quarta-feira, 1 de outubro de 2008

"De Godard, avec amour" por André Antonio



Sentimento

O espectador de A chinesa, ao longo da sessão, tem um sentimento singular que só é possível se o filme estiver sendo visto pela primeira vez. Esse sentimento pode sobreviver em sessões posteriores, mas de forma muito menos intensa e forte. Na verdade, é apenas a lembrança do sentimento arrebatador da primeira sessão que permanece numa segunda, numa terceira, numa quarta... Que sentimento é esse? É difícil descrever. Mas antes de tentar, é preferível falar de onde ele surge: da descoberta paulatina, pelo espectador, de uma linha narrativa escondida.

A única coerência que o espectador pode deduzir do filme, a princípio, é a seguinte: se há algo em comum entre os planos não-consecutivos e as falas aparentemente sem conexão, é o debate de questões típicas da esquerda política. O ano de produção do filme, 1967, dá, então, uma pista: ele é sobre a efervescência política que naquela época agitava vários cenários mundiais. A primeira conclusão, então, é a de que Godard quis expressar o que estava acontecendo entre a juventude de seu país contemporâneo. Assim, aqueles jovens meio malucos naquele cenário estranho seriam uma espécie de fantasmagoria que tentava condensar as energias revolucionárias da época. Nessa primeira formação do filme na mente do espectador, alguns fatos perturbadores, como a autoconsciência incômoda (um dos jovens apontando para a câmera que o filma antes de ela se mostrar ao espectador; um letreiro onde se lê “último plano”, antes de se ver o último plano...) e a montagem não-linear, são acalmados porque o filme “é de Godard”, cujo nome, mesmo para aqueles que se interessam pouco por cinema, é conhecido como sendo um dos mais importantes realizadores de “filmes de arte” – então, ninguém se choca com esses experimentalismos a mais.

Mas essa visão do filme muda – ou melhor, se amplia – na medida em que o espectador descobre a narrativa escondida por trás de tantas “abstrações”: os atores vistos ao longo do filme representam jovens esquerdistas revolucionários que estão, na verdade, na casa dos parentes de uma integrante do grupo. Lá, eles estão debatendo essas questões políticas, filmando tudo, planejando fazer um filme à altura do “teatro socialista” e até assassinar um ministro. O sentimento mencionado antes surge da conexão perfeita entre essa narrativa simples e aquela fantasmagoria experimental na forma da qual o filme se revelara a princípio. E agora, sem sucesso, a descrição desse sentimento: é o que se sente ao entrar em contato com beleza.


Presente

Mas se esse sentimento desaparece em uma segunda sessão, algo novo surge: a percepção de que o experimentalismo de Godard não chegou ao ponto de filmar e de montar de modo que quem analisasse o filme pudesse concluir: “ele é fiel e idêntico ao que um grupo de jovens rebeldes teria feito com uma câmera, dentro de uma casa”. É possível exemplificar com a seqüência já mencionada em que um dos personagens aponta com o dedo para a câmera e em seguida ela aparece. Há três planos: um com o ator apontando; outro com a câmera (que é filmada como se houvesse outra câmera atrás da cabeça do ator); e de volta para o ator, que tem um fundo branco atrás de si, não uma câmera. Ora, esse segundo plano, escancaradamente “olhar de Deus”, mostra que nem todas as tomadas foram feitas como se os jovens na casa tivessem consciência da câmera.

A chinesa, na verdade, se revela um amálgama de formatos: uma mistura de documentário caseiro, com vídeo experimental, com representação mainstream, com encenações teatrais... se aquele sentimento da primeira sessão surge da impressão de que A chinesa é na verdade um filme feito por aqueles jovens rebeldes, a segunda sessão não resiste à pergunta: “quem é a pessoa atrás da câmera?”. Não é nenhum dos jovens da casa. É Godard. Foi ele que fez o filme, pensado milimétrica e rigorosamente. Na verdade, o filme foi um presente de Godard, feito com amor para a juventude esquerdista (principalmente maoísta!) de sua época. Embora de realização complexa – para que o efeito pretendido fosse concretizado – a percepção do filme, embora chocante, se revela simples, como colocou Ruy Gardnier na Contracampo[1]: “Não é que seus filmes [de Godard] sejam complicados demais para a maioria dos espectadores; na verdade, eles são complicados de menos”. Diz Godard sobre o filme: "Se A chinesa se fechar completamente no cinema e não dialogar com os militantes, é porque o filme é ruim e reacionário".


Cores primárias

Não passa despercebido o uso constante de cores primárias (azul, amarelo, vermelho e branco) ao longo de A chinesa (e também em outros filmes do diretor). Os jovens da casa pintaram agressivamente as paredes brancas com essas cores (a irmã da personagem que conseguiu a casa para os amigos, no plano final do filme, limpa uma parede, dizendo: “mamãe e papai vão ficar furiosos”) e elas permeiam todo o filme, da roupa dos personagens aos letreiros. Essas cores podem ser vistas como a simbolização do começo. Em 1967, era preciso destruir tudo e começar de novo. Como disse uma das personagens do filme: “se eu tivesse coragem, explodiria as universidades e o Louvre”. Não é que um filme possa mudar o mundo; mas, quando o mundo está mudando, é preciso que a cultura também mude, acompanhando-o (uma das primeiras frases ouvidas em A chinesa é: “é preciso criar as condições objetivas e subjetivas da revolução). Assim como esse mundo, tal cultura tem cores novas, primárias: simples, elementares, iniciais, das quais pode se desenvolver e complexificar inúmeros caminhos. Essa destruição seguida de um novo começar lembra o conceito de barbarismo positivo, proposto por Benjamin ao analisar a vanguarda (cubistas, Klee, Bretch): “Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda (...) [esse bárbaro] rejeita a imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraudas sujas de nossa época”[2]. Godard era um vanguardista.


Vanguardista

Mas não só por isso. É preciso recorrer à distinção feita por Huyssen[3] entre modernista e vanguardista para matizar o fato. O primeiro faz parte de um movimento que começa com Flaubert; seus nobres membros produziam obras de arte “totais”, cujos méritos formais são sempre lembrados pelos professores de literatura, mas cujos subtextos machistas só há pouco começaram a ser desvendados[4]. Vanguardista, pelo contrário, faz parte de movimentos surgidos dentro do próprio modernismo, mas cujas produções estéticas contestam (e isso bem antes do pós-moderno) a distinção Alta/Baixa cultura, Arte/Cotidiano, pretendendo, assim, gerar as condições culturais paralelas às condições materiais que os movimentos sociais borbulhantes do século XX estavam preparando para a revolução. Godard era um vanguardista. Filmes como A chinesa não eram só políticos no conteúdo (apesar dos erros que hoje muitos identificam nos maoísmos extremistas de Godard), mas também em sua própria forma nova que acompanharia um mundo novo. Esse mundo, como se sabe, ainda não veio.


[1] Ver: http://www.contracampo.com.br/sessaocineclube/pierrotchinesa.htm
[2] Em “Experiência e pobreza”, Magia e técnica, arte e política, página 116.
[3] Em Memórias do modernismo.
[4] Ver o próprio livro de Huyssen e Teoria da literatura, de Terry Eagleton.

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