terça-feira, 21 de outubro de 2008

"A (Cor) Chinesa de Godard" por Anderson Baretto


Realizado às vésperas do turbulento ano de 68, o filme “A Chinesa”, de Godard, à primeira vista, faz jus ao seu subtítulo “um filme em processo de ser feito”. Por isso, não é de se estranhar que se faça a pergunta: O que é isso? Afinal, não há um percurso usual, comum ao que até então “conhecemos” como linguagem de cinema. O filme, é mais que uma liberdade artística, antes de tudo, é um grito pela liberdade, seja esta do indivíduo, da sociedade ou do próprio cinema.


A Chinesa é uma combinação entre ficção, documentário, performance e vanguarda, e, sem se propor a ser nenhum deles, supera qualquer tipo de convenção ou classificação. Além de brincar com toda a capacidade possível de se fazer entender, o filme ainda “estremece” qualquer senso de realidade. Essa talvez seja a função do cinema, essencialmente. Godard utiliza depoimentos dos personagens, entrevistas e ilustrações, explora as mais diversas formas de arte, encenação, fotografia, gravuras, performances, tudo para conseguir mostrar um filme que “ainda não está pronto”. Entretanto, é uma obra perfeitamente completa e bem acabada, uma vez que atinge todos os objetivos do autor/diretor, que, além disso, ainda teve a competência de mostrar uma realidade antes mesmo que a própria realidade se mostrasse, conforme é dito por uma das personagens: “A realidade ainda não se mostrou a ninguém”.


O filme é um combate ao imperialismo americano, num discurso bastante político que é acompanhado pela cor vermelha, a cor do sangue, da revolução, do comunismo, da bandeira chinesa... O vermelho aqui, muito além de Almodóvar, é muito mais que uma cor, é um instrumento. A cor está presente em todo o filme, e é uma característica percebida desde os primeiros segundos da obra. Vermelho, Amarelo, Azul, cores primárias que, para Godard, significam harmonia e equilíbrio. São a partir dessas cores que todas as outras são formadas, o que remete ao “filme como algo não acabado”, como se as bases da realidade mostrada no filme se constituíssem como um ponto de partida – para o espectador, os indivíduos, o cinema e o mundo.


Godard mostra a sua visão de mundo, uma visão profunda, densa, focada, real, que está presente marcadamente no filme através da fotografia, isto é, o diretor utiliza, em sua maioria, planos fechados, evita o “plano americano”, mais uma prova de sua magnífica intertextualidade e subjetividade. O enquadramento é focado, não apenas pela câmera, mas pelo olhar do cineasta, um olhar restrito, sem ser levado e iludido pelas paisagens, pelo exagero de imagens, pela multiplicidade de informação, propostas pelo “american way of life”. E assim, o filme tem uma estética peculiar, concentrada e equilibrada, características essenciais para se compreender uma realidade que estava prestes a se mostrar. Godard também nega a narrativa linear do cinema americano, há uma liberdade de movimentação de câmera, bem como uma liberdade de cortes, promovendo uma certa imprevisibilidade ‘des-norteante’.


No filme é dito: “Para tudo o que vemos devemos considerar três coisas: a posição do olhar de quem vê, o objeto visto, e a fonte de luz”. O espectador estaria, então, vendo frontalmente essa proposta de uma nova realidade, trazida pelo filme - o objeto visto - um instrumento trazido à luz pela genialidade de Godard. Isso remete uma vez mais ao “filme em construção”, representando não apenas um filme, mas sim a certeza de que é possível trilhar um caminho diferente. A Chinesa percorre esse caminho diferente, destoa do cinema americano, central, ridiculariza o luxo e o poder dos EUA. “Há uma falsa idéia do cinema”; “Cultura e ação estão separadas”; “A cultura oferece controle sobre o mundo”...


A política é o que move os personagens, seus pensamentos, suas idéias, seus instintos e atitudes. A política é “o pequeno livro vermelho que faz tudo se mover”. O filme mistura política e arte, passa a idéia de que para mudar algo é necessário conhecê-lo antes, e antes disso, conhecer-se. Godard teve essa sensibilidade, e no filme trouxe tudo isso através do que chamou de “consciência infeliz”. Infeliz, talvez, pelo fato de que toda consciência traz consigo um nível maior de responsabilidade, esta, por sua vez, está diretamente ligada ao poder e à realidade. E assim, mais uma vez perguntamos: o que é a realidade? Ao longo de todo o filme, o espectador pode se perguntar: o que se passa nesse filme? São meras ilustrações ou é de fato uma história? Existe uma história? A Chinesa é um filme para poucos, é um filme que faz pensar, e muito mais do que isso, pensar em agir. É uma obra onde nem sempre tudo é compreendido, afinal, olhar um objeto de perto significa conhecer os seus detalhes. O nível aumenta quando o “objeto” analisado não é mais o filme, ou o cinema em si, mas sim a realidade.


O olhar é algo bastante instigador nessa obra, aliado à imagem e ao som, sobretudo às palavras, propõe uma análise dessa tal realidade. Através da fala dos personagens, há uma informação, que, por mais paradoxal que pareça, aponta a intencionalidade do autor. É dito que ser cego é a saída para enxergar melhor o mundo. Godard fecha os olhos ao mundo imperialista, ao cinema tradicionalmente norte-americano, e com isso, não só enxerga uma nova maneira de fazer cinema, como também propõe ao público uma nova maneira de enxergar a realidade.


Assim, o filme traz uma verdade combatente, combate o imperialismo, o cinema americano, e até mesmo o processo da construção fílmica, uma vez que nega os caminhos até então conhecidos do cinema mundial. Godard para isso deu novo significado à imagem, à representação, à fotografia, à música. Inseriu imagens, figuras de pensamento, brincou com a subjetividade, reinventou a arte cinematográfica, retratada também numa de suas inúmeras frases de efeito: “A arte não reproduz o visível. Ela inventa o visível”. Godard, portanto, finaliza o filme, apesar de anunciá-lo “em processo de ser feito”, e faz de A Chinesa algo maior do que “um tímido passo de uma longa marcha” – um começo de um novo caminho.

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