sábado, 11 de outubro de 2008

"Bonita lavanderia com gosto de mel" por André Antonio


O título do artigo relativo ao cinema britânico do livro Cinema mundial contemporâneo (lançado em 2008 e organizado por Mauro Baptista e Fernando Mascarello) é “Cinema britânico: realismo, classe e televisão pública”. Vamos nos deter sobre as palavras “realismo” e “classe”. Com relação a esta, não espantaria a Terry Eagleton que ela figure no título do texto em questão, pois, para ele, a tradição esquerdista inglesa é muito mais consistente, sistemática e ativa que a, por exemplo, norte-americana[1] (se é que esta de fato existe...). E, de fato, a questão da classe é uma das principais obsessões do áudio-visual britânico. Com relação à outra palavra, ela é a síntese daquilo que é criticado nos dois filmes aqui abordados: Um gosto de mel (Tony Richardson, 1961) e Minha adorável lavanderia (Stephen Frears, 1985).



Há um discurso que permeia o melhor da crítica de arte já há algum tempo e que pode ser sintetizado pela seguinte frase de Benjamin: uma “obra caracterizada pela tendência justa [no conteúdo e politicamente falando] deve ter necessariamente todas as outras qualidades (...) a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”[2]. Tal discurso está, em última análise, correto. No entanto, ele não pode legitimar julgamentos apressados e superficiais, que impedem um conhecimento mais profundo a respeito de certos artefatos culturais. No caso dos dois filmes aqui em questão, esse discurso pode considerá-los admiravelmente engajados e preocupados com importantes problemas sociais, e no entanto desinteressantes do ponto de vista formal e artístico, tornando-os dispensáveis num estudo mais sistemático a respeito de suas relações sócio-estéticas. O “realismo” do título do artigo, e que serve para mapear esteticamente esses dois filmes, está mais próximo de uma gramática cinematográfica mais tradicional e mainstream do que às revoluções do neo-realismo italiano. A subversão política do conteúdo desses filmes seria, por isso, cooptada a seguir pelo próprio sistema político-social que eles criticam, mas que lastreia esse realismo hegemônico. Mas as coisas são assim tão simples?



Minha adorável lavanderia é tido como o renascimento do cinema britânico, que ficou estagnado depois dos anos 60 que produziram os documentários do free cinema, as peças dos angry young men e os filmes socialmente conscientes (alguns são chamados de kitchen sink dramas) dos quais faz parte Um gosto de mel. Mas o fato de os dois filmes, apesar da distância temporal, se enquadrarem num mesmo mapeamento estético não é fortuito. Pois o que liga os dois é uma série de longas-metragens produzidos para a televisão pública inglesa com um objetivo que permaneceu (em pela era Thatcher!) o mesmo da década de 60 para a de 80 e conecta os dois períodos: concretizar em termos cinematográficos (ou áudio-visuais) as questões ou muito abstratas e amplas ou muito específicas e relativas da exclusão social dos mais variados grupos (raciais, étnicos, sexuais, de classe...).



O objetivo não era fácil. Esse tipo de cinema, segundo Mauro Baptista[3], almejava ser ao mesmo tempo popular, de qualidade e socialmente engajado. Eles conseguem? Um gosto de mel narra um trecho melancólico da vida de Jô, uma jovem de caráter forte (todos os personagens do filme, aliás, são brilhantemente construídos) de origem proletária que se apaixona por um marinheiro negro. Este, porém, tem que ir embora e deixa Jô grávida, logo quando sua irresponsável mãe vai se casar novamente, deixando a filha para trás. Contudo Jeffrey, o melhor amigo dela, um homossexual, a ajuda a levar a gravidez a cabo. Minha adorável lavanderia se centra nos temas de diáspora e imigração e conta a história de como Omar, um jovem paquistanês na Inglaterra (seu caráter, diga-se de passagem, é predominantemente english), começa a se transformar num importante homem de negócios em meio a um ambiente corrupto, e como ele lida com a dupla condição periférica de imigrante e homossexual (apaixonado pelo sweet and tender hooligan Johnny).



Para além de sua tradicional relação inter-planos e seus nada inovadores raccords, esses dois filmes conseguem concretizar, ao nível do sensível, questões sociais importantes (até hoje, é bom frisar), através, principalmente, da exibição bem sucedida de situações cotidianas vividas por esses personagens marginalizados, sem cair em paternalismos cínicos. O final aberto de Um gosto de mel sinaliza que tão cedo a vida de Jô não vai deixar de ser melancólica. Uma frase dita por ela num diálogo a certa altura do filme (JEFFREY: - Are you still in love with your black prince? JÔ: - I hate love), alegoriza a estética que permeia sutilmente o realismo do filme: o romantismo gótico (outra tendência forte e consistente na Inglaterra), com direito a bonitos planos num arco onde a voz faz eco. Já em Minha adorável lavanderia, a estética que aparece vez por outra ao longo da gramática realista é a dos anos 80 (se é que existe tal estética), menos na moda presente nas roupas e nos penteados (algo, hoje, tão datado que até o camp tem dificuldade em recuperá-los) do que na sutil trilha sonora; estética essa que tem algo da descoberta e da liberdade que vez por outras os personagens principais do filme experimentam.


Conclusões apressadas advindas do uso errado daquele discurso de que falei antes podem fazer com que os desdobramentos dessas constatações são sejam considerados. Esse discurso deve, assim, num caso como esses, ser acompanhado por uma moldura teórica ampla mais matizada, como a de Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados, onde filmes como esses são considerados como peças-chave (A1, A2, A3...) na formação geral de um sistema social-artístico melhor e novo (B). Já Fredric Jameson usa a moldura marxista para conseguir essas interessantes conclusões: todos os grupos específicos e não hegemônicos de uma sociedade que se utilizem de uma forma artística determinada, obrigatoriamente passam pelo estágio do realismo (o próprio realismo mainstream foi inicialmente o realismo de um grupo específico: a burguesia. Só que esse realismo conseguiu se universalizar e se impor como regra geral[4]).


Algo semelhante, do ponto de vista teórico, está acontecendo com a análise de certos produtos culturais mainstream (programas de TV, clipes musicais, reportagens, além de filmes) que se debruçam também nesses temas da marginalização étnica, racial, sexual, de classe, como o filme ganhador do Oscar Crash – no limite (Paul Haggis, 2004). O que os melhores críticos de jornal e da internet dizem, com propriedade e acerto, é que o ponto de vista burguês, conformista e assimilacionista de um filme como esse se torna mais desonesto e perigoso ainda por causa de sua estética midcult. Porém ainda não se foi além disso (qual a relação desse tipo de produto – e de sua estética – com a demanda dele na esfera pública?) nem se disse algo verdadeiramente interessante.


[1] Em Teoria da literatura, Martins Fontes, 2006.
[2] Em “O autor como produtor”, Magia e técnica, arte e política, Brasiliense, 1996.
[3] Em Cinema mundial contemporâneo, Papirus, 2008.
[4] Vale a pena acompanhar detalhadamente essa argumentação de Jameson em As marcas do visível, Graal, 1997.

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