sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"Viagem à Itália", por Igor Calado


Realizado em meio à paixão que arrancou Roberto Rossellini de sua musa anterior, Anna Magnani, e Ingrid Bergman de sua carreira e marido nos Estados Unidos, Viagem à Itália (Viaggio in Italia) é o terceiro filme de uma intensa colaboração artística, benéfica não só para o cinema (incluindo-se aí o nascimento da atriz Isabella Rossellini, filha do casal), como também para as revistas de fofoca da época.

O affair que uniu a estrela sueca de Hollywood ao nome forte do neo-realismo italiano recebeu críticas de todos os lados: Los Angeles ressentiu-se da fuga de sua atriz predileta; os moralistas europeus e, principalmente, americanos, condenaram a pouca vergonha; os intelectuais neo-realistas viram, a cada novo filme de Rossellini com a atriz, o distanciamento progressivo do realizador em relação à ideologia inicial do movimento. E os respectivos cônjuges, obviamente, não se sentiram confortáveis com um abandono “artístico-amoroso” tornado público.

A diferença entre este e os títulos mais icônicos do neo-realismo fica evidente desde a sinopse: um casal burguês britânico, Katherine e Alex Joyce (Bergman e George Sanders), viaja para Nápoles com o objetivo de vender a casa de um parente recentemente falecido; na jornada, repensam seu relacionamento, que entra em crise. Uma descrição que certamente remete mais aos casais problemático-existencialistas do diretor Ingmar Bergman que aos temas de guerra e preocupação social que marcaram a vanguarda italiana – assuntos presentes nos clássicos do movimento, como Ladrões de Bicicleta (1948), de De Sica, e Roma, cidade aberta (1945) e Paisá (1946), do próprio Rossellini. E essa heresia artística não foi bem digerida entre os italianos.

Em sua nova fase, iniciada pouco antes dos primeiros filmes com Ingrid, Rossellini sofreu duras críticas em seu país, apesar de ter sido saudado pela crítica francesa. A diferença de recepção a seus filmes culminou com uma carta escrita pelo crítico da Cahiers du Cinéma, André Bazin, endereçada a Guido Aristarco, editor-chefe da revista Cinema Nuovo,. Intitulado “Em defesa de Rossellini”, o texto se tornou testemunho da evolução do movimento, além de famosa e inteligente defesa do diretor.
A história do casal se passa calma e lentamente, sem acontecimentos marcantes, pontuada pelas saídas turísticas de Katherine (bastante semelhantes às peregrinações sem objetivo dos personagens do diretor Michelangelo Antonioni). Desde o início da película, dirigindo nas estradas italianas, os Joyce já sentem o estranhamento que se instala entre os dois quando deslocados de seu ambiente usual. As coisas pioram pouco a pouco, a cada comentário sarcástico, repreensão, discussão – e assim o diretor disseca um casamento burguês e a crueldade que faz parte dos relacionamentos, mas também sua beleza.

Apesar da câmera acompanhar as descobertas do casal britânico no país latino (e registrar suas reações e opiniões), a direção foge do erro comum do deslumbramento estrangeiro, filmando a paisagem e as peculiaridades da região sem exotismo. Isso se dá provavelmente graças à nacionalidade italiana do diretor, cuja familiaridade com o ambiente parece estar impressa nas imagens mais que as sensações do casal em relação ao lugar.

O uso de atores hollywoodianos, falando em inglês, também poderia ser uma ponto negativo do filme, mas tendo integrado esses elementos à história com maestria, Rossellini escapa novamente de um erro comum: o emprego da língua inglesa (e de elenco “internacional”) sem nenhum fim estético, o que acaba por deixar muito claro um viés comercial da escolha. A falta tem sido freqüente no cinema contemporâneo e certamente não contribui para o multiculturalismo; no que tange a isso, Viagem a Itália parece colaborar com as discussões, mesmo sem se aprofundar no tema.

Apesar das muitas diferenças com o movimento, elementos típicos do neo-realismo são facilmente observáveis no filme, principalmente a “desdramatização”, inovação amplamente difundida dentro da vanguarda e que a caracterizou fortemente. Essa técnica narrativa pregava a ênfase nas ações dos personagens, observadas com um distanciamento crítico em detrimento ao apelo emocional, e o abandono dos elementos típicos do “espetáculo”, até então comuns no cinema italiano.

Mas essas inovações foram incorporadas somente até certo ponto, porque o neo-realismo nunca se livrou completamente dos resquícios melodramáticos, tampouco restou imune às influências do noir americano, do qual era contemporâneo. Por mais que se prezasse por uma visão prosaica do que se passa na tela, os neo-realistas não se furtaram a despertar (manipular, talvez) a tristeza ou a compaixão do público com os sucessivos infortúnios de seus personagens, como as lágrimas de Bruno em Ladrões de Bicicleta e o próprio desfecho desse filme. Nem de empregar femmes fatales aqui e ali, como em Roma, cidade aberta, e criar personagens feitos sob medida para odiar, como em Alemanha ano zero.

Em Viagem à Itália, as brigas do casal têm pouco de sua carga emocional transmitida ao espectador, que não possui identificação clara com os personagens. Rossellini prefere empregar o já citado “distanciamento crítico”: a discussão é observada mais que sentida – abordagem que continua durante todo o filme. Nota-se aí a semelhança com o estilo documental da escola neo-realista, que dava considerável importância ao registro. Rossellini tenta o mesmo, com um efeito instigante: salvo raras ocasiões, os pensamentos dos personagens são relativamente inexplicados pelo diretor, sua linha de raciocínio é, na maior parte das vezes, oculta, obrigando-nos a um complicado esforço de empatia psicológica.

No plano formal, o rompimento é maior: há um abandono da estética do documentário, que privilegiava uma imagem acinzentada e uma câmera discreta. Rossellini opta por uma fotografia com movimentos simples, mas expressivos, e a manipulação estética do contraste, incluindo excesso de luz em diversos planos. Há também planos subjetivos pouco ortodoxos, que incluem inclinações de eixo e ângulos que fazem suspeitar se o plano é realmente um ponto-de-vista. A câmera continua, entretanto, a não tomar parte na ação.

A edição também é mais elaborada, criando confusões no espectador em determinados pontos: alguns planos, separados por cortes simples e que supomos que se sucedem no tempo, na verdade escondem uma elipse de tempo que só é percebida com algum atraso – e estranhamento.

O tratamento do espaço narrativo é sofisticado: de forma tênue, o diretor cria uma correlação entre os ambientes, notadamente os pontos turísticos visitados por Katherine, e o estado interno dos personagens. À medida que o abismo entre os dois se aprofunda, a inglesa conhece lugares cada vez mais mórbidos da região, começando por museus, passando por vulcões e chegando a templos repletos de caveiras. Esse artifício conhecerá seu aprofundamento máximo na obra de Antonioni, de forma menos temática e mais visual, através principalmente da composição.

O tema do casamento em crise já prenuncia uma problemática cara ao cinema moderno: possivelmente uma maladia social do pós-guerra (talvez aquilo que Antonioni chame de “Mal de Eros”), a crise do casamento e dos relacionamentos amorosos é tema recorrente nos filmes do período, a exemplo da filmografia do cineasta “existencialista” Ingmar Bergman (sem parentesco com a atriz); das obras do já citado Antonioni, em especial A Noite (1961); e nos filmes do cinema noir, que questionava as relações amorosas e de confiança entre os gêneros.

Uma crítica sutil aos personagens burgueses também é uma questão que será bastante aprofundada no cinema europeu do pós-guerra, especialmente por Antonioni e Federico Fellini. Uma passagem numa festa, quando a personagem de Bergman se diverte em meio aos italianos e o grupo discute o dolce far niente, lembra o clássico La Doce Vita (1960), de Fellini, retrato ácido da burguesia desse período.
O sobrenome Joyce também não parece ter sido uma escolha aleatória: remete ao escritor irlandês James Joyce, pilar da literatura modernista. E o esvaziamento narrativo que Rossellini emprega – um despojamento da trama em detrimento de outros aspectos estilísticos, a conhecida “história onde não acontece nada” – é outro recurso que se tornará comum no modernismo.

Contudo, ao contrário do pessimismo que tomará conta do cinema nas décadas seguintes, Rossellini encerra seu filme com uma boa dose de otimismo e com um espiritualismo que, freqüente no resto de sua obra, é outro ponto de divergência com o neo-realismo.

Apesar de elogios de André Bazin, François Truffaut e Jacques Rivette, críticos da Cahiers que perceberam no filme o início do cinema moderno, Viagem à Itália não foi bem sucedido nas bilheterias. De todo modo, sua influência não pode ser negada e o leque de inovações temáticas e estéticas do filme faz dos realizadores modernos eternos devedores de Rossellini.

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