quadrinhos. A narrativa acompanha o mesmo impulso: fragmentação e caotização intensa, intertextualidade em expansão descontrolada, riso paródico de si mesmo. O Bandido ainda não perdeu a capacidade de nos desorientar.
Imagino o que seria se O Bandido abandonasse sua condição de marco histórico do cinema brasileiro e andasse pelas ruas novamente. O que teria ainda O Bandido para nos provocar? Em uma época em que o cinema que se propõe político apresenta questões e idéias já muito bem assentadas no mercado cinematográfico, O Bandido nos lembra que o cinema pode ser político não apenas no colorido temático, mas na própria carne: Sganzerla sabe que é preciso romper com a sensibilidade dominante se quiser quebrar a fruição do filme como espetáculo e colocar o espectador em questionamento.
O final do filme é, sem dúvida, o momento mais poderoso e terrivelmente belo da obra. Luz, o bandido, consegue enfim se suicidar. Amarra fios pelo seu corpo, em meio a um vasto lixão, e morre com uma descarga elétrica. Referência ao suicídio de Ferdinand em Pierrot le fou, de Godard, a morte de nosso personagem se encontra em uma sucessão de planos curtos e intensos, tal como o próprio filme do francês. Se a morte de Ferdinand era o fim de um projeto de existência nômade e livre, levado por um jovem burguês cansado da normalidade da vida social, a morte de Luz é a culminação de um processo de autodestruição, descentramento e apagamento de identidade. Uma catarse. Após o suicídio de Ferdinand, Godard, no entanto, nos oferece a redenção com um belo travelling lateral para o mar. A morte de Luz, ao contrário, nos apresenta o início do caos: fuzileiros navais, comunistas, ets ou não sei mais o quê invadem o Brasil. Com a atmosfera de um carnaval, mas também a de uma revolução, assistimos imagens fritarem na tela, histericamente: uma roda de samba com ares de macumba, disco voadores explodindo no céu, uma imagem de São Jorge pegando fogo. Máscaras disformes de noções de brasilidade, as últimas imagens do filme mantiveram sua beleza e violência por esses quarenta anos. Se o filme se inicia com um “quem sou eu” é curiosamente amargo que ele termine com o berro do locutor de rádio dizendo um “e daí?”
não perdeu a cadência e disse a cada sílaba, sem gorduras, o necessário. sem afetação, sem chafurdar no ramerrão do já dito.
ResponderExcluirfoda.
mateus cabeça-de-ovo.